05/11/15
Minha Amada Irmã!!!
Após 46 dias de
caminhada, cheguei ontem a Santiago de Compostela!
No total, foram 56
dias de Caminho. Quase 800 kms percorridos, com meus pés, com o apoio
imprescindível de Cosme e Damião (meus caríssimos bastões), e, principalmente,
com a Graça e a Presença permanentes de Deus.
Tão difícil descrever
a emoção da chegada a Santiago… na verdade, foi uma emoção gradual, porque acho
que a minha ficha foi caindo aos poucos...
Saí de O Pedrouzo já
debaixo de chuva. Tinha dormido muito bem, tanto que nem ouvi o movimento dos
demais peregrinos. Quando acordei, já às sete e meia da manhã, só restávamos
eu, Bia e um rapaz duas camas antes de mim. Todo o resto do pessoal já tinha
partido. Tomei café com Bia, ajudei-a a resolver uma bronquinha no envio da
mochila dela, e saímos as duas juntas. Eram nove da manhã. Meu pé tinha
acordado mais dolorido que nos últimos dias. O arco plantar estava me
incomodando mais, inclusive, do que o tendão do calcanhar. Comecei a andar
pedindo a Deus que me concedesse a graça de chegar naquele dia.
Eu tinha pensado que
chegaria sozinha a Santiago, e até estava contando com a ideia de caminhar só,
para fazer minhas derradeiras orações e meditações andantes. Mas confesso que
foi muito bom chegar a Santiago com uma boa companhia. E eu e Bia caminhamos o
dia todo a certa distância uma da outra, porque creio que nós duas sentimos que
precisávamos desses momentos solitários, para reflexão e conexão com Deus. De
todo modo, Bia estava caminhando mais rápido que eu. Ficamos nos encontrando
nos cafés, quando parávamos para descansar.
Os primeiros dez
quilômetros foram de uma caminhada bem agradável (apesar das subidas e
descidas), passando em meio a muitas matas, dessas que já lhe descrevi tantas
vezes, e que me encantaram até o final, com suas altas árvores cobertas de
musgos e heras. Em alguns trechos, as heras pendiam das árvores, sobre a
estrada, parando a bem curta distância da cabeça dos passantes.
Nessa última etapa, o
Caminho passa ao lado do aeroporto de Santiago. Um extenso gradil está coberto
de cruzes, fotos, fitas, camisetas, e objetos variados, deixados pelos
peregrinos, ao longo dos anos, talvez como derradeiros marcos das intenções
apresentadas a Deus, antes da chegada a Santiago. Passar ao lado do aeroporto
me deu uma sensação muito boa, de proximidade com o destino final.
Após deixar o aeroporto
para trás, ainda caminhei um bocadinho pelo meio de matas e ao lado de bosques
de pinheiros. Até que de repente passei a caminhar à beira de uma estrada asfaltada,
em uma área mais aberta, com campos, hortas e casas mais próximas umas das
outras.
Choveu muito o dia
todo. E quanto mais próxima eu fui chegando de Santiago, creio que mais forte a
chuva foi ficando. Comecei a me lembrar do primeiro de dia de caminhada, quando
cruzei os Pirineus debaixo de muita chuva. E pensei: Nossa, é como o encerramento de um ciclo; parti com muita chuva e chego
com muita chuva. E daí em diante passei a me lembrar dos momentos mais
bonitos do Meu Caminho, pus-me a rezar pelas pessoas que conheci ao longo dessa
jornada, e fui ficando cada vez mais emocionada. Quando dei por mim, estava
chegando ao Monte do Gozo. Avistei Bia, que me esperava junto a uma barraquinha,
ao lado de uma capela.
No alto do Monte do
Gozo tem um monumento. E de lá, é possível vislumbrar Santiago. Como chovia
muito, e uma neblina encobria o vale, Santiago apareceu para mim apenas como
uma leve silhueta. Eu podia ver o contorno das edificações como uma sombra
negra em meio à névoa, por trás da cortina de água. Mesmo assim, foi uma forte
emoção. Eu sabia que dali até a porta da Catedral seriam apenas mais 4,5 kms!
Me ajoelhei aos pés do monumento e rezei agradecendo a imensa Graça de ter
chegado até ali. Ainda entrei na capelinha e rezei novamente. Enquanto
permaneci no Monte do Gozo, estive tomada por um forte e comovente sentimento
de gratidão, e chorei bastante.
Tomei um chá com Bia,
para aquecer um pouco o corpo, e começamos nossa derradeira descida. A partir
dali caminhamos bem próximas uma da outra. O trajeto nessa parte final não é
tão belo, porque a gente vai entrando no perímetro urbano de Santiago, que é,
hoje, uma cidade de grande porte. Algo em torno de cem mil habitantes. A gente anda
um longo trecho por avenidas movimentas, amplas, com muitos prédios de vários
andares, restaurantes lojas. Todo o movimento acelerado, o tráfego intenso, o
barulho, e a poluição visual de uma grande cidade. Depois de muito caminhar
nesse cenário meio caótico, finalmente a gente começa a adentrar uma área da
cidade com ruas mais estreitas e sobrados de dois andares, compridos e finos,
paredes de pedra e varandas de madeira e vidro. Começa aos poucos, para o visitante,
uma viagem no tempo. Saímos do século XXI e começamos a nos deslocar em direção
ao final do XIX, e quanto mais nos adentramos pelas ruas estreitas, mais longe
vamos viajando no tempo, até que finalmente chegamos ao coração do centro
histórico, com suas várias Igrejas, suas edificações de grossas paredes de
pedra, e a enorme Catedral.
O Caminho chega pelos
fundos da Catedral. Pedindo informações (pois a essa altura já não há as
setas), seguimos direto, descemos umas escadas, cruzamos um arco, onde havia um
jovem tocando uma gaita de fole lindamente, e, enfim, após dobrar à esquerda,
nos encontramos na praça do Obradoiro, com a fachada principal à nossa frente.
A sensação nesse momento foi um misto de alegria, alívio e incredulidade....
ficamos paradas, por alguns minutos, abestalhadas, olhando as altíssimas torres,
encobertas pelas redes de proteção da obra de reforma da fachada. Tiramos
fotos, para registrar o momento da chegada, e fomos atrás da porta para entrar
na Catedral para rezar. Foi quando descobrimos que é proibido entrar na
Catedral com mochila. Saímos, então, à procura de um local onde eu pudesse
deixar minha mochila. Nos indicaram a Oficina do Peregrino. Para lá nos
dirigimos. Mas deixa que era a Oficina de Acojida dos Peregrinos, onde se selam
as credenciais e se dão os certificados de peregrinação. Já que estávamos ali, pegamos a pequena fila e
esperamos para selar logo nossas credenciais e pegar o documento que atesta que
nós, de fato, fizemos o Caminho de Santiago. Devidamente documentadas,
decidimos ir logo procurar a mochila de Bia, que tinha sido enviada para uma
Oficina de Información. Rodamos um pouco e finalmente conseguimos resgatar a
mochila dela.
Chovia muito, e como
descobrimos que a Catedral fica aberta até as oito e meia da noite, resolvemos
procurar logo um albergue, deixarmos as mochilas e depois irmos à Catedral.
Como Bia tem um desses aplicativos maravilhosos, que falam tudo dos albergues,
já fomos certeiras num albergue novinho e bem avaliado. Felizmente, tinha
lugar. Chama-se The Last Stamp. Nos instalamos, tomamos banho e fomos correndo
para a Catedral, pois, a essa altura, já passava das oito da noite.
Quando chegamos na
Catedral, a missa estava terminando. Foi nós nos sentarmos no banco e o padre
pedir para todo mundo se levantar, para a bênção aos peregrinos. E fui durante
essa bênção que senti, efetivamente, a emoção plena da chegada. Um choro de
Alegria e Gratidão tomou conta de mim. Terminada a bênção, ainda fiquei ali,
ajoelhada, agradecendo profundamente a Deus por ter me concedido a imensa
felicidade de fazer o Caminho.
Sabe, Niquinha, não
digo que não seja importante chegar. Pelo contrário. Agradeci muito pela força,
pela coragem, pela disposição que certamente me foram concedidos em abundância,
para que eu pudesse caminhar quase oitocentos quilômetros. Porém, sempre senti
que a maior das bênçãos era a possibilidade de estar ali, caminhando,
percorrendo essa via espiritual, esse caminho mágico de que fala Paulo. E era,
principalmente, a possibilidade de percorrer essa via como uma forma de
agradecer a Deus pela Graça que busco, e tenho certeza de Fé que receberei. Não caminhei pedindo. Caminhei agradecendo.
Sempre. Pois sei que Nosso Pai, que nos ama, infinita e misericordiosamente,
sempre nos concede aquilo que pedimos. No tempo certo, e da forma mais perfeita.
E o Amor de Deus é tão
incrível, que vim para agradecer uma Graça futura e ganhei, além da Graça, uma
experiência incrível, mágica mesmo, de crescimento e cura interiores.
Escrevendo para você, neste exato momento, ainda choro de emoção: por todas as
belezas que vislumbrei; por todas as pessoas que conheci e que me mostraram,
com seu desprendimento e generosidade, a face mais linda do Amor de Deus; por
todos os amigos que fiz; por toda a energia que senti se desprender da terra,
das árvores, dos rios, e entrar em mim, pelo meu nariz, pela minha pele, pelos
meus olhos; pelas intensas sensações de conexão com meu Criador, que
experimentei em tantas ocasiões; pelas dores que me fizeram andar devagar e,
assim, aprender a Paciência, a Humildade, a Confiança, a Entrega; pelas
dificuldades que me fizeram parar e, assim, desfrutar mais detida e
profundamente a experiência do Caminho; pelas pessoas que me ajudaram e por
aquelas que tive a oportunidade de ajudar; pela viagem interior que pude fazer,
enquanto vencia os quilômetros; pelas feridas tratadas e saradas; pela
aprendizagem do despojamento e da simplicidade; pela diminuição do EU; pelos
perfumes novos, pelos sabores inusitados, pelas paisagens surpreendentes....
enfim, foram tantas e tão incríveis as dádivas, que não é possível enumerá-las
todas. Creio que por muito tempo ainda estarei realizando novas descobertas,
relembrando e aprendendo.
Várias pessoas já
disseram que não existe um Caminho de Santiago. Há inúmeros Caminhos. Tantos
quantos sejam os peregrinos. Eu acrescentaria que além de cada peregrino ter
Seu próprio e particular Caminho, ele não acaba. Essa é a sensação que eu tenho
agora, a de que cheguei a Santiago, mas o Caminho continua em mim, como uma
jornada ainda em curso. Talvez ele dure para sempre. Quem poderá dizer que
frutos o Caminho ainda seguirá gerando em mim? Sou e serei eternamente grata por
tudo o que o Caminho significou, significa e significará na minha vida, nas
nossas vidas, Minha Irmã.
E para voltar ao
prosaico, antes de encerrar essas Cartas, quero acrescentar que após a emoção
da bênção na Catedral, fizemos nossa visita ao túmulo do Apóstolo. Uma bela
caixa de prata contém seus restos, e está abaixo do altar principal. As pessoas
fazem fila e vão passando na frente do túmulo, e pode-se parar, ajoelhar-se num
genuflexório e rezar um pouco, antes de dar a vez ao próximo. Também pegamos a
fila parar subir no altar e tocar o busto de Santiago (creio ser também um
relicário), por trás. Paguei o ritual e fiz minhas orações, pedindo a
colaboração do Santo para a minha Graça.
Da Catedral fomos a um
restaurantezinho simpático, chamado Cervantes, comemos uma deliciosa salada de
camarão com queijode cabra e nozes, e tomamos um vinho para brindar nossa
chegada. Voltamos para o albergue, localizado bem perto da Catedral, ainda
debaixo de chuva. Foi quando liguei para vocês pelo Skype. Foi muito bom
conversar com vocês de viva voz, depois de quase dois meses! Acaba que fui
dormir muito tarde. Ainda assim, vi que havia muitos peregrinos pelas ruas,
certamente comemorando o final de suas jornadas.
Eu pretendia acordar
tarde hoje. Só que uma galera que estava no meu albergue acordou bem cedo para
irem a Finisterre (o final da rota, já chegando ao Oceano). Seis e meia eu já
estava acordando. Ainda enrolei um pouco na cama, mas sete e meia me levantei.
Eu e Bia fomos tomar café da manhã num restaurante em frente ao albergue.
Tomamos um chocolate quente divino, cremosíssimo, com churros. De lamber os
beiços. Não sei porque não pensamos em juntar essas duas maravilhas, aí no
Brasil. A combinação é perfeita.
Hoje continuou
chovendo muito! Enfrentamos a chuva e fomos até a estação ferroviária, para eu
comprar minha passagem de trem. Depois, fui à agência dos Correios para pegar
minha encomenda (lembra que despachei umas coisas em Samos?), e de lá fomos
assistir à missa do meio-dia, na Catedral, que é a mais concorrida. É a essa
missa que os peregrinos mais acorrem. Nos sentamos pertinho do altar. Como
chegamos antes da missa começar, fiquei apreciando a decoração da Igreja. A
Catedral de Santiago é enorme. Trata-se de um edifício alto e amplo, com várias
naves, e muitos arcos. Na ponta da nave principal está o altar de Santiago, que
tem um retábulo Barroco imenso. É uma peça feita para transmitir uma impressão
de grandiosidade, força e opulência. O busto de Santiago, em prata, ocupa o
centro do altar. Sobre ele, enormes anjos, de asas e vestes douradas sustentam
uma espécie de dossel, de ouro, sobre o qual há uma outra peça esculpida em
madeira, com uma outra imagem de Santiago, a cavalo, lá no mais alto, e umas
figuras de anjos guerreiros nas laterais. O conjunto do retábulo me lembra um
Triunfo de um imperador romano. Confesso que me causou estranheza. Me pareceu
grandiloquente demais para uma Igreja...
Sabe o que é muito
engraçado? Eu já tinha estado duas vezes em Santiago, e a minha sensação é de
que estou aqui pela primeira vez. Não consigo acessar minha memória dos lugares.
Lembro bem de cenas com Deolinda, com César, de momentos vividos, porém, não
consigo me lembrar dos lugares. Com relação à Catedral, minha única lembrança é
o turíbulo gigante (ou fumeiro). Não
é curioso isso?
Enfim. Antes da missa,
uma freirinha super simpática ficou ensaiando uns cânticos com a gente. A voz
dela era belíssima. E a música vinha dos dois enormes órgãos da nave principal.
Acho que nunca vi órgãos tão grandes. São elaboradíssimos, inteiramente
decorados com figuras de anjos barrocos. A missa em si foi meio esquisita. Não
sei. Acho que faltou emoção, de um lado. E, de outro, tinha um grupo de
peregrinos que fazem parte de uma empresa. E o padre, no sermão, falou muito
dessa empresa. Achei um negócio tão estranho. Ainda por cima, no final, ele não
deu a bênção dos peregrinos. Não entendi porquê. Só sei que dei Graças a Deus
por termos pego a bênção ontem à noite. A coisa boa é que fizeram a cerimônia
do turíbulo (desconfio que o grupo de peregrinos da empresa pagou, porque o
fumeiro só é aceso na sextas e domingos, a menos que se pague; assim me
informaram). É sempre um espetáculo ver o belo e grande fumeiro voando por sobre as cabeças das pessoas.
Da missa, deixei minha
caixa no albergue e fomos comer. O pai de Bia disse pra ela escolher um restaurante
que o almoço era por conta dele, e mandou me convidar. Não é gentil?!!! Só que no caminho pro restaurante, passamos pela praça da Catedral, e ficamos observando a chegada dos peregrinos. É tão interessante contemplar as reações das pessoas. E emocionante também. A cena mais comovente que vimos foi a de uma família, pai, filho e esposa. Quando eles chegaram, o pai largou a mochila, se deitou no chão (molhado, porque chovia muito) e começou a chorar. O filho de ajoelhou e ficou faazendo carinho na cabeça dele. Até que eles se levantaram, a mãe se aproximou, e os três ficaram abraçados, no meio da praça, sob a chuva. Fiquei toda arrepiada, e não pude evitar as lágrimas. É claro que você acaba se reconhecendo um pouco naquela emoção. Também é muito bonito ver companheiros de caminhada se reencontrando, seja na praça, seja nas ruas no entorno da Catedral.
Comemos
numa tasca, um lugar simples, mas local, fugindo do turístico, e com a comida
muito saborosa. O pai de Bia tinha pedido para ela comer um polvo por ele.
Comemos um polvo a galega (ou à feira),
e eu ainda comi um cotovelo de porco delicioso! Bia foi no peixe. Estava tudo
muito bom. Acabamos de almoçar tarde e eu corri de volta pro albergue, porque
tinha marcado massagem para as quatro e meia. Foi a melhor coisa do mundo!!!
Fiz uma massagem relaxante, de corpo inteiro. Uma hora e meia. Não podia ter me
dado presente melhor. Acho que agora sou uma nova mulher, rs, rs, rs. Já posso
recomeçar a caminhar! Brincadeira. O que é sério, é que ele me disse que com
uns dias de gelo e anti-inflamatório meu pé deve ficar bom. Me animei porque
esse massagista, Miguel, também é quiroprata. Vamos cruzar os dedos.
Bom, após a massagem,
tomei banho e fui com Bia num mercadinho. Compramos uma massa, que cozinhamos
para o jantar. O albergue tem uma boa cozinha. E agora estou aqui, entada na
minha cama, te escrevendo. Amanhã pego o trem para Madri às dezesseis horas. Devemos
tomar café da manhã no albergue mesmo e depois vou tentar dar uma olhada nas
lojinhas (que existem aos montes) dos arredores. Reza aí pra não chover! Quem
sabe eu consigo tirar umas fotos mais bonitas da Catedral? Talvez eu vá
novamente à missa. Veremos.
Minha Irmã, muito
amada, com essa carta encerro meu relato da longa jornada que me trouxe até
Santiago! Muito obrigada por sua companhia,
por sua torcida, por suas orações, e pela paciência em ler tão longas cartas (e
me perdoe os muitos erros, pois nunca tive energia para revisar nenhuma delas)!
Tentei compartilhar minhas emoções, mais que qualquer outra coisa. Novas
jornadas me esperam, nos esperam, pois, lembrando a última das Bem-aventuranças
do Peregrino: Bem-aventurados os que
descobrem que o verdadeiro caminho começa quando se acaba. Vamos em frente,
então, segurando firme na Mão Amorosa, Misericordiosa e Fiel do nosso Pai.
TE AMO!!! Que você
esteja sempre com Deus, assim como Ele está sempre com você, assim como Ele
está sempre com cada um de nós.
Beijos cheios de
saudade,
Léia