sábado, 30 de junho de 2012

Ascenso Ferreira em quatro tempos (Derradeiro)


Os textos desta série foram tirados da “Introdução” de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, edição da Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.

Feitiços de amor e de vida

O terceiro e mais freqüente tema trabalhado por Ascenso Ferreira em seus poemas é o amor. Os poemas de amor aparecem na poesia do pernambucano desde Catimbó, embora marquem particularmente o livro Xenhenhém, onde são mais numerosos. Além disso, os poemas que trazem o amor por tema em Catimbó e Cana caiana são distintos dos poemas de Xenhenhém. Nos dois primeiros livros, Ascenso trata da temática amorosa de um modo descontraído e até engraçado, utilizando particularmente motes da cultura popular nordestina para falar do amor. Aliás, poemas como “Catimbó”, “Reisado”, “Bumba-Meu-Boi”, “Mandinga”, “A força da lua”, “Martelo”, “A Formiga-de-Roça” e “Toré” têm títulos de certo modo enganosos, pois o leitor insuspeitado não imagina que se tratam de poemas de amor, e não de registro folclórico.
            “Catimbó” é, na verdade, a expressão poética de um feitiço de amor. Segundo os costumes populares, recorre-se ao rito do catimbó para atrair a pessoa amada. Pois o poema de Ascenso é justamente uma espécie de encantamento para atrair uma mulher. O feitiço encontra a sua força na figura de Mestre Carlos, cujo poder se evoca (“— Porque de Mestre Carlos é grande o poder!”). Aliás, o verso que evoca o poder de Mestre Carlos, o “rei dos mestres”, que “reina no fogo”, “reina na água” e “reina no ar”, introduz a estrofe em que se enuncia o encantamento ou feitiço (“Pelas três marias... Pelos três reis magos... Pelo setestrelo.../Eu firmo essa intenção,/bem no fundo do coração,/e o signo de Salomão/ponho como selo...”). Note-se que todos os elementos mágicos conjurados em favor do feitiço estão em itálico, o que lhes dá mais destaque. Por sua vez, os números três e sete, tradicionalmente associados ao misterioso e ao divino, reforçam o encantamento. A estrofe seguinte traz o objetivo a ser alcançado, já enunciado desde a segunda estrofe: “E ela há de me amar.../Há de me amar.../Há de me amar.../— Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!”
Os dois últimos poemas de Cana caiana já inauguram uma nova poética amorosa. Com “Teu poema” e “A chama” começa todo um discurso sobre um amor torturado, culpado e conflituoso, que será marcante em Xenhenhém. Aspecto interessante a ser notado é a irreverência do poeta, que tomou para título do seu terceiro livro um regionalismo de conotação vulgar. A palavra “xenhenhém”, que dá nome aos dois primeiros poemas do livro, para além de designar um tipo de dança próprio de certas áreas do Nordeste, é sinônimo de genitália feminina. Sem dúvida isso deriva, e ao mesmo tempo reitera, a carga de sensualidade e erotismo fortemente associada aos poemas de amor de Ascenso nesse terceiro livro. Paralelamente, na poética do autor, “xenhenhém” também é uma espécie de onomatopéia que compõe a imagem de uma queixa permanente. Queixa da amada e lamento do poeta, “xenhenhém” é a condensação, em imagem poética, de um amor violento, sensual, conturbado e condenado, mas, ao final de tudo, sublime.
 “Xenhenhém nº 1” é uma queixa de amor, mas onde se percebe que a alegria do amor é maior que a dor. As duas estrofes pares (o poema tem quatro estrofes) são antinômicas. A segunda reflete as delícias do amor: “Xenhenhém... xenhenhém... xenhenhém.../— Coisa gostosa é a gente querer bem!”. Enquanto a quarta reflete as suas dores: “Xenhenhém... xenhenhém... xenhenhém.../— Coisa terrível é a gente querer bem!”. Por sua vez, em “Xenhenhém nº 2”, a mulher amada é um alívio para o poeta, que sofre as dores do mundo. O paradoxo é que o amor dela é um alento, mas ao mesmo tempo um tormento, presença que é também ausência, motivo de dor e causa de felicidade (“Em meio às minhas muitas dores/talvez maiores do que o mundo,/surges, às vezes, um segundo,/cheia de pérfidos langores.”). O poema é nova queixa de amor e ao mesmo tempo traz a imagem de uma situação indefinida (“Súbito, encontro a casa oca./Não estás! — Meu Deus, que coisa louca,/só é na vida um xenhenhém!”). Este é o primeiro soneto de Ascenso incluído em volume com poemas de “feição modernista”. Entretanto, está em versos heptassílabos, ou seja, em redondilha maior. Dá-se, assim, a conjugação entre a forma clássica do soneto e a construção popular em redondilha maior.
Há uma convergência entre o amor e o místico na poética de Ascenso, notável em vários poemas. “Êxtase”, por exemplo, é poema curtíssimo, de quatro versos longos, em que ocorre o uso de um registro místico para falar do amor como via de transfiguração e modo de elevação do espírito. A amada é associada a um universo semântico que mistura erotismo e sagrado: calma, langor, suavidade, elevação, transfiguração. É no seio da amada que a alma do sujeito se desprende das contingências do mundo para encontrar sua plenitude (“Emana do teu ser uma tão grande calma,/um langor tão suave, expressivo, profundo,/que tenho a sensação virgem de que minh’alma,/desgarrada de mim, anda solta no mundo.”). Assim, na poética de Ascenso Ferreira, o amor carnal e o amor sublime conjugam-se e pavimentam o caminho para a transcendência.

            Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira viveu intensamente. Foi homem de grandes paixões: o jogo, a comida, as duas mulheres de sua vida, Stella Griz e Maria de Lourdes Medeiros, e sua filha, Maria Luiza. Mas também foi homem dos amores cotidianos, daqueles de que se tece a trama de uma vida plenamente vivida. Amava sua terra, sua gente. Adorava o carnaval, a festa, a dança, a música e os brinquedos de rua, que freqüentou e dos quais participou fielmente por anos a fio. E, sempre pontuando ou permeando tudo, a poesia. Aliás, se é possível estabelecer um paralelo entre vida e poesia, tão de gosto dos críticos e comentaristas de Ascenso, ele existe precisamente na medida em que a poesia de Ascenso se alimenta da ternura e da paixão de viver do poeta. A vida com suas cores, cheiros, sabores, vozes, imagens inunda a poesia de Ascenso, enchendo seus poemas de alegria ou de dor. A vida, presente nos poemas em toda a sua sensualidade, naquilo que deve ser visto, saboreado, cheirado, sentido, se descortina aos olhos do leitor, convidado pelo poeta a experimentar a realidade e a fantasia, a viver o gozo da comunhão da carne e a dor da desaparição ou da morte.
            Para Ascenso, portanto, a poesia se alimenta da vida. Não foi à toa, aliás, que no final da vida, doente, já privado de suas comidas favoritas, e limitado em seus movimentos e atividades, Ascenso quase deixou de escrever poemas e mal acompanhou a última edição de sua obra poética, a primeira que levava um selo de editora prestigiada nacionalmente. No entanto, a poesia de Ascenso também alimenta a vida, permite que ela se transfigure e se renove. É no espaço da poesia que Ascenso salvaguarda mundos sociais e universos culturais ameaçados de desaparecimento. Para o poeta pernambucano, é através da palavra que o passado pode ser revivido e o futuro pode ser inventado com múltiplas faces. É a poesia que permite a Ascenso tocar as cordas da sensibilidade humana, delas tirando acordes de dor e de alegria, que podem fazer sofrer, gozar, encarar paradoxos e limitações, e fantasiar. É através da poesia que Ascenso constrói sua utopia de um mundo encantado, onde o maior dos temores traveste-se do medo infantil da Cabra-Cabriola e do Pai-do-Mato.
            Infelizmente, esse grande poeta permanece conhecido de poucos e ainda é visto por boa parte desses poucos como poeta folclórico e pitoresco. É claro que não pretendi esgotar aqui – nem alhures -- as possibilidades de interpretação de obra tão rica e cheia de nuances. Porém, espero, sim, sugerir que Ascenso deixe de ser lido como poeta regional, como poeta menor, ou simplesmente pitoresco. Que Ascenso não seja apenas lido como curiosidade, mas que sua poesia possa ser usufruída como a grande obra moderna que é.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Ascenso Ferreira em quatro tempos (Terceiro)


Os textos desta série foram tirados da “Introdução” de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, edição da Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.
A filosofia do Sertão
            Um segundo núcleo temático característico da poesia de Ascenso reúne poemas cujo mote são cenas e eventos da vida cotidiana nordestina, a exemplo de “A Cavalhada” e “A pega do boi”. Uma outra série de poemas de Ascenso tem por temática central algum tipo de crítica ou denúncia. Alguns são casos evidentes de como a superfície do regional e do folclórico pode enganar o leitor desavisado. “Sertão” é uma espécie de anúncio da seca próxima, da morte, prelúdio de uma desgraça. O poema começa enunciando nomes de lugares, que dão à primeira estrofe uma sonoridade toda especial. Quando o próprio Ascendo recita o poema[1], os primeiros versos são divididos em duas partes contrastantes, a primeira em tom ascendente (“Sertão!”) e a segunda em tom descendente, grave (“— Jatobá!”). Depois, uma seqüência de estrofes curtas, de dois versos, traça um quadro bastante poético, com reses, bodes e “ovelhinas ternas”. O poema todo é muito lento, como um aboio. E marca uma temporalidade igualmente lenta, com uma musicalidade grave. Diferentes onomatopéias enriquecem o poema do ponto de vista sonoro, dominando três estrofes.
Nesse cenário pastoril, são sutilmente colocados os elementos que prenunciam a ruína: os “tristes bodes patriarcais” e “o sino da igreja velha”. Eles introduzem o verso agourento: “O sol é vermelho como um tição!”. Um comboio move-se lentamente, e os tangerinos cantam uma ladainha para Lampião, criando uma ponte mais direta para o desfecho do poema, com “o urro do boi no alto da serra”, diante dos “horizontes cada vez mais limpos”. O urro do animal corresponde à voz dos profetas “anunciadores de desgraças...”. A seca, que traz a morte, é metáfora de um outro fenômeno devastador, o avanço da civilização do automóvel (Ford) e da luz elétrica, que por onde passa vai matando a poesia. Nesse sentido, o aboio do poema é também o lamento de sua própria desaparição. Paradoxalmente, o tempo e o espaço do poema permitem que o aboio, ameaçado pela civilização, subsista.
            Motes e formas da cultura popular também figuram na poética de Ascenso como meios de expressão de questões filosóficas, além da crítica social. Temas como a condição humana e os contrastes entre os dramas individuais e os coletivos são versados em poemas de títulos folclóricos ou prosaicos: “Maracatu”, “Arco-Íris”, “O ‘Verde’”, “Ano-bom”, “Boletim nº 0” e “A copa do mundo”. Tema e linguagem popular compõem o ambiente do poema “Arco-Íris”. Na verdade, semanticamente todo o poema remete ao universo de brincadeiras infantis. Aspecto interessante é que esse poema começa pelo título, pois a primeira estrofe já é uma espécie de comentário ou resposta ao título. As duas primeiras estrofes são compostas de estribilhos que pertencem ao domínio popular, e organizam-se numa dinâmica de perguntas e respostas (“— Vamos passar nele por baixo!/— Vamos passá-lo... vamos passá-lo...”). Mas, a partir da terceira estrofe, começa a revelar-se uma outra dimensão do poema, e o leitor vai descobrindo que as brincadeiras de criança servem de mote a uma reflexão sobre a fugacidade da vida. A terceira estrofe, subitamente revela que “A chuva fina tem carícias de morte...” e relata o desaparecimento do Arco-Íris. A conclusão do poema, que condensa toda a sua problemática no último verso, é que a vida é fugaz como o Arco-Íris (“VIDA – Arco-Íris também...”).
Uma dezena de poemas de Ascenso, geralmente mais curtos, contam pequenas histórias, funcionando como poemas satíricos, poemas-piada ou simplesmente de registro de costumes. Bom exemplo é “Sucessão de São Pedro”, publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia, primeira dentição, nº 4, e que mistura riso e crítica. O poemeto de apenas cinco versos mostra a forma oportunista com que se comportam os sucessores de São Pedro, já que o vigário fica com a “galinha gorda”, trazida por um fiel para o “mártir São Sebastião” (“— Seu vigário!/está aqui esta galinha gorda/que eu trouxe pro mártir São Sebastião!/ — Está falando com ele!/— Está falando com ele!”).


[1] A Fundação Joaquim Nabuco tem em seu acervo a gravação dos poemas de Ascenso Ferreira, na voz do autor, que acompanhou a edição de 1951.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Ascenso Ferreira em quatro tempos (Segundo)


Os textos desta série foram tirados da “Introdução” de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, edição da Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.

Uma poética do encantamento

Neste segundo tempo, passo a tratar da poética de Ascenso do ponto de vista do conteúdo. São três os grandes temas abordados em sua poesia: 1) a cultura brasileira ou regional, embutindo, na maior parte dos casos, uma crítica à modernidade, sendo alguns poemas nostálgicos e outros, não; 2) o olhar sobre o cotidiano, que tanto se associa a reflexões filosóficas como à crítica social, ou ocorre simplesmente como registro satírico de costumes; e 3) o amor, algumas vezes associado a uma semântica do sagrado, com alguns poemas desenvolvendo uma relação estreita entre o erótico e o sagrado. Essas três linhas temáticas estão presentes nos livros de Ascenso (Cana Caiana, Catimbó e Xenhenhém), com pequenas variações conforme o peso que cada tema adquire no conjunto de um livro. Dessa forma, pode-se dizer que em Catimbó (1927) predomina a temática da cultura popular; em Caca caiana (1939) o tom nostálgico e a crítica à modernidade figuram de modo mais contundente; e em Xenhenhém (1951) o tema de maior destaque é o amoroso.
Dentro da primeira e ampla temática da cultura regional e brasileira, há poemas puramente nostálgicos, em que a evocação de festividades como o Natal, ou de assombrações como a Cabra-Cabriola, servem à exaltação dos valores tradicionais, que por sua vez remetem a um passado que se vai diluindo, atropelado pela modernização. Vários dos poemas de Ascenso soam como lamentos, e são elegias a mundos cheios de poesia, mas que ou estão em vias de desaparecer, ou já não existem mais, a não ser por obra da memória, da rememoração, da evocação, recursos que, aplicados à poesia, transformam o espaço do poema num mágico momento de resgate do passado.
O poema “Folha verde”, de Catimbó, é emblemático do sentimento nostálgico que marca a poética de Ascenso. A folha verde é a metáfora da “deliciosa meninice das gentes de minha terra”, evocada logo na primeira estrofe, através do lamento “que eu tanto amei e senti...”. Na seqüência, o poema traz um acúmulo de imagens da vida descontraída de uma meninice no campo, com versos escritos em gerúndio, de modo a marcar uma temporalidade em curso, que presentifica o passado (“Cavalos correndo,/Engenhos moendo,”). A maior parte dos versos traz a evocação de atividades, lugares, personagens típicos (“Babá-do-Arroz-Doce, Sá-Biu-dos-Cuscuz”) e de brincadeiras da infância, apresentadas em discurso direto (“— Boca de forno!/— Forno!”). Mas essas cenas lembradas, marcadas por um lirismo ingênuo e alegre, são pontuadas pela voz que repete o lamento de dor, de saudade e de luto por um mundo que feneceu, tal qual acontecerá com a folha verde: “Folha verde! — deliciosa meninice das gentes de minha terra,/que eu tanto amei e senti...”.
São vários os poemas em que Ascenso Ferreira associa o sentimento nostálgico a uma crítica explícita à modernidade, seja ela mais ou menos contundente. “A Cabra-Cabriola” é poema muito interessante em que a assombração que figura no título é a metonímia de um mundo marcado pela fantasia, pela inocência infantil, pelo encantamento, mundo onde se ouvem o vento, os rumores do rio e da mata, e onde o bacurau canta para o luar. As cinco primeiras estrofes recompõem precisamente esse passado idílico. Mas a passagem do tempo no poema (“30 anos se passaram”) traz a morte e o desaparecimento daquele mundo. Os rumores  da mata, onde vivia a Cabra-Cabriola, foram substituídos pelo “grito” do monstro-rádio, que fala inglês (“Embala-me o sono/um monstro a gritar:/‘— SPEAK DABLIÚ GI UAI’”). Nesse contexto, o último verso do poema é um apelo para que o mundo volte a ser o que era: “— Cabra-Cabriola, chega me pegar. . .”
Talvez seja “Noturno” o poema mais emblemático da nostalgia de um mundo enterrado pela modernização, de resto, típico do espírito que marcou a década de 20 em Pernambuco: “Sozinho, de noite,/nas ruas desertas/do velho Recife/que atrás do arruado/moderno ficou.../criança de novo/eu sinto que sou:”. O sujeito do poema, declaradamente Ascenso (“Que diabo tu vieste fazer aqui, Ascenso?”), vaga pela cidade à noite. De modo muito similar à poesia de Joaquim Cardozo, a noite permite a transfiguração, o retorno no tempo. De noite, o Recife volta a ser povoado por criaturas encantadas, como o Pai-do-Poço e o Papa-Figo. Mas os verdadeiros monstros não são os seres encantados, são antes as sombras dos guindastes, os símbolos da modernidade (“Dos brutos guindastes/de vultos enormes”). O poema termina com a interrupção do sonho e da magia por uma voz que parece ser a voz da modernidade, aquela que não admite os vagares do poeta, o ócio, o descompromisso, e a temporalidade da reminiscência: “— Larga de ser vagabundo, Ascenso!”
            Em outros poemas de Ascenso o objetivo parece ser a crítica à modernização ou à adoção irrefletida de valores estrangeiros, mas sem o tom nostálgico que marca os poemas analisados anteriormente. “Carnaval do Recife”, por exemplo, é poema em que se celebra a vitalidade da cultura popular. No espaço do poema, o carnaval mestiço ou mulato do Recife, com seus Mateus, Papangus e Burras-Calus e Nações de Maracatu, triunfa sobre o carnaval “copiado”, “estrangeirado”, portanto, inautêntico, de Colombinas (morre de peixeirada), Arlequins (leva um “rabo-de-arraia”) e Pierrots (toma um “clister-de-sebo-quente”). O poema termina com uma provocação “— Pega o pirão, esmorecido!”; expressão que pertence à cultura do Pastoril, e que no poema quer dizer: vê se agüenta a onda do carnaval do Recife, “o carnaval melhor do mundo”.

domingo, 24 de junho de 2012

Ascenso Ferreira em quatro tempos (Inaugural)


Os textos desta série foram publicados na “Introdução” de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, edição da Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.

 Ascensão: um poeta em aumentativo

Uma das primeiras coisas que chamam a atenção de quem se propõe a estudar a poesia de Ascenso Ferreira (1895—1995) é o contraste entre a escassez de textos críticos e a abundância do anedotário a seu respeito. Nas escassas publicações sobre Ascenso Ferreira, os comentadores centram-se sobretudo na sua figura “descomunal”, na espirituosidade, nas atitudes pouco convencionais, no vozeirão e no modo único de recitar suas próprias poesias. Em geral, nos textos escritos sobre Ascenso repetem-se dois argumentos complementares. De um lado, acentua-se esse lado pitoresco da figura humana, o Ascensão “amante da glutonaria”, dos jogos de azar, o “gigante” com alma de criança. E de outro lado, mas de certo modo como derivação do primeiro aspecto, cristaliza-se toda uma argumentação acerca da correspondência direta, melhor seria dizer, equivalência entre o poeta e sua terra, incluindo-se aí a sua gente.
A idéia de personagem folclórico e emblemático, evocada à exaustão pelos contemporâneos, e de certo modo alimentada pelo próprio Ascenso, acabou enviesando e restringindo a recepção de sua poesia. Poeta e poesia tornaram-se presas da armadilha do pitoresco e do ismo regional. Claro que essa tendência a ver a poesia de Ascenso como condensação da terra e da gente nordestinas deve-se, em parte, ao incontestável fato de a temática popular nordestina ser recorrente na sua poética. Tangerinos, boiadeiros, bêbados-de-fim-de-feira, coronéis, sem falar de assombrações e cenas de várias brincadeiras populares no Nordeste efetivamente freqüentam e muitas vezes definem o universo poético do poeta de Palmares.
Além disso, a poética de Ascenso é profundamente marcada pela oralidade, o que reitera as impressões de naturalidade e identidade com o universo popular de sua terra. Em seus poemas, há abundante utilização do discurso direto, visível no uso exacerbado dos travessões. Freqüentemente, inclusive, seus poemas têm várias vozes. E não raro essas vozes correspondem à voz anônima da coletividade, do povo, representado em seu linguajar cotidiano, sem marcações especiais, como aspas ou itálicos, de modo que têm nos poemas a mesma legitimidade da voz que narra ou revela os estados de alma do eu-lírico. Assim, expressões tiradas diretamente do falar do nordestino pontuam a poesia de Ascenso – que, todavia, também se utiliza de arcaísmos como “esquipar”, “trescalar” e “alcanfor”. As aspas, em geral, são usadas para destacar a reprodução, no poema, de canções, estribilhos, versos e refrões de brincadeiras consagrados pelo uso popular. Note-se, ainda, que a oralidade e o recurso aos estribilhos associam-se a uma poética muito marcada pela narratividade, já que muitos dos poemas de Ascenso contam pequenas histórias.
Isto posto, gostaria de salientar que, se Ascenso encontra no chão nordestino sua ambiência, e se retira o tom de sua dicção poética dos falares e cantares da gente simples, nada existe de natural na sua poesia. Muito pelo contrário, nosso poeta é um dedicado e atento trabalhador do verso. Raros críticos procuraram estudar o uso que o poeta fazia da métrica e da rima. Talvez enfeitiçados pelo poder encantatório dos poemas, poucos buscaram analisar o trabalho vigoroso do poeta sobre o ritmo, seu jogo poético em cima de formas musicais tradicionais, como cocos, maracatus e sambas de roda. O poeta partia das formas populares, mas apenas para brincar livremente com elas, escolhendo cuidadosamente palavras e formulações frasais que pudessem tornar seus poemas mais expressivos. Manoel Bandeira e Mário de Andrade estão dentre os raros leitores de Ascenso que enfatizaram o trabalho do versejador, e seus resultados. Ambos destacam a convivência harmônica entre o verso livre e o verso bem ritmado, cadenciado, medido, como uma das grandes contribuições de Ascenso à moderna poesia brasileira. As palavras de Bandeira são esclarecedoras: “Verso metrificado, verso livre, rima, toada musical, frases soltas – todos esses elementos do discurso poético se fundem pela mão de Ascenso numa coisa só, peça inteiriça, onde não se nota a menor emenda, a menor fenda”
Também é preciso dizer que se há toda uma dimensão nitidamente nordestina na semântica de Ascenso, esta não compromete sua universalidade, e bem pode ser decodificada por brasileiros de distintas regiões. Em poemas como “Xangô”, por exemplo, Ascenso aborda uma temática que remete ao universo afro-brasileiro, trabalhando, portanto, com um legado que pertence a boa parte do país. Agora, de fato, o poema utiliza uma semântica característica — “ingonos”, “Odé”, “Bomiê”, “Parafuá”, “liamba” —, que serve para reforçar a coerência interna do poema e, no entanto, não impede aos que não têm familiaridade com esse vocabulário de apreender o grito de dor e pesar que nele se desenha. O canto dilacerado de quem foi arrancado à sua terra para adubar com suor e sangue paragens alheias dá corpo e transforma em imagem um drama universal.
Assim sendo, se por um lado a poesia de Ascenso está profundamente enraizada no Nordeste, daí extraindo seu substrato, presente nas imagens, cenas, expressões, estribilhos, crendices, linguajar e na semântica sobre a qual assentam vários de seus poemas (como “quixaba”, “ingá”, “mondé”, “caracará”, “catolé”, “ingono”, “queixar”, “bulir”, “quicé”, “mangangá”, “catimbó” e “xenhenhém”), de outro lado, os temas privilegiados pelo poeta são de amplo alcance. Traduzem preocupações do seu tempo, na medida em que respondem a inquietações, dilemas e expectativas produzidos pelos processos de modernização, que figuram tanto nos romances de Marcel Proust como na poesia de Robert Frost, nas telas de Cícero Dias ou na rapsódia de Mário de Andrade. Também remetem ao cotidiano em que se desenrolam os dramas humanos, particulares e coletivos, e às alegrias e dores de amor, cegas a distinções de classe, sexo, raça ou lugar.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Diário de viagem: Manaus, parte 13 (fim)


Manaus, 13 de fevereiro

Uma semana transcorreu sem novidades. Encerramos o trabalho e chegamos ao último dia dessa aventura amazonense. Acordei bem cedo para fazer as malas. Eu e Vivi deixamos a bagagem no quarto de Guida e saímos para fazer nosso passeio de barco. No caminho, liguei pro barqueiro, que nos deu um bolo. Inventou que estava com dengue. De todo modo, resolvemos caminhar até o porto, na esperança de achar alguém que nos levasse a passear. Descobrimos que já era tarde para ir fazer o passeio que inclui o mergulho com os botos vermelhos (Tenório me esclareceu que esse negócio de boto cor-de-rosa é invenção de Jacques Cousteau; a denominação local é boto vermelho). Só para chegar no Ariaú, onde há treinadores e animais já acostumados com turistas, é uma hora e meia de viagem. Ficamos bem decepcionadas. O capitão nos propôs um tour pelo encontro das águas, e igarapés, porém não simpatizamos com ele – muito cheio de bossa -- e seguimos adiante. Encontramos um capitão de um pequeno barquinho, que nos pareceu uma gracinha de pessoa. Um senhor com cara de índio, pele morena e olhos cinzentos. A doçura que havia em seu olhar nos seduziu. Seu Severino deve ter uns cinquenta anos, embora aparente mais idade. Tem a pele curtida de sol. Nos propôs um passeio até o encontro das águas e disse que poderíamos tentar mergulhar com os botos que ficam nadando por lá. Perguntamos se não haveria perigo, nadar com botos, assim, no meio do rio. Ele disse que não. Perguntei se ele mergulharia conosco e ele respondeu que sim. Lá fomos nós.
A primeira parada foi num posto de gasolina flutuante. BR. Penso em como a Amazônia é um outro mundo. A relação primordial das pessoas é com a água. Toda a vida se organiza em torno dos rios e igarapés. Tudo depende da vontade deles. O comportamento de suas águas determina o ritmo da vida humana, inclusive o da produção e circulação de bens e pessoas. Botos, vermelhos e tucuxis aparecem, de vez em quando, à tona d’água. Para nossa frustração, nenhum deles se aproxima do barco. Nos damos conta de que deveríamos ter trazido peixe fresco a bordo, para atrai-los. Ainda estamos muito perto do porto e as águas são imundas.
O tempo resolveu colaborar. Os sinais de uma possível chuva estão muito distantes no horizonte. Por cima de nossas cabeças, o céu está cheio de flocos de algodão. Por entre as nuvens claras e fofinhas, alguns clarões de azul. Nos afastamos do porto, seguindo à esquerda, em direção ao encontro das águas. À nossa direita, até aonde a vista pode alcançar, um imenso tapete de água escura, bordejado pela franja verde da floresta. Ainda margeamos o leito esquerdo do rio, onde se sucedem portos: graneleiro, cargas, Marinha, Petrobras. Vemos cilos, guindastes, contêineres, cargueiros, tanques imensos. Não trouxemos máquina fotográfica. Será preciso registrar tudo na memória, e nas páginas do caderninho onde vou anotando essas impressões.
Afinal nos afastamos da margem esquerda, e chegamos ao famoso encontro das águas. Colocamos as mãos nas águas dos dois rios: de um lado, o Negro, mais quente e calmo, de outro, o Solimões, de águas mais claras, na realidade, barrentas, frias e bem mais revoltas. Seu Severino pára o barco. Queremos mergulhar. Na hora do pega para capar, ele se mostra temeroso. Nos fala de crocodilos, peixes enormes e piranhas. Hesitamos. Dois rapazes se aproximam numa canoa. Trazem um filhote de bicho-preguiça e uma grande sucuri. Vivem de mostrar esses bichinhos aos turistas, em troca de alguns tostões. Nem deveríamos, mas acabamos fazendo “negócio”. Pego a sucuri nos braços. É linda. O couro macio. As escamas de uma geometria rigorosa e bela. Tons suaves de amarelo fazem desenhos bonitos, em contraste com o verde e o preto, predominantes. Seguro sua cabeça e miro seus olhos. Ela põe a língua preta, bipartida na ponta, para fora. Sinto-me mal. Tudo aquilo é de uma judiação sem tamanho. Observo seu corpo, cheio de feridas. Machucam-me, ainda que sejam superficiais. Certamente decorrem do manuseio, do tempo excessivo passado dentro da canoa. Passo a mão sobre seu corpo suavemente, como se meu gesto de carinho pudesse oferecer-lhe algum consolo. Procuro racionalizar a situação. O sacrifício daquela cobra representa o ganha-pão dos rapazes e suas famílias. É disso que vivem. De saciar a curiosidade de turistas fascinados com o exótico. Também tomo a preguiça nos braços. Aconchego-a junto ao peito e deito sua cabecinha no meu ombro. Move-me o mesmo desejo de ampará-la. É muito fofinha. E parece mais afeita ao chamego. Acaricio-lhe a barriguinha e ela fecha os olhinhos. Tem dois aninhos e estatura ainda pequena. Devolvemos os bichinhos aos rapazes. Demo-lhes algum dinheiro. Continuo me sentindo mal com a situação. Uma predadora da natureza. Antes que a canoa se afaste, pergunto aos meninos se há algum perigo em mergulhar ali, no meio do rio. Eles dizem que não. Criamos coragem e mergulhamos. Estamos muito próximas ao encontro das águas, mas nadamos no lado do rio Negro. É mais tranquilo, mais quente, logo, bem mais convidativo. O que faz medo é a escuridão. Não se vê sequer um palmo abaixo da linha d’água. Seu Severino, para não quebrar a promessa, pula também. Porém, nota-se que está apreensivo. Achamos sua inquietação muito divertida. Viviane se afasta, nadando. Seu Severino logo volta ao barco. Subo e ele leva o barco ao encontro de Viviane. Pulo novamente na água. Ainda temerosa. Seu Severino nos avisa que dois botos-tucuxis se aproximam do barco. Só que estão do outro lado, e não vêm até nós. A sensação de mergulhar nesse rio, enorme, escuro e misterioso é sensacional. Tenho medo e ao mesmo tempo estou fascinada. A água fresca e doce envolvendo todo o corpo é uma delícia. A poucos metros, o revolto Solimões. Seu Severino, no barco, está apreensivo. Para não abusar muito da sorte, decidimos encerrar o mergulho. De algum modo, esse banho no rio nos compensou da frustração de não nadarmos com os botos, como era nosso plano inicial.
Seguimos o passeio, tomando a direção da margem direita. Nos aproximamos da floresta. Na entrada de um igarapé paramos numa casinha onde é possível simular uma pesca de pirarucu. A situação – por sua artificialidade -- não me parece animadora, porém, Viviane e Seu Severino insistem. Subimos numa plataforma que circunda tanques, onde estão pirarucus, tambaquis e aruanãs. O tanque dos pirarucus está lotado. O rapaz amarra peixes pequenos num barbante e lançamos a vara. Os pirarucus mordem a isca e entramos numa queda de braço. Fazendo força, é possível levantá-los acima da água. O que vale é a experiência de sentir o peso considerável deles. São enormes e lindos. Sobretudo na parte posterior, onde o cinza-chumbo se entremeia com um rosa-choque intenso.
Dali seguimos para o parque ecológico. Longo trajeto. Vamos acompanhando a margem, bem pertinho da floresta anfíbia. Começa literalmente dentro d’água. Olhando para as copas das árvores, o que vemos é um emaranhado de galhos, folhas, cipós, trepadeiras. Trata-se de uma visão curiosíssima. Lembrei-me do título de um livro que nunca li, de Candace Slater: Entangled. Definição perfeita do que vejo. É uma paisagem ao mesmo tempo monótona e diversa. Sempre aquela franja verde, ao pé do rio. No entanto, cada trecho é formado de árvores todas diferentes umas das outras. São várias as tonalidades de verde, os desenhos das folhas, a grossura dos troncos, a altura das copas. A sensação predominante é de emaranhado mesmo. Tudo enroscado, confuso, imperfeito. Essa impressão de inacabado e de imprevisível me agrada muitíssimo. Em certos trechos, dentre as copas avistam-se as pontas de algum tipo de palmeira. Devem ser altíssimas. Na parte mais baixa, já dentro do rio, aqui e acolá uma garça, impávida. Dentro d’água, predomina um tipo de capim alto. Seu Severino informa que são canaranas. Essa vegetação flutuante forma tapetes verdes em largos trechos, criando a ilusão de terra firme. Basta passar um barco mais rápido e o tapete ondula, fazendo crer que a terra se move, que é fluida, flexível. Muito legal.
Sobre a floresta, muitas nuvens escuras. Vemos uma coluna de fumaça negra ao longe. Alguma queimada. Acima de nós, o céu permanece azul, com lindos flocos de algodão. A essa altura, estou sentada na proa estreita do barco. Sinto-me feliz, sentadinha ali, sentindo o vento e a água sob os pés, que de vez em quando ponho para fora do barco. Adoro a sensação da água passando ligeira sob eles, massageando-os. Se acreditasse em reencarnação, diria que em outra vida fui um pescador. Simplesmente adoro sentar na proa de um barco. Viviane abriga-se do sol sob a coberta do barco. Avistamos um boto vermelho, impressionante, enorme. Paramos o barco, mas ele se afasta, some no meio das canaranas. Várias gaiolas passam por nós: Suely Gomes, Célia Cristina, Saulo Ribeiro.... As redinhas penduradas, com passageiros bem aboletados nelas. Um dia ainda farei uma viagem num barco desses. Quem sabe vou de Manaus a Belém, cruzando o Amazonas.... Suely Gomes nos dá um banho fenomenal. Ficamos ensopadas, e nossas bolsas idem.
Gaivotas de rio mergulham, caçando peixes. Sobrevoam nosso barquinho. São brancas e têm as pontas das asas negras. Dir-se-ia raquíticas, se comparadas às suas primas de São Francisco, ou do Canal da Mancha. Quase pigméias, feita essa injusta comparação. Na realidade, são pequeninas e muito elegantes. Nota dissonante: garrafas plásticas boiando entre as canaranas.
Passamos por comunidades ribeirinhas. Essas casinhas flutuantes têm um incrível charme. São feitas de tábuas de madeira, dispostas transversalmente. Algumas coloridas, outras em madeira natural, já opaca pela ação da intempérie. As perninhas finas, próprias das palafitas, dão-lhes um ar de improbabilidade. Parece até uma pobreza decente, se isso existir (e não for mera construção de poetas e sociólogos). Em uma varanda, uma senhorinha se balança na cadeira. Mais adiante, uma casa-bar, flutuante, toca um desses bregas pavorosos. Um velhinho passa por nós numa canoa. Parece quase cego. Responde com imensa alegria ao nosso boa tarde. Sua simplicidade me comove profundamente.
Chegamos ao parque ecológico. Tem um restaurante cheio de turistas. Dispensamos o almoço, o centro de artesanato, e seguimos pela plataforma de madeira que adentra a floresta. No caminho, escutamos um toc-toc. Paramos. É um belíssimo pica-pau. A plumagem do corpo é negra, com uma tira transversal branca em cada asa. A cabeça de um vermelho intenso. Um penacho charmoso, tipo Tin Tin. O lago das vitórias-régias é um cenário impressionante. Damos a sorte de encontrar apenas um casal de turistas no local, que já está de saída. Podemos, então, contemplar o cenário em paz. Boa parte da superfície do lago está tomada por enormes vitórias-régias. Estão florindo, embora as flores, cor-de-rosa por fora, estejam fechadas. Diz seu Severino que elas só desabrocham à noite, e que são alvíssimas por dentro. Há vitórias-régias menores, de todos os tamanhos. Nota-se que quanto menores, mais enrugadas. Só as grandes têm a superfície bem esticada. Em meio a elas, exatamente abaixo da plataforma onde nos encontramos, um jacaré descansa à beira d’água. Imóvel. Só pisca o olho quando algum inseto lhe pousa em cima.
O lago está cercado pela floresta verde. Dentro dele há vários troncos sem uma única folha, esbranquiçados, alguns pela metade. Essas árvores fantasmagóricas parecem formar uma floresta morta, aquática. Impressionante a altura da marca do nível da água nos troncos. Nos damos conta de que em tempo de cheia braba estaríamos submersos. Fecho os olhos para escutar os barulhinhos da mata. São múltiplos, profusos. Pássaros, insetos, anfíbios. De repente, tem início um concerto de rãs. Um coaxar lindo, inusitado para mim. Fico encantada. Param do mesmo modo súbito com que iniciaram a cantoria. Observando a parte do lago que não está coberta pelas vitórias-régias, avistamos aruanãs (o peixe do meu quadro). Há muita vegetação flutuante, formando pequenas ilhas. São umas plantinhas delicadas, de folhinhas redondas e pequeninas. Como se fossem miniaturas de vitória-régia. Duas jaçanãs ciscam num desses tapetes. São super graciosas. Pescoço preto, bem fininho, assim como as perninhas. O corpo é redondinho, de um marrom alaranjado. Uma delas levanta vôo e eu chamo a atenção de Vivi para o branco das asas abertas (com as pontinhas pretas). Lindo! Porém, mais lindo é o comentário de seu Severino. Ele me pergunta: “São brancas ou são amarelas?” Obviamente que são amarelas! De um amarelo bem suave, como venho a confirmar depois. Foi o jeito mais delicado que eu já vi de alguém corrigir o outro! A delicadeza de seu Severino me mareja os olhos.
Voltamos pela plataforma de madeira. Descemos dela para adentrar um pouquinho a selva. Caminhamos até uma enorme samaúma. Imponente na sua aparente imperfeição. Seu tronco, até certa altura, lembra uma imensa raiz de árvore. Espinhos grossos lhe revestem a casca. Voltamos para o barco. No caminho, cruzamos com uma legião de turistas, a caminho do lago das vitórias-régias. Alguns bufam e perguntam ao guia se será preciso andar muito! Uma mulher comenta com o marido que ali é tudo igual. Deus do Céu, o que fazem aquelas criaturas ali? Certamente estão no lugar errado. Por que não foram para Nova York ou Miami, fazer compras?
Entramos no barco e seguimos em busca de um pequeno igarapé, desses que entram pela floresta. Navegamos bastante no mesmo igarapé largo em que estávamos antes. Vários barcos com turistas e ribeirinhos passam por nós. Sigo sentada na proa. Passa por nós uma canoa com uma velhinha e uma menina linda. Nos cumprimentam sorridentes. Vez por outra avistamos um boto e paramos o barco, na esperança inútil de que algum deles se aproxime de nós. A verdade é que não me sinto mais frustrada. Ainda que não possa tocá-los, me alegra muito contemplá-los em seu habitat natural, em sua vida ordinária. Finalmente encontramos um igarapezinho navegável. Entramos na floresta. A vegetação abundante, dentro d’água, nos obriga a desligar o motor. Temos de remar. Viviane assume o comando do remo e até que se sai bem. Estamos sozinhos ali. Nós e a floresta, com seus habitantes misteriosos, de cuja presença podemos nos aperceber apenas pelos ruídos. Um grilo pousa nas costas de Viviane. Como é belo! O corpo é verde-musgo, com listras finíssimas, em verde fluorescente. As perninhas coloridas por listras horizontais, em marrom-alaranjado e preto. No rosto, listrado de verde, sobressaem-se os olhinhos de um preto intenso. Olho para ele e surpreende-me a nítida sensação de que ele está me encarando. Admiro sua leveza, desafiando a gravidade. Viviane o espanta com as mãos. Seu Severino vira o barco e começamos a viagem de volta.
Deixamos a floresta e retornamos ao igarapé maior. A caminho do rio Negro, contemplo pela última vez aquela paisagem. Sempre sentada na proa. O olhar passeando em volta, e parando na linha do horizonte. Por cima de nós, as gaivotas. Aos lados, nas canaranas, garças e jaçanãs ensaiam vôos curtos. Estou encantada com o colorido das jaçanãs. Avistamos dois gaviões belíssimos. Majestosamente pousados em troncos de árvores mortas. A plumagem é marrom e branca. Têm as garras negras e uma faixa também preta na altura dos olhos. Como se estivessem mascarados. Paz e alegria é o que sinto.
O tempo fecha. Nuvens negras, carregadas, cobrem Manaus e parecem cada vez mais próximas de nós. Uma tempestade se anuncia. Começo a torcer para que cheguemos logo ao porto, antes que a chuva nos apanhe em pleno rio. Quando isso acontece, formam-se ondas enormes para o tamanho do barquinho em que estamos. Vivi isso da última vez em que estive aqui. Chamam-se banzeiros.
Entramos no rio Negro. À medida em que nos aproximamos do porto de Manaus, o lixo flutuante se multiplica. A água começa a cheirar mal. Hora de abandonar meu lugarzinho na proa do barco. Sento junto de Viviane. Sábia decisão. Duas lanchas rápidas passam por nós e encharcam a proa do barco. Teria tomado um banho de água suja. Desembarcamos. Agradecemos fervorosamente a seu Severino. Pagamos além do acordado. Peço-lhe permissão para um abraço. Sua simplicidade e alegria me aquecem o coração.
Caminhamos ligeiro, subindo a Av. Eduardo Ribeiro. Queremos chegar ao hotel antes da chuva, mas ela nos apanha a dois quarteirões de nosso destino. A água cai do céu com vontade. Grossos pingos nos deixam completamente molhadas. No entanto, não podemos nos queixar. O passeio foi maravilhoso. Isso é o de menos. Chegamos, tomamos banho e saímos para almoçar com Guida. O único lugar aberto às cinco da tarde é o shopping. Alimentadas, voltamos ao hotel e estamos fazendo hora, até que chegue o momento de ir para o aeroporto. Parto feliz com o que o vivi aqui, embora já seja tempo de voltar para casa.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Diário de viagem: Manaus, parte 12


Manaus, 07 de fevereiro

No intervalo de duas entrevistas, eu e Vivi demos um pulo no cemitério. Fomos ver o túmulo do rabino. Fiquei impressionadíssima. O túmulo é muito simples. Tem uma parede na cabeceira, com uma lápide de mármore branco em cima. Inscrições em ídiche e a Estrela de Davi. Rabino Imanuel Muyal. Ele ficou conhecido como “Rabi Salon”. Pois no alto da lápide está a inscrição: Rabi Shalom Imanuel Muyal. O túmulo está todo protegido por grades, em azul claro. Por dentro da grade, na muretinha que cerca o túmulo, placas de agradecimento pelas graças alcançadas. Sobre o túmulo, inúmeras pedras e flores. Eu e Vivi colocamos pedrinhas, inclusive uma para Guida. Estou absolutamente fascinada com essa história. Quando estávamos procurando pelos túmulos das “polacas”, Guida ligou e tivemos de ir embora. Espero que haja tempo para voltarmos ao cemitério. Gostaria muito de ver esses túmulos e visitar a parte israelita do cemitério. Segundo o senhor que conhecemos no Palácio de Justiça, o primeiro corpo enterrado ali foi o do homem que conseguiu a cessão do terreno para instalação do cemitério israelita.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Diário de viagem: Manaus, parte 11


Manaus, 06 de fevereiro

Acordei me sentindo um pouco melhor. Decidi ir à feira. Sozinha mesmo. Não demorei muito porque comecei a me sentir meio fraca, a pressão baixando. Comprei ramutã e maracujá da selva. Fruta interessantíssima esta. Por fora lembra um maracujá, só que de vez. Não tem as rugas do primo. Parte-se a fruta com a mão. Entre a casca e a polpa há uma grossa camada de um tecido branco esponjoso. Super macio. Só depois de se romper essa proteção, chega-se à polpa, de cor acinzentada e super doce. Parece um cerebrozinho em miniatura. Os carocinhos são envoltos nessa carne cinzenta, muito mole. Na realidade, chupamos esse miolo, que passa à boca com a maior ligeireza e suavidade. Engole-se a fruta com carocinhos e tudo. Não tem um perfume marcante, mas é muito gostosa.
Cena engraçada: Conversei uns 3 minutos com o vendedor do maracujá, indagando-lhe sobre a fruta. De repente, ele se vira para mim e pergunta se eu sou casada. Felizmente, tive suficiente presença de espírito para mentir e dizer que sim. Ele, então, me retrucou: E cadê seu marido? Não está com você? Respondi-lhe que estava numa viagem de trabalho e que viera sozinha. A resposta o deixou perplexo. Me disse que aqui no Amazonas não tem disso, não. Mulheres casadas não viajam sozinhas, que os maridos não admitem. Despedi-me rindo muito. Creio que em outro contexto teria ficado zangada. Mas havia tanta inocência nessa “cantada”, que achei fofo o jeito dele. Nem por um segundo passou por sua cabeça que fizéssemos parte de mundos muito distintos. Ou, se passou, certamente não lhe pareceu um empecilho. E ele ainda era baixinho. Talvez tivesse 2/3 da minha altura. Enfim. Sua ingenuidade me sensibilizou.

À noite, eu e Vivi fomos ao Palácio de Justiça para assistir a mais um recital do nosso jovem pianista. Chegamos e ele estava à porta. Abriu um sorriso quando nos viu, mas o sorriso durou pouco. Constrangido, veio nos dizer que o recital havia sido antecipado em uma hora e que terminara naquele instante. Ficamos desconsoladas. Um senhor, que tinha vindo visitar o Palácio, lhe sugeriu que tocasse mais uma música, para nos contemplar. Ele adorou a idéia, consultou os monitores do prédio e corremos para a sala do recital. Tocou-nos uma única música. A sonata n.1 de Rachmaninoff. Sensacional. Ele é mesmo uma gracinha!
Já que estávamos ali, fomos fazer a visita guiada do Palácio. Começo a desconfiar desse processo de restauro empreendido pela Secretaria de Cultura. O Palácio de Justiça mesmo não foi restaurado! Não se pode chamar de restauração a uma pintura de portas e janelas que imita sei lá que tipo de madeira. Simplesmente, pintaram e mobiliaram o prédio de qualquer jeito, para que ele pudesse ser aberto à visitação. Não parece ter havido ali qualquer preocupação com a feição original das coisas. Tive uma péssima sensação de que tudo ali era meio fake – à exceção da escadaria em ferro fundido e da fachada neoclássica (que felizmente está num amarelo discreto, com detalhes brancos). O mais interessante da visita foi a conversa com um senhor, acompanhado de dois filhos, que me contou várias coisas sobre a presença dos judeus no Amazonas. Falou-me sobre o túmulo de um rabino que a população local acredita ser milagreiro. E sobre os túmulos das “polacas”. Falei-lhe sobre Traduzindo Hannah. A vida é mesmo surpreendente. Eis uma conversa que jamais suspeitaria ter aqui em Manaus. Esta semana não posso deixar de ir visitar o cemitério de São João Batista, onde se encontram esses túmulos. Fica junto do Reservatório do Mocó.