quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: chegando a Santiago de Compostela


05/11/15

Minha Amada Irmã!!!
Após 46 dias de caminhada, cheguei ontem a Santiago de Compostela!
No total, foram 56 dias de Caminho. Quase 800 kms percorridos, com meus pés, com o apoio imprescindível de Cosme e Damião (meus caríssimos bastões), e, principalmente, com a Graça e a Presença permanentes de Deus.
Tão difícil descrever a emoção da chegada a Santiago… na verdade, foi uma emoção gradual, porque acho que a minha ficha foi caindo aos poucos...
Saí de O Pedrouzo já debaixo de chuva. Tinha dormido muito bem, tanto que nem ouvi o movimento dos demais peregrinos. Quando acordei, já às sete e meia da manhã, só restávamos eu, Bia e um rapaz duas camas antes de mim. Todo o resto do pessoal já tinha partido. Tomei café com Bia, ajudei-a a resolver uma bronquinha no envio da mochila dela, e saímos as duas juntas. Eram nove da manhã. Meu pé tinha acordado mais dolorido que nos últimos dias. O arco plantar estava me incomodando mais, inclusive, do que o tendão do calcanhar. Comecei a andar pedindo a Deus que me concedesse a graça de chegar naquele dia.
Eu tinha pensado que chegaria sozinha a Santiago, e até estava contando com a ideia de caminhar só, para fazer minhas derradeiras orações e meditações andantes. Mas confesso que foi muito bom chegar a Santiago com uma boa companhia. E eu e Bia caminhamos o dia todo a certa distância uma da outra, porque creio que nós duas sentimos que precisávamos desses momentos solitários, para reflexão e conexão com Deus. De todo modo, Bia estava caminhando mais rápido que eu. Ficamos nos encontrando nos cafés, quando parávamos para descansar.
Os primeiros dez quilômetros foram de uma caminhada bem agradável (apesar das subidas e descidas), passando em meio a muitas matas, dessas que já lhe descrevi tantas vezes, e que me encantaram até o final, com suas altas árvores cobertas de musgos e heras. Em alguns trechos, as heras pendiam das árvores, sobre a estrada, parando a bem curta distância da cabeça dos passantes.
Nessa última etapa, o Caminho passa ao lado do aeroporto de Santiago. Um extenso gradil está coberto de cruzes, fotos, fitas, camisetas, e objetos variados, deixados pelos peregrinos, ao longo dos anos, talvez como derradeiros marcos das intenções apresentadas a Deus, antes da chegada a Santiago. Passar ao lado do aeroporto me deu uma sensação muito boa, de proximidade com o destino final.
Após deixar o aeroporto para trás, ainda caminhei um bocadinho pelo meio de matas e ao lado de bosques de pinheiros. Até que de repente passei a caminhar à beira de uma estrada asfaltada, em uma área mais aberta, com campos, hortas e casas mais próximas umas das outras.
Choveu muito o dia todo. E quanto mais próxima eu fui chegando de Santiago, creio que mais forte a chuva foi ficando. Comecei a me lembrar do primeiro de dia de caminhada, quando cruzei os Pirineus debaixo de muita chuva. E pensei: Nossa, é como o encerramento de um ciclo; parti com muita chuva e chego com muita chuva. E daí em diante passei a me lembrar dos momentos mais bonitos do Meu Caminho, pus-me a rezar pelas pessoas que conheci ao longo dessa jornada, e fui ficando cada vez mais emocionada. Quando dei por mim, estava chegando ao Monte do Gozo. Avistei Bia, que me esperava junto a uma barraquinha, ao lado de uma capela.
No alto do Monte do Gozo tem um monumento. E de lá, é possível vislumbrar Santiago. Como chovia muito, e uma neblina encobria o vale, Santiago apareceu para mim apenas como uma leve silhueta. Eu podia ver o contorno das edificações como uma sombra negra em meio à névoa, por trás da cortina de água. Mesmo assim, foi uma forte emoção. Eu sabia que dali até a porta da Catedral seriam apenas mais 4,5 kms! Me ajoelhei aos pés do monumento e rezei agradecendo a imensa Graça de ter chegado até ali. Ainda entrei na capelinha e rezei novamente. Enquanto permaneci no Monte do Gozo, estive tomada por um forte e comovente sentimento de gratidão, e chorei bastante.
Tomei um chá com Bia, para aquecer um pouco o corpo, e começamos nossa derradeira descida. A partir dali caminhamos bem próximas uma da outra. O trajeto nessa parte final não é tão belo, porque a gente vai entrando no perímetro urbano de Santiago, que é, hoje, uma cidade de grande porte. Algo em torno de cem mil habitantes. A gente anda um longo trecho por avenidas movimentas, amplas, com muitos prédios de vários andares, restaurantes lojas. Todo o movimento acelerado, o tráfego intenso, o barulho, e a poluição visual de uma grande cidade. Depois de muito caminhar nesse cenário meio caótico, finalmente a gente começa a adentrar uma área da cidade com ruas mais estreitas e sobrados de dois andares, compridos e finos, paredes de pedra e varandas de madeira e vidro. Começa aos poucos, para o visitante, uma viagem no tempo. Saímos do século XXI e começamos a nos deslocar em direção ao final do XIX, e quanto mais nos adentramos pelas ruas estreitas, mais longe vamos viajando no tempo, até que finalmente chegamos ao coração do centro histórico, com suas várias Igrejas, suas edificações de grossas paredes de pedra, e a enorme Catedral.
O Caminho chega pelos fundos da Catedral. Pedindo informações (pois a essa altura já não há as setas), seguimos direto, descemos umas escadas, cruzamos um arco, onde havia um jovem tocando uma gaita de fole lindamente, e, enfim, após dobrar à esquerda, nos encontramos na praça do Obradoiro, com a fachada principal à nossa frente. A sensação nesse momento foi um misto de alegria, alívio e incredulidade.... ficamos paradas, por alguns minutos, abestalhadas, olhando as altíssimas torres, encobertas pelas redes de proteção da obra de reforma da fachada. Tiramos fotos, para registrar o momento da chegada, e fomos atrás da porta para entrar na Catedral para rezar. Foi quando descobrimos que é proibido entrar na Catedral com mochila. Saímos, então, à procura de um local onde eu pudesse deixar minha mochila. Nos indicaram a Oficina do Peregrino. Para lá nos dirigimos. Mas deixa que era a Oficina de Acojida dos Peregrinos, onde se selam as credenciais e se dão os certificados de peregrinação.  Já que estávamos ali, pegamos a pequena fila e esperamos para selar logo nossas credenciais e pegar o documento que atesta que nós, de fato, fizemos o Caminho de Santiago. Devidamente documentadas, decidimos ir logo procurar a mochila de Bia, que tinha sido enviada para uma Oficina de Información. Rodamos um pouco e finalmente conseguimos resgatar a mochila dela.
Chovia muito, e como descobrimos que a Catedral fica aberta até as oito e meia da noite, resolvemos procurar logo um albergue, deixarmos as mochilas e depois irmos à Catedral. Como Bia tem um desses aplicativos maravilhosos, que falam tudo dos albergues, já fomos certeiras num albergue novinho e bem avaliado. Felizmente, tinha lugar. Chama-se The Last Stamp. Nos instalamos, tomamos banho e fomos correndo para a Catedral, pois, a essa altura, já passava das oito da noite.
Quando chegamos na Catedral, a missa estava terminando. Foi nós nos sentarmos no banco e o padre pedir para todo mundo se levantar, para a bênção aos peregrinos. E fui durante essa bênção que senti, efetivamente, a emoção plena da chegada. Um choro de Alegria e Gratidão tomou conta de mim. Terminada a bênção, ainda fiquei ali, ajoelhada, agradecendo profundamente a Deus por ter me concedido a imensa felicidade de fazer o Caminho.
Sabe, Niquinha, não digo que não seja importante chegar. Pelo contrário. Agradeci muito pela força, pela coragem, pela disposição que certamente me foram concedidos em abundância, para que eu pudesse caminhar quase oitocentos quilômetros. Porém, sempre senti que a maior das bênçãos era a possibilidade de estar ali, caminhando, percorrendo essa via espiritual, esse caminho mágico de que fala Paulo. E era, principalmente, a possibilidade de percorrer essa via como uma forma de agradecer a Deus pela Graça que busco, e tenho certeza de Fé que receberei. Não caminhei pedindo. Caminhei agradecendo. Sempre. Pois sei que Nosso Pai, que nos ama, infinita e misericordiosamente, sempre nos concede aquilo que pedimos. No tempo certo, e da forma mais perfeita.
E o Amor de Deus é tão incrível, que vim para agradecer uma Graça futura e ganhei, além da Graça, uma experiência incrível, mágica mesmo, de crescimento e cura interiores. Escrevendo para você, neste exato momento, ainda choro de emoção: por todas as belezas que vislumbrei; por todas as pessoas que conheci e que me mostraram, com seu desprendimento e generosidade, a face mais linda do Amor de Deus; por todos os amigos que fiz; por toda a energia que senti se desprender da terra, das árvores, dos rios, e entrar em mim, pelo meu nariz, pela minha pele, pelos meus olhos; pelas intensas sensações de conexão com meu Criador, que experimentei em tantas ocasiões; pelas dores que me fizeram andar devagar e, assim, aprender a Paciência, a Humildade, a Confiança, a Entrega; pelas dificuldades que me fizeram parar e, assim, desfrutar mais detida e profundamente a experiência do Caminho; pelas pessoas que me ajudaram e por aquelas que tive a oportunidade de ajudar; pela viagem interior que pude fazer, enquanto vencia os quilômetros; pelas feridas tratadas e saradas; pela aprendizagem do despojamento e da simplicidade; pela diminuição do EU; pelos perfumes novos, pelos sabores inusitados, pelas paisagens surpreendentes.... enfim, foram tantas e tão incríveis as dádivas, que não é possível enumerá-las todas. Creio que por muito tempo ainda estarei realizando novas descobertas, relembrando e aprendendo.
Várias pessoas já disseram que não existe um Caminho de Santiago. Há inúmeros Caminhos. Tantos quantos sejam os peregrinos. Eu acrescentaria que além de cada peregrino ter Seu próprio e particular Caminho, ele não acaba. Essa é a sensação que eu tenho agora, a de que cheguei a Santiago, mas o Caminho continua em mim, como uma jornada ainda em curso. Talvez ele dure para sempre. Quem poderá dizer que frutos o Caminho ainda seguirá gerando em mim? Sou e serei eternamente grata por tudo o que o Caminho significou, significa e significará na minha vida, nas nossas vidas, Minha Irmã.
E para voltar ao prosaico, antes de encerrar essas Cartas, quero acrescentar que após a emoção da bênção na Catedral, fizemos nossa visita ao túmulo do Apóstolo. Uma bela caixa de prata contém seus restos, e está abaixo do altar principal. As pessoas fazem fila e vão passando na frente do túmulo, e pode-se parar, ajoelhar-se num genuflexório e rezar um pouco, antes de dar a vez ao próximo. Também pegamos a fila parar subir no altar e tocar o busto de Santiago (creio ser também um relicário), por trás. Paguei o ritual e fiz minhas orações, pedindo a colaboração do Santo para a minha Graça.
Da Catedral fomos a um restaurantezinho simpático, chamado Cervantes, comemos uma deliciosa salada de camarão com queijode cabra e nozes, e tomamos um vinho para brindar nossa chegada. Voltamos para o albergue, localizado bem perto da Catedral, ainda debaixo de chuva. Foi quando liguei para vocês pelo Skype. Foi muito bom conversar com vocês de viva voz, depois de quase dois meses! Acaba que fui dormir muito tarde. Ainda assim, vi que havia muitos peregrinos pelas ruas, certamente comemorando o final de suas jornadas.
Eu pretendia acordar tarde hoje. Só que uma galera que estava no meu albergue acordou bem cedo para irem a Finisterre (o final da rota, já chegando ao Oceano). Seis e meia eu já estava acordando. Ainda enrolei um pouco na cama, mas sete e meia me levantei. Eu e Bia fomos tomar café da manhã num restaurante em frente ao albergue. Tomamos um chocolate quente divino, cremosíssimo, com churros. De lamber os beiços. Não sei porque não pensamos em juntar essas duas maravilhas, aí no Brasil. A combinação é perfeita.
Hoje continuou chovendo muito! Enfrentamos a chuva e fomos até a estação ferroviária, para eu comprar minha passagem de trem. Depois, fui à agência dos Correios para pegar minha encomenda (lembra que despachei umas coisas em Samos?), e de lá fomos assistir à missa do meio-dia, na Catedral, que é a mais concorrida. É a essa missa que os peregrinos mais acorrem. Nos sentamos pertinho do altar. Como chegamos antes da missa começar, fiquei apreciando a decoração da Igreja. A Catedral de Santiago é enorme. Trata-se de um edifício alto e amplo, com várias naves, e muitos arcos. Na ponta da nave principal está o altar de Santiago, que tem um retábulo Barroco imenso. É uma peça feita para transmitir uma impressão de grandiosidade, força e opulência. O busto de Santiago, em prata, ocupa o centro do altar. Sobre ele, enormes anjos, de asas e vestes douradas sustentam uma espécie de dossel, de ouro, sobre o qual há uma outra peça esculpida em madeira, com uma outra imagem de Santiago, a cavalo, lá no mais alto, e umas figuras de anjos guerreiros nas laterais. O conjunto do retábulo me lembra um Triunfo de um imperador romano. Confesso que me causou estranheza. Me pareceu grandiloquente demais para uma Igreja...
Sabe o que é muito engraçado? Eu já tinha estado duas vezes em Santiago, e a minha sensação é de que estou aqui pela primeira vez. Não consigo acessar minha memória dos lugares. Lembro bem de cenas com Deolinda, com César, de momentos vividos, porém, não consigo me lembrar dos lugares. Com relação à Catedral, minha única lembrança é o turíbulo gigante (ou fumeiro). Não é curioso isso?
Enfim. Antes da missa, uma freirinha super simpática ficou ensaiando uns cânticos com a gente. A voz dela era belíssima. E a música vinha dos dois enormes órgãos da nave principal. Acho que nunca vi órgãos tão grandes. São elaboradíssimos, inteiramente decorados com figuras de anjos barrocos. A missa em si foi meio esquisita. Não sei. Acho que faltou emoção, de um lado. E, de outro, tinha um grupo de peregrinos que fazem parte de uma empresa. E o padre, no sermão, falou muito dessa empresa. Achei um negócio tão estranho. Ainda por cima, no final, ele não deu a bênção dos peregrinos. Não entendi porquê. Só sei que dei Graças a Deus por termos pego a bênção ontem à noite. A coisa boa é que fizeram a cerimônia do turíbulo (desconfio que o grupo de peregrinos da empresa pagou, porque o fumeiro só é aceso na sextas e domingos, a menos que se pague; assim me informaram). É sempre um espetáculo ver o belo e grande fumeiro voando por sobre as cabeças das pessoas.
Da missa, deixei minha caixa no albergue e fomos comer. O pai de Bia disse pra ela escolher um restaurante que o almoço era por conta dele, e mandou me convidar. Não é gentil?!!! Só que no caminho pro restaurante, passamos pela praça da Catedral, e ficamos observando a chegada dos peregrinos. É tão interessante contemplar as reações das pessoas. E emocionante também. A cena mais comovente que vimos foi a de uma família, pai, filho e esposa. Quando eles chegaram, o pai largou a mochila, se deitou no chão (molhado, porque chovia muito) e começou a chorar. O filho de ajoelhou e ficou faazendo carinho na cabeça dele. Até que eles se levantaram, a mãe se aproximou, e os três ficaram abraçados, no meio da praça, sob a chuva. Fiquei toda arrepiada, e não pude evitar as lágrimas. É claro que você acaba se reconhecendo um pouco naquela emoção. Também é muito bonito ver companheiros de caminhada se reencontrando, seja na praça, seja nas ruas no entorno da Catedral.
Comemos numa tasca, um lugar simples, mas local, fugindo do turístico, e com a comida muito saborosa. O pai de Bia tinha pedido para ela comer um polvo por ele. Comemos um polvo a galega (ou à feira), e eu ainda comi um cotovelo de porco delicioso! Bia foi no peixe. Estava tudo muito bom. Acabamos de almoçar tarde e eu corri de volta pro albergue, porque tinha marcado massagem para as quatro e meia. Foi a melhor coisa do mundo!!! Fiz uma massagem relaxante, de corpo inteiro. Uma hora e meia. Não podia ter me dado presente melhor. Acho que agora sou uma nova mulher, rs, rs, rs. Já posso recomeçar a caminhar! Brincadeira. O que é sério, é que ele me disse que com uns dias de gelo e anti-inflamatório meu pé deve ficar bom. Me animei porque esse massagista, Miguel, também é quiroprata. Vamos cruzar os dedos.
Bom, após a massagem, tomei banho e fui com Bia num mercadinho. Compramos uma massa, que cozinhamos para o jantar. O albergue tem uma boa cozinha. E agora estou aqui, entada na minha cama, te escrevendo. Amanhã pego o trem para Madri às dezesseis horas. Devemos tomar café da manhã no albergue mesmo e depois vou tentar dar uma olhada nas lojinhas (que existem aos montes) dos arredores. Reza aí pra não chover! Quem sabe eu consigo tirar umas fotos mais bonitas da Catedral? Talvez eu vá novamente à missa. Veremos.
Minha Irmã, muito amada, com essa carta encerro meu relato da longa jornada que me trouxe até Santiago! Muito obrigada por sua companhia, por sua torcida, por suas orações, e pela paciência em ler tão longas cartas (e me perdoe os muitos erros, pois nunca tive energia para revisar nenhuma delas)! Tentei compartilhar minhas emoções, mais que qualquer outra coisa. Novas jornadas me esperam, nos esperam, pois, lembrando a última das Bem-aventuranças do Peregrino: Bem-aventurados os que descobrem que o verdadeiro caminho começa quando se acaba. Vamos em frente, então, segurando firme na Mão Amorosa, Misericordiosa e Fiel do nosso Pai.
TE AMO!!! Que você esteja sempre com Deus, assim como Ele está sempre com você, assim como Ele está sempre com cada um de nós.
Beijos cheios de saudade,

Léia

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 45



03/11/15

Niquinha!!!!
Já estou a 20 quilômetros de Santiago! Se Deus permitir, amanhã chego lá!
Nem vou escrever muito hoje, porque conheci Bia, uma carioca que está hospedada no mesmo albergue que eu, e ficamos conversando até agora. Por aqui já são dez da noite e a galera já tá se recolhendo. Estou em O Pedrozo, num albergue todo descolado, chamado Rem. É uma espécie de amplo loft, embaixo, que está muito bem ambientado, com cortinas de voal separando os espaços, abajures, tudo em tons de cinza, com uns toques vermelhos. Em cima fica uma área comum, com uma pequena copa. Bem legal. Só tem dois problemas: a área dos chuveiros não tem nenhuma divisória, é banho coletivo mesmo (unissex, claro!) e é frio. Por sorte, tem várias camas vazias e eu saí catando as mantas, pra não passar frio de noite.
No meu passinho de formiga consegui vencer os vinte quilômetros de hoje, com mochila nas costas. O pé reclamou um pouquinho no início, mas até que chegou bem. Caminhei com um pouco de chuva, nas primeiras horas. Depois, estiou e ficou só o céu nublado. De novo teve muitas subidas e descidas. Com a capa de chuva e o esforço adicional das subidas senti um certo calor.
A paisagem foi muito semelhante à de ontem. Muitas matas com árvores cobertas de musgo e hera, pastos, pequenas plantações e hortas. Cruzei com umas vacas que vinham andando pela estradinha enlameada da chuva e passei por um galinheiro com galinhas supernutridas, de bela plumagem marrom. Em certo momento, vinha andando pela estrada, rezando, quando noto muita uva esparramada pelo chão. À beira de um bosque, aquilo me pareceu inusitado. Levantei a vista e vi uma parreira carregada, que cresceu entre os galhos das árvores. Tão interessante! Ainda consegui puxar um ramo da videira e colhi umas uvas para provar. Eram pequenas, negras e docinhas.
De novo, passei por vários lugarejos de três ou quatro casas, e por pequenos povoados, onde parei para tomar um chá, comer uma bobagem, carimbar meu passaporte e descansar um pouco os pés e as costas. Num dos lugarejos, uma casa tinha a parede externa cheia de pequenos cartões coloridos, plastificados, com pensamentos e reflexões. O primeiro deles dizia: filosofia grátis. Coisas do Caminho. E o que a pessoa faz quando chega num povoado e vislumbra duas opções de café, à beira da estrada: um mais requintado, com guarda-sol, na frente de uma pousada bem arrumada, e o outro cheio de camisas coloridas penduradas no teto, paredes e janelas cobertas de mensagens escritas em hidrocor por centenas de peregrinos, e um rock’n roll de raiz, daquele dos primórdios, tocando num alto-falante precariamente fixado na árvore defronte da casa? Claro que a pessoa para no segundo! A Casa Verde, no povoado de Salceda, é mesmo um lugar pitoresco. Estava cheia de peregrinos. Alguns, inclusive, dançando, embalados pela música animada. Havia alegria no ar. Sentei-me em uma das mesas inteiramente cobertas de mensagens rabiscadas por peregrinos, e tomei um chá enquanto observava o ambiente e as pessoas. Um senhor de barba branca e turbante na cabeça conversava animado com um grupo de peregrinos. A dona do bar parecia a mais animada de todos. Sorria permanentemente e acompanhava a música com os movimentos do corpo, enquanto atendia os fregueses. Adorei o lugar.
Já pertinho de O Pedrouzo, passei por uns bosques de árvores muito altas, com troncos finos, já meio pelados. Não eram pinheiros, mas também não soube identificar que árvores seriam. Confesso que já estava com as costas bem cansadas nos quilômetros finais. Dei graças a Deus quando cheguei e achei logo um bom albergue (dentro daquela minha teoria de que albergue bom é albergue novo). Na verdade, estava com outro albergue na cabeça (também novinho), porém, ele estava lotado, com um grupo grande de estudantes que creio fossem alemães. Mas o Rem era duas casas depois. Só fiquei um pouco triste porque quando pedi ao rapaz do primeiro albergue uma sugestão de lugar, ele veio com uma conversa de que estavam todos cheios, que alguns já tinham fechado, e que podia ligar pra ver se tinha vaga numa pensão. Pensões costumam ser bem mais caras. Agradeci e recusei, porque tinha visto o Rem de passagem. Quando cheguei aqui, tinha cama de sobra. Parece que por conta de competição pelos peregrinos, o rapaz não quis me indicar seu vizinho. Isso me entristeceu, e me lembrei dos comentários que venho escutando sobre como o Caminho está se tornando mais turístico e comercial. Uma pena. Espero que essa fase não dure muito.
Fui ao supermercado, fiz umas comprinhas e preparei uma salada bem gostosa, que comi com o resto da tortilla de ontem. Estava comendo quando chegou Bia, e começamos uma boa e longa conversa, que só parou quando começaram a apagar as luzes das áreas comuns. Bia, como muitas pessoas, começou a me confortar por eu ter tido problemas com o pé e ter levado tanto tempo para fazer o Caminho. Eu lhe disse que fiz o Caminho no tempo certo. Levei o tempo necessário para a minha viagem interior. E me sinto profundamente agradecida pelo luxo de dispor de tanto tempo assim, pelo privilégio de poder andar devagar, desfrutando de cada recanto, de cada paisagem, e, principalmente, de poder parar e me conectar com os lugares e pessoas. Como sei que tudo de Deus é perfeito, tenho a certeza de que chegarei a Santiago no tempo certo, nem um minuto antes, nem um minuto depois.
E por hoje é só. Vou dormir, pra ver se consigo sair mais cedo amanhã.
Beijos mil, Minha Irmã!

Léia

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 44


02/11/15

Apóstolo Santiago:
Estou aqui, como milhares de peregrinos, ao longo dos séculos, oferecendo a Deus o cansaço do Caminho. Venho com o desejo de aprender a caminhar pela senda da Vida, que é Cristo. Ajuda-me, tu que seguiste o Mestre até dar tua vida por Ele. Dá-me um coração grande e generoso como o teu, para que também eu seja apóstolo de Cristo. / Maria Santíssima, Rainha dos Apóstolos, faz-me sentir o amor e a ternura do teu coração. Ajuda-me com teu sorriso e teu carinho de Mãe a percorrer o caminho da vida com a alegria dos filhos de Deus. / Roga por nós, bem-aventurado Santiago. Para que sejamos dignos das promessas de Nosso Senhor Jesus Cristo. / Oremos: Aceita, Senhor, as súplicas que te dirigimos por meio do teu Apóstolo Santiago, e faz com que a peregrinação ao seu sepulcro, farol de unidade cristã, nos disponha a percorrer juntos o caminho que conduz à glória eterna. Por Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
Eis, Niquinha, a oração a Santiago, que ganhei hoje numa Igrejinha do Santo, em Boente. Lá assisti à missa do Dia de Finados. Um padre velhinho e simpaticíssimo me recebeu com tanta alegria e carinho! É uma Igreja pequenina, caiada de branco, com uma torre de sinos vazada, mais comprida e delgada que as que tenho visto. O interior é muito simples e o altar tem as feições renascentistas que não me encantam muito. Mas nada disso importa. Assisti à missa tão comovida. Parecia que todos os senhorzinhos e senhorinhas da pequena Boente estavam lá, para rezar por seus mortos. Eles iam chegando e depositando papéis dobrados em cima do altar. A missa foi rápida, talvez mais curta que a leitura dos papeizinhos, logo antes da bênção final. A cada intenção, rezávamos um Pai-Nosso e o padre encomendava as almas dos mortos. Em silêncio, rezei pelos meus.
Tão engraçado, porque eu já estava meio que num espírito de finalização do Caminho. Já com vontade de chegar, e achando que tinha vivido o que era necessário e importante. E, no entanto, o Caminho continua me surpreendendo. Antes dessa missa, na saída de Melide, passei por uma outra Igrejinha, toda de pedra, cercada por uns cipestres. Estava aberta e entrei. Havia um rapaz recebendo os peregrinos, carimbando as credenciais e dando explicações sobre a Igreja de Santa María. Nica, eu estava em frente ao altar e José me contava a história daquele templo, e eu fui ficando toda arrepiada. Enquanto ele falou, fiquei emocionada, sem entender muito bem porquê.
Essa Igrejinha de Santa María é uma preciosidade! Foi construída no século XII e o altar tem pinturas em estilo bizantino, do século XIV. Lembra que eu te falei do Panteón, um claustro que existe em León, com umas pinturas magníficas (que não podem ser fotografadas)? Pois é o mesmo estilo. Inclusive, tem a mesma representação, do Senhor do Mundo, cercado de figuras que simbolizam os quatro Evangelistas (águia, touro, anjo e leão). Só que na pintura de Santa María, o Senhor do Mundo é Deus Pai, que segura Jesus crucificado. Todo o altar, inclusive a mesa, está decorado com essas pinturas do século XIV. A Igreja também conserva o exemplar mais antigo da Espanha das grades que se usavam muito nas Igrejas, para separar altares. É um trabalho em ferro tão delicado, como se fossem uns arabescos. E a pia batismal, também do século XII, tem a forma octogonal que era marca registrada dos Cavaleiros Templários. A fachada da Igreja tem, igualmente, várias particularidades templárias. No portal da entrada principal, há um relógio solar de 24 casas. As primeiras casas têm símbolos templários, e lá pelo meio há símbolos celtas, que evocam a energia da Terra. Segundo José, há alguns pontos da Igreja com elevada concentração de energia (lembra que uma brasileira com quem eu caminhei, Celina, me disse que nas pesquisas dela, ela leu que os Templários tinham muito conhecimento sobre a energia dos elementos naturais?). Eu só posso te dar testemunho da emoção que senti enquanto estive ali.
Ah! Aprendi com José a razão de ser dos frisos de xadrez que tanto me encantam nas Igrejas de pedra mais antigas do Caminho (as do período Românico). O óbvio ululante: as Igrejas eram o principal abrigo de quem peregrinava a Santiago. O xadrezinho indicava aos peregrinos o próprio Caminho de Santiago. Numa época ainda extremamente distante das famosas flechinhas amarelas. Ao seguirem as Igrejas com frisos em xadrez, os peregrinos de outrora sabiam que estavam no rumo certo.
Conversei um tempo bom com José, que sabe Reike, e trabalhou um pouco no meu pé. Continuei minha caminhada mais leve e mais alegre. Cruzei muitos bosques na primeira parte. Em dado momento, deu um vento mais forte e vi uma linda chuva de folhas bem à minha frente. Fazia um bonito dia de sol, e eu podia vislumbrar o azul do céu por entre os troncos e galhos das árvores já bastante desnudas. Estava eu andando por uma dessas matas, quando escuto uma flauta. Eu já comentei que esses bosques me dão a impressão de estar numa estória dessas meio mágicas. Pensei, rindo comigo mesma, só me falta aparecer um Fauno aqui. A música era doce e alegre. Não era um fauno, apenas um rapaz, numa velha calça jeans, de barba trançada. Ele é húngaro (esqueci seu nome!) e conheceu a namorada, italiana, no Caminho. Cada um deles tinha um burrinho consigo. Ao observarem a coincidência, entenderam que aquilo não era coincidência. Terminaram o Caminho juntos e agora estão voltando, procurando por um lugar para ficar e montar um ponto de acolhida de peregrinos. No momento, estão acampando, e ficam ali, no meio da mata, pedindo doações. Com uma batata eles fizeram um carimbo que tem a carinha de um burro. No burro de verdade, o mais claro, pintaram um sorriso e a frase Buen Camino. Eu carimbei meu passaporte, fiz uma doação e pedi que ele continuasse tocando. Ele tocou uma música linda, meio celta, chamada O caminho do peregrino. Nos abraçamos e continuei minha marcha.
Foi depois da flauta e dos burros que passei pela Igrejinha de Santiago, onde ia começar a Missa de Finados. Nessa cidadezinha de Boente, pouco antes da Igreja, duas crianças estavam vendendo braceletes numa banquinha. O menino devia ter uns 4 aninhos, e a menina, uns 6. Comprei uma pulseirinha e eles me desejaram Buen Camino. Tão fofinhos! Após a pequena Boente, passei por um lugarejo de poucas casas, e por uma cidade bem charmosinha, Ribadiso de Baixo, com casas de pedra, ao pé de uma ponte medieval toda coberta de musgo e de hera. De resto, quando não estava caminhando pelo meio de bosques, andei por entre pastos, pequenas plantações e vários sítios, com belas hortas. Cada pé de couve imenso. Te juro que via algumas mais altas que eu. Ah! Pela primeira vez na vida vi um pé de kiwi! É uma trepadeira. Cresce que nem videira! Uma graça. Os kiwis ficam penduradinhos feito cachos de uva. Aliás, vi belos cachos de uva nos quintais e fachadas de algumas casas. São uvas distintas das que vi nos parreirais das vinícolas. São grandes e parecem bem suculentas. Fiquei tã tentada a pegar um cachinho... mas não tive coragem.
A caminhada de hoje foi dura, viu? Me surpreendeu. Muitas subidas íngremes e, claro, muitas descidas também. Assim, não foi nada terrível. Só puxado mesmo. Acaba que cheguei a Arzúa sentindo a planta do pé meio dolorida. Mas acho que é mais muscular. A inflamação da lateral está sob controle. O lado bom das subidas é que normalmente nos proporcionam vistas preciosas. Foi o caso hoje. Muitas vistas de vales e colinas. E essa área da Galícia é muito graciosa, porque tem muitas pequenas plantações, e pastos, casinhas perdidas no meio das colinas, vacas, ovelhas. E pelo meio, sempre algum bosque.
Sabe quem eu encontrei na estrada, no meio de um bosque, voltando de Santiago? Nacho. Lembra do espanhol que está peregrinando desde Roma? Pois é. Ele chegou a Santiago junto com o grupo de brasileiros que conheci em O Cebreiro, e agora está voltando. Quer caminhar até Lourdes. Conversamos um pouco. Dei a ele minha medalhinha de São Bento, um abraço bem forte, e segui meu rumo.
Ontem, Flávio tinha me mandado uma foto dele, Paulo e Karine em Santiago. Desde o dia 18 de outubro, mais ou menos, venho recebendo notícias dos meus companheiros de caminhada que já chegaram a Santiago. É sempre uma grande alegria receber a notícia de que alguém que compartilhou momentos especiais com você, chegou a Santiago. É como se uma parte de você também estivesse lá...
Para mim serão mais dois dias de marcha. Estou em Arzúa. Uma cidadezinha sem maiores interesses. Me instalei em um albergue novinho em folha, De Camino. Tomei um banho quente delicioso, meditei um pouco e saí para procurar algum lugar pra comer. Muita coisa está fechada porque é Dia de Finados, então, a cidade está bem morta. De todo jeito, não há nada de muito especial em Arzúa. Nem a Igreja de Santiago tem muita graça. Jantei no Café teatro. Pedi uma salada e um pedaço de tortilla. Veio tanta comida que saí de lá quase passando mal. Gostoso, abundante e barato. Não posso me queixar.
Vou ver se durmo cedo, para acordar cedinho e ver se saio até umas oito da manhã. Foi a hora que saí hoje de Melide, e o dia rendeu muito. Aliás, dormi muito bem em Melide. O austríaco não roncava e dormi bem quentinha. Só que tinha hora para deixar o albergue. Por isso, tive de levantar às seis e meia. Às oito eu estava pegando meu beco. O albergue aqui de Arzúa é mais flexível, porém, vou tentar sair cedo amanhã, pois até Pedrouzo são vinte quilômetros, e com meu pé ainda sensível, e minha mochila, isso me custará muitas horas de caminhada. O quarto onde estou tá cheio. Tem umas americanas, umas canadenses e apenas um homem. Uma das canadenses é uma senhorinha de 83 anos! Fala pra mamãe que da próxima vez ela vem comigo!
Agora de noite o tempo fechou e começou a choviscar. Amanhã a previsão é de chuva.
É isso, Minha Irmã! Vou começar a me organizar para dormir.
Beijos mil,

Léia

domingo, 1 de novembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 43


01/11/15

Minha Amada Nica,
Hoje fez um esplendoroso dia de sol! Depois de tanta chuva, finalmente um céu espelhado, poucas nuvens no céu, e daquelas branquinhas, parecendo fiapos de algodão. Não sei se foi a energia quente do sol, o fato é que caminhei com muita disposição e alegria. Acho que os Anjos também me ajudaram, porque apesar de ter caminhado o dobro de ontem, senti muuuito menos o peso da mochila. Eu tinha mesmo rezado ontem à noite, pedindo aos meus anjos da guarda que me dessem uma mãozinha, pra ver se eu me cansava menos. Por isso que eu te digo, a gente sempre deve pedir aos Céus aquilo de que tem necessidade. Por mais ínfima que pareça a questão. Aliás, quando a gente almeja algo muito grande, que pela sua complexidade pode ser uma graça mais demorada para receber, é ainda mais importante pedir o miúdo, a paciência, o alento, a força de que a gente precisa no percurso.
Vim sentir o cansaço das costas já no finalzinho, chegando em Melide. Muito diferente dos últimos dias, em que eu sentia necessidade de parar a cada dois quilômetros, tirar a mochila, descansar as costas e alongar. E olhe que eu nem dormi bem. Muito embora o albergue fosse muito confortável, vários fatores acabaram fazendo com que minha noite de sono fosse muito partida. Primeiro, não consegui achar meus protetores auriculares, e havia umas três pessoas roncando ou ressonando forte. Depois, o aquecedor ficou ligado a noite toda, e como estou dormindo com roupa térmica, acaba que senti calor, e fui acordando e tirando as peças de roupa, deixei o cobertor de lado e fiquei só com o saco de dormir. Por fim, senti muita sede ao longo da noite – acho que por causa do aquecedor --, então, fiquei acordando para beber água e, por consequência, ir ao banheiro. Curioso é que mesmo não dormindo direito, acordei cheia de disposição. Fui logo tomar o café da manhã do albergue e me organizei na maior tranquilidade, com o quarto só pra mim, porque todo mundo desceu para fazer o desjejum. Sempre me dou bem com essa estratégia de ir no contrafluxo, nos albergues.
Depois de deixar para trás a área urbana de Palas de Rei, passei por uns sítios, com hortas e os tais silos de que te falei. Aliás, vi um deles aberto, e constatei que eles realmente servem para armazenar milho. Os que vi hoje eram mais simples, sem ares de jazigo e sem cruz no topo. A caminhada entre Palas de Rei e Melide foi variando entre essas vizinhanças meio rurais, pastos e matas. Ainda que essas matas sejam muito semelhantes, não consigo deixar de me encantar com as árvores cobertas de musgos, os muros de pedra, o chão coberto de folhas. Sempre tenho a sensação de estar num filme de fantasia, tipo as Crônicas de Nárnia, o Senhor dos Anéis, ou outros mais singelos, que assistimos na nossa infância. Em todo caso, seriam a morada ideal de fadas, duendes e quaisquer seres mágicos. Ainda por cima, hoje havia um perfume adocicado no ar, como se de alguma árvore frutífera. Só não vi os frutos.
Como te disse, estava caminhando com o coração leve e alegre, nem sei bem porquê, até que vi uma casinha, à beira da estrada, com uma plaquinha anunciando sessões de Shiatsu (no povoado de San Xulián). Uma moça com feições meio nórdicas me recebeu e me convidou para entrar numa salinha cheia de bijuterias feitas com pedras preciosas, unguentos e cremes para venda. Havia uma gostosa lareira num canto. Com alguns minutos de conversa, acabei me decidindo por fazer uma sessão de Shiatsu. Eu só iria caminhar 14 quilômetros até Melide, então, dava para parar por uma horinha. Shiatsu é uma técnica japonesa ou chinesa de massagem, que trabalha com pressão nos meridianos do corpo. Sempre tive curiosidade de fazer, e meu coração me disse que era a hora. A ideia é eliminar pontos de tensão e equilibrar a energia do organismo, que pode se desorganizar por diferentes razões, inclusive pelo estresse físico.
Francisca é suíça, casada com um espanhol bem simpático, e tem duas filhinhas fofas! O marido saiu com as meninas quando íamos começar a sessão. Amei o Shiatsu!!! Ao final estava com o corpo inteiramente relaxado. Eu ainda estava deitada no tatame, criando coragem para me levantar, quando eu e Francisca começamos a conversar sobre minha viagem, minha jornada de crescimento espiritual, minha busca por me tornar uma pessoa melhor. Terminamos emocionadas, todas duas. Retomei meu caminho ainda mais leve e muito agradecida por mais esse mimo dos Céus.
O resto da caminhada foi do jeito que descrevi, ora em meio às árvores de algum bosque, ora cruzando algum lugarejo com quatro ou cinco casinhas e suas hortas e criadouros de pequenos animais. Ah! Vi duas belas Igrejas românicas, que a gente identifica logo, pelos umbrais arredondados de portas e janelas, pelo friso em xadrez, e pelos capitéis com motivos vegetais ou de seres míticos. Amo essa arquitetura. As Igrejas estavam fechadas, portanto, só as vi por fora.
Já chegando perto de Melide atravessei uma área industrial, com grandes galpões. A essa altura, o Caminho margeia uma rodovia, e só se ouve mesmo o barulho chato dos veículos. Mais à frente, passei por uma alameda de árvores altas, já bem peladinhas, com troncos finos e esbranquiçados. Era um modesto parque urbano, chamado Bosque dos Peregrinos. Depois desse parque, cruzei mais uma mata e quando a mata terminou, avistei uma linda ponte de pedra, de vários arcos arredondados, e, do outro lado, um conjunto de cantigas casa de pedra. Fiquei toda feliz, pensando que tinha chegado a Melide. Deixa que não era. Ainda estava na periferia de Melide, num lugarejo chamado Furelos. Faltava um quilômetro e meio para chegar ao meu destino. Foi nessa hora que comecei a me sentir cansada. Acho que é coisa da cabeça, né? Tava na expectativa de uma coisa e quando se frustrou, começou a trabalhar contra mim. A mochila começou a pesar só nesse trechinho final. Ainda assim, me sentia bem menos cansada que ontem.
Na entrada de Melide, propriamente dita, passei por uns condomínios coloridos e caminhei por uma vizinhança de classe média alta, até que passei pela porta de um restaurante que me chamou a atenção. Estava bem disputado, e pela clientela local. Na de menu do peregrino. Restaurante bem frequentado pelos locais é sempre um bom indício. Entrei na Casa Alongo e comi um delicioso Pulpo a feria. Sei que você não gosta de polvo, mas pra quem gosta, posso dizer que esse estava divino! Eu estava precisando provar um bom polvo gallego. É a especialidade da Galícia.
Almoçada, venci os metros finais até o centro de Melide. Como ainda era cedo e o sol estava ainda radiante, aproveitei para dar logo uma volta pelo centro histórico. Melide tem uma preciosidade românica bem à entrada, que é a Igreja de São Roque. E tem a Igreja do Espírito Santo, que parece ser parte de um Convento. Essa última estava aberta e pude vê-la por dentro. O prédio está muito degradado, o que me encheu de pena. Só achei interessante o retábulo do altar principal, Barroco, com a representação da descida do Espírito Santo sobre Maria e os Apóstolos. Porém, tudo estava com cara de abandono dentro da Igreja. Do lado de fora, um musgo amarelo recobre alguns trechos da fachada.
Não foi só a Igreja, Melide como um todo me deu uma triste sensação de abandono. As ruas são estreitas e tortuosas, e sobrados de distintas épocas exibem as marcas da decadência e do abandono. Uma pena. A verdade é que esse centrinho de Melide lembrou-me, um pouco, o bairro de São José, no Recife, num dia de domingo.
Achei um albergue bem bonzinho, O Pereiro (com o mesmo). Cheguei junto com um senhor austríaco e o rapaz do albergue, muito gentil, acabou abrindo o último quarto para nós, para podermos ficar em camas baixas. Fiquei muito feliz, porque os beliches de madeira são altos demais. Depois do banho, desci para colocar minha bolsa de gelo no congelador e encontrei um casal de senhores japoneses, que havia conhecido ontem, no albergue de Palas de Rei.
Atsushi e Mitsuko são umas gracinhas! Têm aquela doçura, aquela singeleza que parece ser tão comum nos japoneses. Ou pelo menos é essa a minha impressão. Eles já devem ter perto de setenta e estão fazendo apenas uns dez quilômetros por dia. Eu os alertei de que nessa etapa final, é bom eles se certificarem se que os pequenos albergues da beira da estrada, onde pretendiam se hospedar, ainda estão abertos. Resumo da ópera, acabei que eu usei minha conta do Skype e liguei para vários albergues, até achar duas pousadas onde eles podem fazer suas pausas. Atsushi me deu dois cartões de visita dele, que ele mesmo pinta. Sabe aquelas aquarelas japonesas, delicadíssimas, que parecem mais uns desenhos? Pois os cartões de visita dele são assim. A coisa mais linda! Se fossem maiorzinhos, era o caso de emoldurar e pendurar na parede. Já os guardei com todo cuidado.
Estou te escrevendo na sala de estar do albergue. Daqui a pouco vou subir, para ir relaxando, e ver se durmo bem hoje. Amanhã será mais um dia curto, apenas 14 quilômetros. Os últimos dois é que serão mais puxadinhos, mas há de dar tudo certo. Vai rezando por mim! Tô quase lá!
Beijos mil,

Léia 

sábado, 31 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 42


31/10/15

Boa Noite, Minha Irmã Amada!
Dizem que a Galícia é a terra das bruxas e da chuva. De chuva eu posso falar e confirmar. Desde que passei pelo marco de pedra que anuncia aos viajantes o início do território galego, quase uma semana atrás, que chove. Ontem foi o único dia em que não choveu. Mesmo assim, só consegui vislumbrar o azul do céu logo no início da caminhada. Rapidamente o céu ficou nublado e assim permaneceu até de tardinha.
Estou adorando é escutar o galego e ler as placas em galego. É uma língua tão interessante e graciosa. Parece uma mistura de espanhol arcaico e português, só que com muito “x”. Em todo lugar que a gente usa o som de “j”, em galego é “x”. Por exemplo, igreja é igrexa. Eu já tinha notado isso nas duas vezes em que estive em Santiago, no curso de verão de Berkeley. Desde essa época, que eu elaborei a hipótese de que nossas expressões tão nordestinas vixe e oxente vem do galego. Devem ser corruptelas de Virxen (Virgem) e Ô, xente (gente). Nada comprovado, claro. Só elocubração minha. Mas não parece razoável? Alguma galegada deve ter ido bater no Nordeste, em tempos coloniais e nos deixou isso de herança.
Ontem até acordei cedo. Só que fiquei enrolada com a secagem de uma roupa que eu tinha posto pra lavar, junto com Érica, na noite anterior. Nós pusemos a roupa muito tarde e a lavagem parou no meio. O albergue deve ter um sistema de timing das máquinas. Daí, de manhã a roupa estava encharcada, porque a máquina não centrifugou. Resultado, tive de ficar esperando a roupa secar de manhã, e acabei gastando bem mais, pois foi necessário adicionar moedas para que a roupa secasse efetivamente. Érica não quis perder a companhia de Luís e foi embora com a roupa molhada mesmo.
Enquanto a roupa terminava de secar, aproveitei para dar uma volta em Portomarín, porque como eu cheguei de noite, não vi nada. A cidade é bem pequena. E cheia de charme. A rua principal é quase toda formada por edifícios brancos, de janelas verdes e detalhes em pedra, com grandes arcos embaixo. E na praça principal, uma Igreja curiosíssima. A fachada frontal dela lembra mais uma torre de castelo, quadrada. Imagine uma grande torre quadrangular, de pedra, com uma rosácea no meio, no alto, e uma portada em forma de arco arredondado, com folhagens, seres míticos e figuras sacras esculpidas na pedra. Deve ser um raro exemplar da arquitetura românica. Se não fossem as portadas e capitéis (tem uma na lateral), e uma nave arredondada por detrás, a pessoa podia pensar que era uma torre de fortaleza, ou parte de um antigo castelo.
Minha volta na pequena Portomarín deve ter durado uns quinze minutos. Voltei ao albergue pelo outro lado, passando por um parque na beira da encosta, com bela vista para o rio. Foi quando me dei conta de que ao pé da enorme ponte de concreto tem uma pontezinha baixinha, de arcos de pedra. Deve ser centenária. Recolhi minha roupa e comecei minha caminhada. Cruzei a ponte altíssima e logo entrei por uma mata fechada. Havia outros peregrinos caminhando à minha frente. Um deles não calava a boca. Eu chega estava com pena dos companheiros. Ele falava em inglês, com um sotaque que me pareceu brasileiro. A criatura, ainda por cima, falava super alto. Resolvi parar um pouco, pra dar uma distância deles e poder rezar com tranquilidade. Estava eu esperando eles se afastarem, quando vejo um enorme galho caindo no chão, alguns passos à minha frente. Ouviu-se o estrondo da queda. O galho se fez em pedaços. O homem que falava demais e os outros estavam alguns passos à frente do galho. Com o barulho, eles deram um pulo e se voltaram para trás. Sorrimos uns para os outros, acho que todos agradecidos por ninguém ter se ferido. Foi apenas uma questão de segundos.
A mata fechada não durou muito. Logo cheguei ao cume da colina que estava subindo e a partir dali, passei a caminhar ao lado ou pelo meio de bosques de pinheiros. Outra paisagem. Muito bonita também. Os bosques de pinheiros são mais abertos. A gente pode ver para além deles. Também caminhei ao lado de pastos, e por certo tempo andei junto a uma rodovia. De novo, muitas macieiras carregadas de maças bem vermelhinhas. Nos pontos mais altos, sem árvores, dava para apreciar a linha do horizonte. Vislumbrei a cadeia montanhosa que cruzei um dia desses. Aliás, essa sensação, de vislumbrar no horizonte distante as montanhas que você já cruzou, é muito, muito gratificante.
Passei por alguns lugarejos de poucas casas, por várias propriedades rurais, e por uma enorme fábrica abandonada. Em várias das casas desses lugarejos da Galícia, há uma estrutura curiosíssima, que funciona como silo, para armazenagem de grãos (milho, parece). Esses silos têm todo o aspecto de um jazigo de cemitério, são casinhas compridas e estreitas, com uma cruz acima. Só que estão como que atrepados, assentados sobre bases de madeira ou cimento para ficaram distantes do chão e evitarem visitantes indesejáveis, conforme tinha me explicado Paulo.
Ontem foi mais um dia de caminhada lenta. Muitos altos e baixos, e eu ainda estou ficando muito cansada com o peso da mochila. Já tinha decidido que eu não iria até a próxima cidade de maior porte. Então, parei em Eirexe, onde tem um albergue municipal bem simplesinho. A questão é que indaguei por lá e confirmei que os dois albergues existentes antes de Palas de Rei já estão fechados. O jeito foi ficar em Eirexe. Colchões e travesseiros tinham toda pinta de serem velhos como a Mãe do Sarampo. Fiquei morrendo de medo de ter bicho de cama, mas não tinha solução. O jeito era pernoitar por ali mesmo. Aliás, deixa eu te dizer que tem uma razão pragmática também pra eu voltar a levar minha mochila, que é o fato de muitos albergues já começarem a fechar nessa altura do ano.
Tomei meu banho (de novo chuveiros sem porta) e fui para o bar de frente, pegar o sinal da internet, pra poder falar com vocês. Estava por lá, usando o zap zap, quando chegaram Kevin e Dominique, dois senhores que eu havia conhecido na entrada de Eirexe. Kevin é americano e Dominique é francês. Eu nem pretendia jantar, mas acabei ficando com eles, tomamos vinho, eu comi uma salada e tivemos uma conversa agradabilíssima. Falamos sobre política internacional e viagens. Dominique deixou o emprego e vive, já há alguns anos, de se voluntariar em países da África e da Ásia. Em dezembro ele irá para Calcutá, trabalhar com as Irmãs de Madre Teresa. Claro que eu adorei os relatos deles! E ele me deu uma excelente de um Ashram de Yoga no Sul da Índia.
Contra todos os indícios, consegui dormir bem no albergue de Eirexe. MariPaz, a hospitalera, ligou o aquecedor e o quarto ficou bem agradável. A única coisa é que fui dormir impressionada com essa história dos bichos. Aliás, estou até agora. Estou o tempo todo com a sensação de alguma coceira, ou de algum bichinho caminhando em mim. Mas é mais minha mente mesmo. Não tem nenhuma nova picada. Enfim, dormi bem. Acordamos todos tarde (só tem um quarto no albergue de Eirexe) e quando saí do lugarejo (que deve ter umas cinco ou seis casas), já era mais de nove. Desde domingo passado que mudou a hora na Espanha. Acabou o horário de verão, então, atrasamos os relógios uma hora. Isso significa que às oito horas já tem luz. Eu poderia passar a caminhar mais cedo. Ainda não consegui essa façanha.
Comecei a andar com uma chuva fininha, embora o céu não estivesse todo encoberto. Pelo contrário, havia vários clarões azuis entre as nuvens. Desde ontem que ver o azul do céu tem me dado imensa satisfação. Andava meio cansada de tanto céu cinzento e tanta chuva. Decidi andar pouco hoje, não só para descansar um pouco o corpo desses últimos dias de caminhada com a mochila, mas para acertar meu roteiro com dormidas em cidades de maior porte, de modo que eu tenha mais opções de hospedagem. Assim, caminhei apenas oito quilômetros hoje. Cheguei cedo a Palas de Rei. A cidade não tem nenhum charme. Nem mesmo a Igreja de Santo Tirso é interessante. Diz que é do século XII, mas não conserva nada dessa época. Entrei, rezei, acendi uma vela pro Sagrado Coração de Jesus e conversei um pouco com um senhorzinho que estava tomando conta da Igreja, e que é uma fofidade, e com um peregrino italiano. O senhorzinho nos disse algo tão singelo e bonito: o sorriso é uma língua universal, dispensa tradução. E, realmente, quantas vezes a gente se comunica, no Caminho, apenas com um Buen Camino e um sorriso?!
Depois da Igreja, fui fazer compras num supermercado. Foi o tempo que deu uma hora e me dirigi ao albergue que me tinha sido muitíssimo recomendado por Norma e Tom. Realmente, o Albergue San Marcos é excelente! Todo novinho, transado, colorido. Estou adorando. Fiz uma boa salada para o almoço e passei a tarde de pernas pro ar, descansando, meditando e escrevendo minhas derradeiras cartas de perdão (pelo momento!). Já lanchei e estou pronta para dormir. Roupa de cama nova, cobertor limpo e macio. Beliches amplas, com altura suficiente pra pessoa se sentar sem topar com a cabeça em cima. Um luxo, rs, rs, rs. O pé está me incomodando menos, viu?! E está menos inchado. A bursite também está melhor hoje. E, se Deus quiser, daqui a quatro dias estarei chegando a Santiago!
Por ora é isso, Niquinha.
Cuide-se!
Beijos mil,

Léia

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 41


29/10/15

Boa Noite, Niquinha!
Escrevo de Portomarín, uma cidadezinha bem simpática, situada no alto de uma colina. Ao pé da colina há um grande rio. Pontes altíssimas ligam Portomarín a uma estrada principal, e ao Caminho de Santiago. Hoje foi meu 40º dia de caminhada! E daqui até Santiago são apenas 93 kms! Nem acredito que me faltam menos de cem para chegar.
Cheguei particularmente cansada a Portomarín. Esperava caminhar 17 kms e acabei tendo de caminhar 22 kms, porque um albergue onde eu havia pensado em parar, no meio do caminho, era muito ruim, e ou outro estava fechado. Não tive escolha a não ser continuar caminhando até Portomarín. Foi a primeira vez que cheguei ao meu destino à noite, já sem nenhuma luz natural. Ainda por cima, a chuva resolveu engrossar justo quando eu estava na entrada da cidade. Cruzei essa ponte bem alta com muita chuva e um vento forte e frio.
Mas deixa eu voltar para o dia de ontem. Eu tinha dormido em Samos, né. Dormi super bem, na exclusividade do meu quarto. E acaba que saí de Samos muito tarde, praticamente meio-dia. É que eu fiz um acordo com Papai do Céu, quando estava abraçando o cipestre. Ele vai cuidar do meu pé, e eu vou voltar a carregar minha mochila. Então, passei a manhã separando as coisas que eu podia despachar pra Santiago. Fui até o posto dos Correios, preparei uma caixa com 5 kgs de coisas que não me são essenciais nessa reta final e despachei pro Correio de Santiago. Achei o preço bem razoável. Paguei 13 euros e eles ficam com a caixa por até quinze dias. Depois de despachar minhas coisas, voltei pra pousada Victoria para pegar minha mochila. Tomei café no bar da pousada, enquanto conversava com José, o atendente, uma figura!
Choveu o dia todo, uma chuva fina e constante. A caminhada a partir de Samos é um pouco dura porque tem um longo trecho, de mais de 10 quilômetros, sem nem uma paradinha, nem um café, nada além de muro pra pessoa se encostar. Além disso, o caminho é cheio de altos e baixos. Claro que senti muito o peso da mochila. A musculatura das costas reclamou bastante. Fui andando devagar, parando de vez em quando pra me encostar numa muretinha e descansar. Cruzei uns cinco lugarejos, com pouco mais que uma Igrejinha e cinco casas. Interessante que desde que entrei na Galícia, que essas pequenas Igrejinhas têm quase sempre um cemitério em volta. Os túmulos não ficam apenas por detrás, mas em volta das Igrejas (todas de pedra). Passei também por dentro de belíssimas matas, com suas altas árvores, cobertas de musgo e trepadeiras.
Finalmente, cheguei a uma Taberna, já de volta ao Caminho (lembra que eu peguei um caminho alternativo, para conhecer Samos?!). Fiquei tão feliz de poder sentar e descansar no quentinho! Aproveitei e tomei um caldo gallego. Nessa taberna, conheci um canadense, Paul, e uma australiana (não gravei o nome dela).  Eles me convidaram para sentar com eles e ficamos conversando. Eram muito simpáticos, mas meio esquisitos. Não sei bem o quê, mas havia algo de fora do lugar com eles. Não eram um casal, estavam apenas caminhando juntos. Os dois devem ter aí pelos 45, 50 anos. A australiana foi tirar uma foto de um rapaz que estava sentado ao balcão. Depois, puxou papo com ele. Quando ela voltou à mesa, me explicou que gosta de tirar fotos das pessoas sem que elas percebam. Alguns minutos depois, olha só que maluquice, ela se aborreceu porque achou que o rapaz estava tirando fotos dela, com o celular, sem pedir permissão! É cada uma. O rapaz é paquistanês, e está tentando a vida na Espanha. Ele ficou mostrando o celular e dizendo que ela podia verificar, que ele não tinha tirado foto nenhuma. E eu no meio dessa confusão, de tradutora, porque ele não falava inglês direito, nem ela, espanhol. Sei não. Achei que foi maluquice dela.
Paul, o canadense, pareceu-me um pouco mais normal. Ele estava me falando de como está cansado de conhecer pessoas no Caminho, se apegar a elas, e vê-las partir. Me disse que tem muita dificuldade de lidar com a perda das pessoas a quem quer bem. Eu ainda tentei dizer que o bonito do Caminho é que tem sempre mais pessoas chegando, pra enriquecer a sua vida, mas nem insisti muito na ideia, pois, como te disse, não me senti à vontade com essa dupla. Tanto que terminado meu caldo, tomei logo meu rumo.
Caminhando devagar, cheguei a Sarria já de tardinha. Sarria é uma cidade de porte médio, com uma periferia mais moderna, e um bonito passeio ao longo do rio (malecón). O acesso ao centro histórico se dá por meio de uma escadaria. Há muitos albergues na rua principal. Escolhi um que tem várias obras de arte sacra no hall de entrada. Deixei minhas coisas e fui dar uma volta rápida na cidade (o centro histórico é mínimo), aproveitando o restinho de luz, e o fato de que a chuva tinha dado uma trégua. Em Sarria há as ruínas da torre de um antigo castelo (sec. XIII), porém, a gente só vê de longe, porque fica numa propriedade privada. E vi, por fora, a Igreja do Salvador, uma gracinha de prédio, do sec. XIII, em pedra branca, de cantaria, arco ogival e capitéis com figuras míticas. Já te disse mil vezes que adoro a simplicidade dessas construções românicas.  
No albergue O Obradoiro, encontrei uma senhorinha mineira, Lêda. Ficamos conversando enquanto ela preparava seu jantar. Ela até me convidou para comer com ela, mas eu tinha tomado o meu caldo gallego já tarde e estava sem fome. Só tomei um chá e comi um pedaço da Torta de Santiago, uma torta típica, de amêndoas, que eu tinha comprado na taberna do caldo. Ah! Sabe que em Samos eu comprei umas paçoquinhas de amêndoa, chamadas polvorón, que mamãe e Quel iriam adorar! São muito gostosas.
Lêda me contou que estava caminhando com um brasileiro que teve problemas sérios com picadas desses insetos de camas. E no nosso albergue tinha um francês com uma ferida grande, infeccionada, também por causa desses bichinhos. Até então eu tinha tido a sorte de escapar deles. Pois qual não foi minha surpresa agora de noite quando cheguei em Portomarín e vi algumas picadas no meu braço e nas minhas costas. Tem bem direitinho o “caminho” que é típico desses bedbugs. Eu não sei se é pulga ou percevejo, o fato é que pus pomada de cortisona e comecei a tomar anti-inflamatório, porque coincidência ou não, tive algum tipo de reação alérgica (de pele). Apareceram umas placas vermelhas nos meus braços, na minha cintura e no meu tornozelo. Também estou sentindo alguma coceira nas picadas, mas com a pomada de cortisona deu uma aliviada. É torcer pra essas picadas não evoluírem como as que eu tenho visto em outros peregrinos. Tudo indica que foi no Obradoiro que esses insetos me picaram.
A verdade é que dormi direitinho no Obradoiro (só vim descobrir essas picadas agora de noite). E isso apesar dos gritos de um coreano, que deve ter tido algum pesadelo durante a noite. Tomei café com Lêda, que tinha comprado ovos e leite. Eu cozinhei umas maçãzinhas verdes que tinha apanhado pela estrada (com leite e mel), misturei com nozes, e nós também fervemos o leite com umas castanhas que Lêda tinha apanhado pelo chão. Tomamos um lauto café da manhã e iniciamos a caminhada juntas.
Na saída de Sarria, demos uma espiada no Mosteiro de Santa Maria Madaglena (que do século XIII parece conservar apenas o portal da fachada exterior), cruzamos uma bonita ponte de arcos de pedra, e seguimos andando pelo meio de uma mata. Lêda é dessas senhorinhas super ágeis (ela deve ter uns setenta e poucos anos) e falantes. O tempo que caminhamos juntas ela falou sem parar. Eu só fazia concordar. Sempre tenho a sensação de que os mineiros conversam como se estivessem contando histórias. E adoro esse jeitinho deles prosearem. Como Lêda estava andando bem mais rápido que eu, em dado momento, ela disparou na frente, e eu continuei no meu passo de formiguinha.
Logo após Sarria, tem um povoado chamado Barbadelo, onde há uma Igreja do século XII, a Igreja de Santiago. Esta estava aberta e tinha o carimbo pra credencial. Além do belo portal românico, gostei muito do retábulo principal, em madeira pintada, num tipo de representação quase naïf. Além disso, no nicho central tem uma graciosa imagem de Cristo Rei, e eu adoro ver altares com essa representação. Acho que o Cristo Ressuscitado é muito mais inspirador do que Ele na Cruz.
Entre Barbadelo e Portomarín, passei, novamente, por vários lugarejos de três ou quatro casas (não sei como é isso, não...), e, às vezes, uma Igrejinha de pedra, com ares românicos. De resto, foram matas, intercaladas por campos de pastagem, e uma ou outra plantação. No meio de uma das matas, tinha um trio pedindo doação para uma peregrinação a Roma. Puseram uma mesinha com umas bananas, e tinham até carimbo (sello) para a credencial. Adoro andar por essas matas, porque elas sempre me dão uma sensação de paz e de conexão com a natureza. Os campos de pastagem também são bonitos, estão bem verdinhos e, nos trechos que atravessei hoje, são separados uns dos outros por muros de pedra baixinhos. Tão lindos! Parecem bem antigos e estão cobertos de musgo. Ao pé deles, muitíssimas macieiras, algumas dão maças pequeninas e verdes, outras estão carregadas de maças tão vermelhas que beiram a cor de vinho. Encontrei vacas andando pelas ruas de algum lugarejo, ovelhas pastando, pastoreadas por seus cães. Aliás, aqui na Galícia tenho visto muito pastor alemão. Alguns, inclusive, andando solitários pelas estradas. Todos parecem muito dóceis.
Mesmo com esses pequenos lugarejos, o trajeto de hoje tinha alguns cafés pelo meio, e sempre que encontrava um, parava para descansar um pouco as costas. Obviamente, minha musculatura ainda está se acostumando ao peso da mochila. A notícia boa é que nesses dois dias, só senti dor muscular. Nada de inflamação, como eu tive lá atrás, no início do Caminho. No pequeno povoado de Persucallo, encontrei um senhorzinho, careca, gordinho e com apenas uns dois dentes na boca, que me deu umas nozes e me pediu para rezar por ele quando chegasse a Santiago. Já perto de Portomarín, num café-loja de um ex-hippie, parei para comer um sanduíche de chouriço e reencontrei a dupla esquisita (o canadense e a australiana). Conversamos rapidinho e retomei a estrada, pois estava ficando tarde.
Você já sabe como se deu minha chegada a Portomarín. Vim para um albergue bem bonzinho, chamado O Mirador. Fica abaixo de um bar-restaurante que parece ser bem frequentado pelos locais. É tudo novinho, o que, para mim, já é grande vantagem. Estou no quarto com uma mexicana, Érica, e um português, Luís, que é um amor! Luís já fez o Caminho trocentas vezes, e faz parte da Associação do Caminho de Santiago. Me deu algumas dicas, me sugeriu um albergue em Santiago, me ofereceu remédios. Um gracinha! Érica também foi um amor. Eles subiram para jantar, porém eu fiquei no quarto, pois ainda estou cheia com o sanduíche, que era enorme. Tô pondo gelo no pé. Até aqui o pé tá respondendo direitinho ao peso da mochila. Minha bursite no quadril (você sabe que é meio crônica) é que está reclamando um pouco. Nada demais, porém. Sabe que eu às vezes fico meio abusada comigo mesmo por ficar lhe relatando tantas queixas. Já pensei até em nem falar mais nada das minhas dores. Só que achei que você podia acabar ficando mais preocupada. Enfim, não quero parecer uma velha queixosa e enganjenta. No geral, estou muito bem. Estou, sobretudo, muito feliz e agradecida por essa jornada! Em bem pertinho de chegar!
Beijos mil, Minha Irmã!

Léia

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 40


27/10/15

Boa noite, Niquinha!
Hoje lhe escrevo de Samos, um lugarejo situado num pequeno vale, no meio das montanhas. A origem e o coração do lugar são um enorme Mosteiro, cujas origens remontam ao século VI. É o mais antigo Mosteiro do Caminho de Santiago, ainda em atividade. Uma estrada importante corta a pequena Samos e passa bem ao lado do Mosteiro. Ainda assim, é um lugar que transmite muita Paz.
A noite passada, no albergue municipal de O Cebreiro foi razoável. Não senti frio, mas tinha muita gente roncando e ressonando, e eu dormi num beliche superior, colado no de Flávio. Então, tive muito cuidado para fazer o mínimo de ruído me virando na cama (e eu me viro muito). Acordei cedinho, sem despertador, e fiquei esperando a galera começar a se movimentar, pra descer da cama e ir ao banheiro, que fica no andar debaixo e estava, obviamente, muito frio.
O tempo estava péssimo quando deixei o albergue. Muito nublado, muito frio e chovendo. Fui até o hotel principal deixar minha mochila e combinei com Paulo, Karine e Flávio que os encontraria na primeira parada, para tomarmos café da manhã. Segundo Paulo, tinha um café “logo ali embaixo”. Com a neblina e a chuva, acaba que me enganei na saída de O Cebreiro. Não vi as setinhas amarelas e ia descendo margeando a estrada, quando me veio a sensação de que eu estava indo pelo caminho errado. Tinha andado menos de um quilômetro e resolvi voltar pra cidade, para verificar. Foi minha sorte, porque eu tinha descido uma ladeirinha, quando deveria ter subido e passado novamente em frente ao albergue. Reencontrei minhas setinhas e caminhei três quilômetros, em meio à neblina, até chegar em Liñares, onde estava o tal café. A galera brasileira estava toda lá. Tomei meu café com pão fresquíssimo, chegando da padaria, e voltamos pra chuva e pro vento gelado.
A descida até Triacastela, nosso destino do dia, é cheia de altos e baixos. Portanto, apesar da chuva, suamos a camisa. Subimos dois altos bem caprichados, o Alto de São Roque e o Alto do Poio. Até aí, a chuva foi ficando cada vez mais intensa, ao passo que a neblina se foi dissipando. Felizmente, não molhei os pés, porque estava de calça impermeável. Minhas botas só ficaram um pouco úmidas. Só os cumes das montanhas mais altas permaneciam cobertos pela névoa. Entre os dois Altos, passamos pelo vilarejo de Hospital da Condessa, completamente vazio. Não encontramos uma alma sequer pelas ruas. Paramos na fonte local para que o meu trio de companheiros abastecesse suas garrafinhas de água.
Em Fonfría paramos num restaurantezinho já conhecido de Paulo. A dona o reconheceu imediatamente e fez a maior festa. Tem até retrato dele pregado num muralzinho. Ali tomamos um caldo gallego, uma sopinha de batatas, couves, feijão branco e um tipo de toucinho. Eu achei muito gostosa. E veio mesmo a calhar, pra esquentar o corpo. Tomamos um copinho de vinho também. Quando saímos pra retomar a estrada, a chuva tinha parado! Uma alegria. A caminhada se tornou bem mais agradável e pudemos aproveitar a vista linda das encostas verdinhas, com gado pastando, ou da mata densa, colorida do outono, a depender do trecho. Aqui e acolá, pelos campos, antigos cilos de pedra e palha. Ainda cruzamos dois pequenos povoados, com suas casinhas de pedra e telhados de ardósia, e suas ruas desertas (é incrível como muitas cidadezinhas do Caminho dão a sensação de abandono e despovoamento), até começarmos a descida mais acentuada, para Triacastela.
A montanha tem uma coisa interessante. Quando você chega a algum ponto mais elevado, você vê seu destino bem na sua frente. Só que você faz tanta curva, sobe e desce, que sempre demora mais do que pensava para chegar no lugar que parecia tão pertinho de você. A entrada para Triacastela é linda. A gente caminha pelo meio de uma mata bem fechada, com árvores lindas, cheinhas de musgo. Junto a uma encosta, para proteger os barrancos, certamente, um velho e extenso muro de pedras simplesmente sobrepostas. Aqui na Galícia, nesses trechos de mata, se vê muito esses muros, com toda pinta de serem seculares, cobertos de musgos, de hera, e que não têm nenhum tipo de “cola”. As pedras estão simplesmente encaixadas, e aquele negócio resiste ao tempo e às intempéries. Não canso de me admirar com eles.
Agradeci muito a companhia de Paulo, Karine e Flávio. Paulo é muito divertido, como eu te disse. Ontem foi minha caminhada mais longa desde que essa tendinite se manifestou. E não foi fácil, com tanta subida e descida. A companhia deles fez uma grande diferença e me deu ânimo para enfrentar a distância. Paulo foi contando histórias do Caminho e fazendo reflexões muito interessantes. Ele é um homem de grande sensibilidade. Ele falou duas coisas que me ficaram na cabeça. Uma é que existe o Caminho físico, com seus quilômetros, e o Caminho mágico, uma via espiritual, que guarda e acumula a energia das criaturas que ao longo dos séculos usaram esse percurso como via de crescimento e de encontro com Deus. O primeiro Caminho é o que todo mundo faz. O segundo Caminho só alguns conseguem acessar, de vez em quando, ao longo da caminhada.
A segunda coisa que Paulo disse, contando a história de uma peregrina que ele conheceu, é que o Caminho (o mágico) tem a ver com o fim do EU. E esse processo passa pela experiência dos albergues, onde não tem a minha cama, o meu quarto, o meu banheiro, o meu chuveiro, as minhas coisas. É a expressão concreta da experiência mais sutil da alma, que precisa descobrir que ela é parte do Universo, da Criação. Lembrei-me de que as filosofias Zen falam muito que a separação, a ideia de Indivíduo é uma ilusão a ser superada no processo de crescimento espiritual, pois somos todos a expressão de uma mesma Unidade, que é Deus. O egoísmo encontrará seu fim quando entendermos que somos todos Um.
Bom, chegamos a Triacastela de tardinha, bastante cansados. Ficamos no Albergue Xacobeo (Jacobeo). Um lugar todo novinho, recém reformado pelo jeito, e com uma boa cozinha. Paulo é o cozinheiro oficial da brasileirada. Perguntamos à hospitalera se podíamos dormir todos em camas debaixo, e ela, muuuuito gentil, acabou “abrindo” um novo quarto só para nós. Uma das vantagens de caminhar em outubro é que já não tem tanta gente, os albergues raramente estão cheios, então, dá para ter esses luxos, e, inclusive, pegar a manta das outras camas de empréstimo, para dormir mais quentinha, he, he, he.
Após o banho bem quentinho (o banheiro era unissex, mas com portas nos chuveiros!), fomos ao supermercado e compramos uns enlatados. Paulo fez um risoto de frutos do mar, com esses enlatados, que ficou simplesmente divino. Eu nem gosto de jantar, mas comi horrores. Também fiz minha saladinha básica de tomates, claro. E tomamos um bom vinho do Bierzo. Depois de comer tanto, ficamos conversando um bocado, para fazer a digestão.
Dormi muito bem no quarto quentinho e com camas confortáveis, sem ronco, só o barulhinho gostoso da chuva no telhado. E fui dormir com a sensação de que conseguirei chegar a Santiago! Desde que me apareceu essa tendinite que eu vinha meio receosa de que isso comprometesse minha chegada. E vinha rezando muito, pedindo a Deus a Graça de me permitir entrar em Santiago com meus próprios pés. Ontem, não sei porquê, me veio muito forte a sensação de que vai dar tudo certo. Fui dormir feliz e agradecida.
Apesar da boa dormida, acordei cedo e fui para as mesas do refeitório, para escrever um pouco e colocar meus relatos em dia. Quando todos levantaram, preparamos o café da manhã, comemos e retomamos a estrada. Meus queridos companheiros tomaram o rumo de Sarria, e eu tomei o rumo de Samos, porque queria muito conhecer o Mosteiro (nesse ponto, há duas alternativas para seguir o Caminho). Posso lhe dizer, Niquinha, que mesmo apreciando demais a companhia dos três, me despedi sem nenhum peso no coração. Ao contrário, meus sentimentos eram de Alegria e Gratidão, pelo muito que pude compartilhar com eles. Acho que estou aprendendo, rs, rs, rs. Trocamos números de zap zap, para ficarmos em contato, claro, mas a verdade é que eles devem chegar a Santiago uns três dias antes de mim, pois pretendo fazer etapas mais curtas, de quinze quilômetros, em lugar de vinte, para não abusar do meu pé.
A caminhada até Samos foi curta e belíssima. Andei o tempo todo junto ao rio Oribio, de águas céleres e mais revoltas do que vinha observando nos rios que acompanhei ao longo do Caminho. Isso significa que o barulho das águas é mais intenso, e a gente sente uma energia mais forte vindo dele. Fui margeando uma estrada apenas na parte inicial. Caminhei a maior parte do tempo numa estradinha pelo meio de uma mata fechada, muito linda. O chão já está todo coberto de folhas. Muitíssimas castanhas pelo chão. Até colhi algumas, para ver se cozinho em algum albergue e provo do leite com castanhas de que Jus me falou. Vi pouquíssimos peregrinos caminhando para Samos. Cruzei alguns arruados, passei por Igrejinhas de pedra com cemitérios ao lado, e nas curvas finais, já quase chegando ao meu destino, peguei uma chuvarada forte. Ainda bem que a chuva foi rápida, porque se continuasse por muito tempo, com aquela intensidade, capaz que eu me molhasse toda, pois não tinha posto a calça impermeável.
As subidas e descidas de hoje foram mais suaves, e quando menos esperei, após uma curva da estrada, cheguei a uma clareira, num alto, e pude ver o imenso Mosteiro de Samos mais abaixo, no pequeno vale. Uma bela vista. Ainda andei um bocadinho pelas curvas da estrada de Samos até avistar as primeiras casinhas. Mais à frente, bem juntinho do rio, está a imponente edificação, construída nos séculos XVI e XVII (não há mais nada de remanescente do prédio que existiu ali nos séculos anteriores). O Mosteiro é cercado por um belo jardim e por um pomar. As macieiras estão carregadas de frutos vermelhos. No rio, patinhos nadavam tranquilamente. Cruzei a pontezinha sobre o rio e fui procurar o albergue para onde tinha mandado minha mochila. Descobri que esse albergue fecha às terças. A mochila estava numa pousada ao lado. Consegui negociar um preço razoável num quarto individual (sem banheiro) e resolvi ficar por ali mesmo. Estava com medo de o albergue do Mosteiro ser muito frio. Samos é muito pequenininha. Logo, há poucas opções de hospedagem.
Deixei minhas coisas no quarto e fui logo visitar o Mosteiro, com medo que fechasse pra siesta. Acabei tendo uma visita guiada só pra mim. A moça, Mónica, tinha uma certa formalidade que se encontra em alguns espanhóis, mas foi muito gentil. O Mosteiro é ocupado há séculos pelos monges beneditinos. Ele é tão grande assim porque tem dois enormes claustros contíguos. Um do século XVI e outro do século XVII. No pátio interno do primeiro, há uma linda fonte de traçado gótico, muito curiosa. A fonte é bem alta e seu destaque são as compridas Nereidas que sustentam o topo. Adoro ver essas referências pagãs nos monumentos religiosos. Creio que me dão a sensação de uma saudável convivência de realidades humanas distintas.
A Igreja do Mosteiro tem enormes arcos arredondados e uma grande abóbada sobre o cruzeiro central. Os altares laterais são de um Barroco tardio, mais interessante, e o altar principal já é o que eles chamam aqui na Espanha, de renascentista (é o pós Barroco), com linhas mais retas e mais colorido (mármores e pinturas). Esse estilo renascentista raramente me agrada. A nave da Igreja é muito ampla. Numa das reformas, eles removeram o coro de madeira, que virou moda aí pelo século XVII, e que acaba comprometendo a percepção de espaço de quem entra nas grandes Igrejas góticas ou românicas. O Mosteiro de Samos sofreu um grande incêndio na década de 1950, e muita coisa teve de ser reconstruída. Ainda assim, a visita é interessante. Os claustros superiores viraram hospedaria e as paredes estão cobertas por pinturas contemporâneas, que contam a vida de São Bento. O efeito é curioso. Apenas uma parte do Mosteiro está reservada aos menos de 10 religiosos que vivem ali nos dias atuais. Ah! Aprendi que teve um Padre Feijó importante na história dos beneditinos. Um filósofo Ilustrado, que conseguiu espanar um pouco da poeira de dogmatismo e conservadorismo que foi se acumulando com o tempo, na Ordem de São Bento.
Após deixar o convento, fui conhecer a Capela do Cipestre. Uma casinha de pedra, que dizem ser do século IX. Em todo caso, diz a crença que se o peregrino abraçar o cipestre, chegará a Santiago sem problemas nos pés. Com chuva e tudo, cuidei logo de dar meu abraço bem apertado no cipestre solitário, que cresceu bem rente à parede da capelinha.
Feitas as visitas obrigatórias, vim pro albergue, tomei meu banho quentinho, massageei meus pés, fiz um lanche, tirei um cochilo e me pus a escrever. É muito bom poder ter esse luxo, uma vez que outra, de dormir uma noite sozinha, numa cama de verdade, se enxugar com toalha de verdade... Mas o que mais me agrada, realmente, é a possibilidade de estar num ambiente silencioso, onde posso me concentrar, escrever, meditar, dormir e acordar na hora em que desejo. Na verdade, cada coisa tem o seu encanto e a sua função. A convivência nos albergues também tem sido preciosa, em muitos aspectos.
A pousada é exatamente em frente ao Mosteiro. Daqui fico escutando os sinos tocarem a cada meia hora pelo menos. O quarto está bem aquecido, e a noite certamente será deliciosa.
Mais oito dias e, se Deus quiser, chegarei a Santiago!
Beijo grande, Minha Irmã,

Léia