01/11/15
Minha Amada Nica,
Hoje fez um
esplendoroso dia de sol! Depois de tanta chuva, finalmente um céu espelhado,
poucas nuvens no céu, e daquelas branquinhas, parecendo fiapos de algodão. Não
sei se foi a energia quente do sol, o fato é que caminhei com muita disposição
e alegria. Acho que os Anjos também me ajudaram, porque apesar de ter caminhado
o dobro de ontem, senti muuuito menos o peso da mochila. Eu tinha mesmo rezado
ontem à noite, pedindo aos meus anjos da guarda que me dessem uma mãozinha, pra
ver se eu me cansava menos. Por isso que eu te digo, a gente sempre deve pedir
aos Céus aquilo de que tem necessidade. Por mais ínfima que pareça a questão.
Aliás, quando a gente almeja algo muito grande, que pela sua complexidade pode
ser uma graça mais demorada para receber, é ainda mais importante pedir o
miúdo, a paciência, o alento, a força de que a gente precisa no percurso.
Vim sentir o cansaço
das costas já no finalzinho, chegando em Melide. Muito diferente dos últimos
dias, em que eu sentia necessidade de parar a cada dois quilômetros, tirar a
mochila, descansar as costas e alongar. E olhe que eu nem dormi bem. Muito
embora o albergue fosse muito confortável, vários fatores acabaram fazendo com
que minha noite de sono fosse muito partida. Primeiro, não consegui achar meus
protetores auriculares, e havia umas três pessoas roncando ou ressonando forte.
Depois, o aquecedor ficou ligado a noite toda, e como estou dormindo com roupa
térmica, acaba que senti calor, e fui acordando e tirando as peças de roupa,
deixei o cobertor de lado e fiquei só com o saco de dormir. Por fim, senti
muita sede ao longo da noite – acho que por causa do aquecedor --, então,
fiquei acordando para beber água e, por consequência, ir ao banheiro. Curioso é
que mesmo não dormindo direito, acordei cheia de disposição. Fui logo tomar o
café da manhã do albergue e me organizei na maior tranquilidade, com o quarto
só pra mim, porque todo mundo desceu para fazer o desjejum. Sempre me dou bem
com essa estratégia de ir no contrafluxo, nos albergues.
Depois de deixar para
trás a área urbana de Palas de Rei, passei por uns sítios, com hortas e os tais
silos de que te falei. Aliás, vi um deles aberto, e constatei que eles
realmente servem para armazenar milho. Os que vi hoje eram mais simples, sem
ares de jazigo e sem cruz no topo. A caminhada entre Palas de Rei e Melide foi
variando entre essas vizinhanças meio rurais, pastos e matas. Ainda que essas
matas sejam muito semelhantes, não consigo deixar de me encantar com as árvores
cobertas de musgos, os muros de pedra, o chão coberto de folhas. Sempre tenho a
sensação de estar num filme de fantasia, tipo as Crônicas de Nárnia, o Senhor
dos Anéis, ou outros mais singelos, que assistimos na nossa infância. Em todo
caso, seriam a morada ideal de fadas, duendes e quaisquer seres mágicos. Ainda
por cima, hoje havia um perfume adocicado no ar, como se de alguma árvore
frutífera. Só não vi os frutos.
Como te disse, estava
caminhando com o coração leve e alegre, nem sei bem porquê, até que vi uma
casinha, à beira da estrada, com uma plaquinha anunciando sessões de Shiatsu
(no povoado de San Xulián). Uma moça com feições meio nórdicas me recebeu e me
convidou para entrar numa salinha cheia de bijuterias feitas com pedras
preciosas, unguentos e cremes para venda. Havia uma gostosa lareira num canto.
Com alguns minutos de conversa, acabei me decidindo por fazer uma sessão de Shiatsu.
Eu só iria caminhar 14 quilômetros até Melide, então, dava para parar por uma
horinha. Shiatsu é uma técnica japonesa ou chinesa de massagem, que trabalha
com pressão nos meridianos do corpo. Sempre tive curiosidade de fazer, e meu
coração me disse que era a hora. A ideia é eliminar pontos de tensão e
equilibrar a energia do organismo, que pode se desorganizar por diferentes
razões, inclusive pelo estresse físico.
Francisca é suíça,
casada com um espanhol bem simpático, e tem duas filhinhas fofas! O marido saiu
com as meninas quando íamos começar a sessão. Amei o Shiatsu!!! Ao final estava
com o corpo inteiramente relaxado. Eu ainda estava deitada no tatame, criando
coragem para me levantar, quando eu e Francisca começamos a conversar sobre
minha viagem, minha jornada de crescimento espiritual, minha busca por me
tornar uma pessoa melhor. Terminamos emocionadas, todas duas. Retomei meu
caminho ainda mais leve e muito agradecida por mais esse mimo dos Céus.
O resto da caminhada
foi do jeito que descrevi, ora em meio às árvores de algum bosque, ora cruzando
algum lugarejo com quatro ou cinco casinhas e suas hortas e criadouros de
pequenos animais. Ah! Vi duas belas Igrejas românicas, que a gente identifica
logo, pelos umbrais arredondados de portas e janelas, pelo friso em xadrez, e
pelos capitéis com motivos vegetais ou de seres míticos. Amo essa arquitetura.
As Igrejas estavam fechadas, portanto, só as vi por fora.
Já chegando perto de
Melide atravessei uma área industrial, com grandes galpões. A essa altura, o
Caminho margeia uma rodovia, e só se ouve mesmo o barulho chato dos veículos.
Mais à frente, passei por uma alameda de árvores altas, já bem peladinhas, com
troncos finos e esbranquiçados. Era um modesto parque urbano, chamado Bosque
dos Peregrinos. Depois desse parque, cruzei mais uma mata e quando a mata
terminou, avistei uma linda ponte de pedra, de vários arcos arredondados, e, do
outro lado, um conjunto de cantigas casa de pedra. Fiquei toda feliz, pensando
que tinha chegado a Melide. Deixa que não era. Ainda estava na periferia de
Melide, num lugarejo chamado Furelos. Faltava um quilômetro e meio para chegar
ao meu destino. Foi nessa hora que comecei a me sentir cansada. Acho que é
coisa da cabeça, né? Tava na expectativa de uma coisa e quando se frustrou,
começou a trabalhar contra mim. A mochila começou a pesar só nesse trechinho
final. Ainda assim, me sentia bem menos cansada que ontem.
Na entrada de Melide,
propriamente dita, passei por uns condomínios coloridos e caminhei por uma
vizinhança de classe média alta, até que passei pela porta de um restaurante
que me chamou a atenção. Estava bem disputado, e pela clientela local. Na de
menu do peregrino. Restaurante bem frequentado pelos locais é sempre um bom indício.
Entrei na Casa Alongo e comi um delicioso Pulpo
a feria. Sei que você não gosta de polvo, mas pra quem gosta, posso dizer
que esse estava divino! Eu estava precisando provar um bom polvo gallego. É a especialidade da Galícia.
Almoçada, venci os
metros finais até o centro de Melide. Como ainda era cedo e o sol estava ainda
radiante, aproveitei para dar logo uma volta pelo centro histórico. Melide tem
uma preciosidade românica bem à entrada, que é a Igreja de São Roque. E tem a
Igreja do Espírito Santo, que parece ser parte de um Convento. Essa última
estava aberta e pude vê-la por dentro. O prédio está muito degradado, o que me
encheu de pena. Só achei interessante o retábulo do altar principal, Barroco,
com a representação da descida do Espírito Santo sobre Maria e os Apóstolos.
Porém, tudo estava com cara de abandono dentro da Igreja. Do lado de fora, um
musgo amarelo recobre alguns trechos da fachada.
Não foi só a Igreja,
Melide como um todo me deu uma triste sensação de abandono. As ruas são
estreitas e tortuosas, e sobrados de distintas épocas exibem as marcas da
decadência e do abandono. Uma pena. A verdade é que esse centrinho de Melide lembrou-me,
um pouco, o bairro de São José, no Recife, num dia de domingo.
Achei um albergue bem
bonzinho, O Pereiro (com o mesmo).
Cheguei junto com um senhor austríaco e o rapaz do albergue, muito gentil,
acabou abrindo o último quarto para nós, para podermos ficar em camas baixas.
Fiquei muito feliz, porque os beliches de madeira são altos demais. Depois do
banho, desci para colocar minha bolsa de gelo no congelador e encontrei um
casal de senhores japoneses, que havia conhecido ontem, no albergue de Palas de
Rei.
Atsushi e Mitsuko são
umas gracinhas! Têm aquela doçura, aquela singeleza que parece ser tão comum
nos japoneses. Ou pelo menos é essa a minha impressão. Eles já devem ter perto
de setenta e estão fazendo apenas uns dez quilômetros por dia. Eu os alertei de
que nessa etapa final, é bom eles se certificarem se que os pequenos albergues
da beira da estrada, onde pretendiam se hospedar, ainda estão abertos. Resumo da
ópera, acabei que eu usei minha conta do Skype e liguei para vários albergues,
até achar duas pousadas onde eles podem fazer suas pausas. Atsushi me deu dois
cartões de visita dele, que ele mesmo pinta. Sabe aquelas aquarelas japonesas,
delicadíssimas, que parecem mais uns desenhos? Pois os cartões de visita dele
são assim. A coisa mais linda! Se fossem maiorzinhos, era o caso de emoldurar e
pendurar na parede. Já os guardei com todo cuidado.
Estou te escrevendo na
sala de estar do albergue. Daqui a pouco vou subir, para ir relaxando, e ver se
durmo bem hoje. Amanhã será mais um dia curto, apenas 14 quilômetros. Os
últimos dois é que serão mais puxadinhos, mas há de dar tudo certo. Vai rezando
por mim! Tô quase lá!
Beijos mil,
Léia
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