Quem quiser pensar em construir um Brasil pós-Bolsonaro
vai precisar realizar um genuíno esforço de leitura do que nós vivemos nessa
eleição de 2018. Aferrar-se a certezas e palavras de ordem é o caminho certo
para o fracasso de qualquer projeto político – presente ou futuro.
Nesse sentido, as reações de Haddad e do PT à vitória de
Bolsonaro são uma péssima notícia. Hillary Clinton e Donald Trump protagonizaram
a mais agressiva campanha presidencial da história recente dos Estados Unidos. Acredito
ser desnecessário estabelecer juízos de valor sobre o presidente americano. É quase
inacreditável que os Estados Unidos tenham trocado um presidente com a estatura
de Barack Obama por um ogro como Trump. No entanto, mesmo tendo ganho no voto popular(!), mesmo tendo sido vítima de fake news gravíssimas (patrocinadas pelo
todo-poderoso governo russo), Hillary Clinton ligou para Trump,
reconhecendo a vitória do adversário. Não é difícil imaginar que a candidata
derrotada não fez isso em respeito a Donald Trump, figura pela qual é provável que
tenha o mais profundo desprezo. O
telefonema de Hillary simboliza seu respeito pela DEMOCRACIA, e pelos
milhões de americanos que por qualquer razão que seja, decidiram, com seus
votos, colocar Trump na presidência. Isso se chama também civilidade, decência,
grandeza moral.
Infelizmente, o gesto e o discurso de Haddad após a
apuração sugerem uma estatura moral apequenada. A reação da manhã seguinte, tardia
e mediada pelas redes sociais, é largamente insuficiente como correção do feio
papel da véspera. Como cidadã e estudiosa de nosso processo político, o
comportamento do candidato derrotado e de seus aliados me entristece e me preocupa
porque aponta para uma total incapacidade de compreensão do processo que estamos
vivendo no Brasil, hoje. Como disse Merval Pereira, Haddad encheu a boca para
falar dos 47 milhões de votos que recebeu, esquecendo-se de que quatro anos
atrás Aécio Neves teve 51 milhões de votos! Também parece ignorar que Bolsonaro
se elegeu presidente da República, com 57 milhões de votos: sem marqueteiro, sem
o apoio da grande mídia, sem uma grande estrutura de campanha, sem “palanque”,
sem dinheiro, sem alianças com grandes empresários e contra os grandes caciques da política nacional! Quase toda a sua
campanha foi feita de dentro de casa, com um celular 4G e um tripezinho de mesa.
Seu programa eleitoral foi gravado na sala da casa de um amigo. Se tudo isso
não levar o PT a refletir sobre seus erros não consigo imaginar o que possa
fazer...
Como disse, quando me pronuncio a respeito da chocante
incapacidade de autocrítica do PT -- e das demais forças de esquerda e de
centro!!! --, o faço movida por uma preocupação profunda com o futuro do Brasil.
Embora já não me identifique com a esquerda (obra do Mensalão), tenho convicção
de que a saúde da Democracia carece
de uma esquerda forte, madura e efetivamente comprometida com os destinos do
país.
Nossos próximos quatro anos são uma incógnita. O governo
Bolsonaro é, para mim, um enorme ponto de interrogação. Ainda que não consiga
compartilhar do pânico de muitas pessoas, é óbvio que olho para o horizonte
nacional com profunda inquietação – por razões que explorarei em outros textos.
Curiosamente, não tenho medo de uma escalada de violência
contra minorias. Acredito firmemente nas nossas instituições democráticas,
dentre as quais se inclui a Justiça. E é bom mantermos a clareza de que JÁ
convivemos com crimes de homofobia, feminicídio e racismo. Aliás, se bem me lembro,
o Brasil costuma frequentar as páginas de relatórios de organizações internacionais
que nos colocam em posição pouco confortável a esse respeito. Logo, associar automaticamente
qualquer novo crime dessa natureza à eleição de Bolsonaro é, pelo menos,
leviano. Teremos que esperar as estatísticas anuais e comparar números para estarmos
autorizados a qualquer conclusão fundamentada.
Em tempo: a teoria do caos e os exageros da retórica costumam
surtir o efeito de desacreditar o discurso de crítica. A pessoa que força a barra
de sua argumentação, acaba por ficar desacreditada. Mais ou menos como acontece
na historinha que meu pai me contava sobe o menino que vivia fingindo afogamento
e acabou morrendo porque, quando aconteceu de verdade, ninguém foi socorrê-lo.
Objetivamente, se cada briga de bar for apontada como culpa de Bolsonaro, o
coletivo terá dificuldade de discernir uma real escalada de crimes de ódio e
preconceito.
Outras questões me preocupam bem mais no futuro governo
Bolsonaro do que uma improvável escalada de violência contra minorias. E, insisto,
minha maior preocupação reside na escassez de sinais das demais lideranças
políticas desse país no sentido de uma reflexão profunda e desarmada sobre as
causas da vitória de Bolsonaro. As ruas se pronunciaram com toda clareza desde
2013. Foram solenemente ignoradas por políticos de todas as colorações. O
resultado do surto coletivo de ensimesmamento político foi o chamado tsunami eleitoral.
A sociedade civil organizada que luta por uma agenda de
esquerda também precisa fazer essa reflexão, caso queira retomar essa mesma
agenda com alguma possibilidade de sucesso. A análise dos processos históricos
(totalmente esquecida quando não é conveniente) indica que agendas progressistas
não negociadas com o coletivo costumam gerar reações contrárias exacerbadas. É
precisamente o que se chama de reacionarismo (a etimologia é bastante evidente).
Logo, gritar, espernear e continuar alimentando o discurso do pânico e do ódio dificilmente
produzirá resultados positivos. Já um tantinho de humildade e um esforço verdadeiro
de empatia poderiam produzir maravilhas. Menos julgamento e mais compreensão,
como reza a Antropologia.
O Brasil certamente agradecerá.