segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 44


02/11/15

Apóstolo Santiago:
Estou aqui, como milhares de peregrinos, ao longo dos séculos, oferecendo a Deus o cansaço do Caminho. Venho com o desejo de aprender a caminhar pela senda da Vida, que é Cristo. Ajuda-me, tu que seguiste o Mestre até dar tua vida por Ele. Dá-me um coração grande e generoso como o teu, para que também eu seja apóstolo de Cristo. / Maria Santíssima, Rainha dos Apóstolos, faz-me sentir o amor e a ternura do teu coração. Ajuda-me com teu sorriso e teu carinho de Mãe a percorrer o caminho da vida com a alegria dos filhos de Deus. / Roga por nós, bem-aventurado Santiago. Para que sejamos dignos das promessas de Nosso Senhor Jesus Cristo. / Oremos: Aceita, Senhor, as súplicas que te dirigimos por meio do teu Apóstolo Santiago, e faz com que a peregrinação ao seu sepulcro, farol de unidade cristã, nos disponha a percorrer juntos o caminho que conduz à glória eterna. Por Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
Eis, Niquinha, a oração a Santiago, que ganhei hoje numa Igrejinha do Santo, em Boente. Lá assisti à missa do Dia de Finados. Um padre velhinho e simpaticíssimo me recebeu com tanta alegria e carinho! É uma Igreja pequenina, caiada de branco, com uma torre de sinos vazada, mais comprida e delgada que as que tenho visto. O interior é muito simples e o altar tem as feições renascentistas que não me encantam muito. Mas nada disso importa. Assisti à missa tão comovida. Parecia que todos os senhorzinhos e senhorinhas da pequena Boente estavam lá, para rezar por seus mortos. Eles iam chegando e depositando papéis dobrados em cima do altar. A missa foi rápida, talvez mais curta que a leitura dos papeizinhos, logo antes da bênção final. A cada intenção, rezávamos um Pai-Nosso e o padre encomendava as almas dos mortos. Em silêncio, rezei pelos meus.
Tão engraçado, porque eu já estava meio que num espírito de finalização do Caminho. Já com vontade de chegar, e achando que tinha vivido o que era necessário e importante. E, no entanto, o Caminho continua me surpreendendo. Antes dessa missa, na saída de Melide, passei por uma outra Igrejinha, toda de pedra, cercada por uns cipestres. Estava aberta e entrei. Havia um rapaz recebendo os peregrinos, carimbando as credenciais e dando explicações sobre a Igreja de Santa María. Nica, eu estava em frente ao altar e José me contava a história daquele templo, e eu fui ficando toda arrepiada. Enquanto ele falou, fiquei emocionada, sem entender muito bem porquê.
Essa Igrejinha de Santa María é uma preciosidade! Foi construída no século XII e o altar tem pinturas em estilo bizantino, do século XIV. Lembra que eu te falei do Panteón, um claustro que existe em León, com umas pinturas magníficas (que não podem ser fotografadas)? Pois é o mesmo estilo. Inclusive, tem a mesma representação, do Senhor do Mundo, cercado de figuras que simbolizam os quatro Evangelistas (águia, touro, anjo e leão). Só que na pintura de Santa María, o Senhor do Mundo é Deus Pai, que segura Jesus crucificado. Todo o altar, inclusive a mesa, está decorado com essas pinturas do século XIV. A Igreja também conserva o exemplar mais antigo da Espanha das grades que se usavam muito nas Igrejas, para separar altares. É um trabalho em ferro tão delicado, como se fossem uns arabescos. E a pia batismal, também do século XII, tem a forma octogonal que era marca registrada dos Cavaleiros Templários. A fachada da Igreja tem, igualmente, várias particularidades templárias. No portal da entrada principal, há um relógio solar de 24 casas. As primeiras casas têm símbolos templários, e lá pelo meio há símbolos celtas, que evocam a energia da Terra. Segundo José, há alguns pontos da Igreja com elevada concentração de energia (lembra que uma brasileira com quem eu caminhei, Celina, me disse que nas pesquisas dela, ela leu que os Templários tinham muito conhecimento sobre a energia dos elementos naturais?). Eu só posso te dar testemunho da emoção que senti enquanto estive ali.
Ah! Aprendi com José a razão de ser dos frisos de xadrez que tanto me encantam nas Igrejas de pedra mais antigas do Caminho (as do período Românico). O óbvio ululante: as Igrejas eram o principal abrigo de quem peregrinava a Santiago. O xadrezinho indicava aos peregrinos o próprio Caminho de Santiago. Numa época ainda extremamente distante das famosas flechinhas amarelas. Ao seguirem as Igrejas com frisos em xadrez, os peregrinos de outrora sabiam que estavam no rumo certo.
Conversei um tempo bom com José, que sabe Reike, e trabalhou um pouco no meu pé. Continuei minha caminhada mais leve e mais alegre. Cruzei muitos bosques na primeira parte. Em dado momento, deu um vento mais forte e vi uma linda chuva de folhas bem à minha frente. Fazia um bonito dia de sol, e eu podia vislumbrar o azul do céu por entre os troncos e galhos das árvores já bastante desnudas. Estava eu andando por uma dessas matas, quando escuto uma flauta. Eu já comentei que esses bosques me dão a impressão de estar numa estória dessas meio mágicas. Pensei, rindo comigo mesma, só me falta aparecer um Fauno aqui. A música era doce e alegre. Não era um fauno, apenas um rapaz, numa velha calça jeans, de barba trançada. Ele é húngaro (esqueci seu nome!) e conheceu a namorada, italiana, no Caminho. Cada um deles tinha um burrinho consigo. Ao observarem a coincidência, entenderam que aquilo não era coincidência. Terminaram o Caminho juntos e agora estão voltando, procurando por um lugar para ficar e montar um ponto de acolhida de peregrinos. No momento, estão acampando, e ficam ali, no meio da mata, pedindo doações. Com uma batata eles fizeram um carimbo que tem a carinha de um burro. No burro de verdade, o mais claro, pintaram um sorriso e a frase Buen Camino. Eu carimbei meu passaporte, fiz uma doação e pedi que ele continuasse tocando. Ele tocou uma música linda, meio celta, chamada O caminho do peregrino. Nos abraçamos e continuei minha marcha.
Foi depois da flauta e dos burros que passei pela Igrejinha de Santiago, onde ia começar a Missa de Finados. Nessa cidadezinha de Boente, pouco antes da Igreja, duas crianças estavam vendendo braceletes numa banquinha. O menino devia ter uns 4 aninhos, e a menina, uns 6. Comprei uma pulseirinha e eles me desejaram Buen Camino. Tão fofinhos! Após a pequena Boente, passei por um lugarejo de poucas casas, e por uma cidade bem charmosinha, Ribadiso de Baixo, com casas de pedra, ao pé de uma ponte medieval toda coberta de musgo e de hera. De resto, quando não estava caminhando pelo meio de bosques, andei por entre pastos, pequenas plantações e vários sítios, com belas hortas. Cada pé de couve imenso. Te juro que via algumas mais altas que eu. Ah! Pela primeira vez na vida vi um pé de kiwi! É uma trepadeira. Cresce que nem videira! Uma graça. Os kiwis ficam penduradinhos feito cachos de uva. Aliás, vi belos cachos de uva nos quintais e fachadas de algumas casas. São uvas distintas das que vi nos parreirais das vinícolas. São grandes e parecem bem suculentas. Fiquei tã tentada a pegar um cachinho... mas não tive coragem.
A caminhada de hoje foi dura, viu? Me surpreendeu. Muitas subidas íngremes e, claro, muitas descidas também. Assim, não foi nada terrível. Só puxado mesmo. Acaba que cheguei a Arzúa sentindo a planta do pé meio dolorida. Mas acho que é mais muscular. A inflamação da lateral está sob controle. O lado bom das subidas é que normalmente nos proporcionam vistas preciosas. Foi o caso hoje. Muitas vistas de vales e colinas. E essa área da Galícia é muito graciosa, porque tem muitas pequenas plantações, e pastos, casinhas perdidas no meio das colinas, vacas, ovelhas. E pelo meio, sempre algum bosque.
Sabe quem eu encontrei na estrada, no meio de um bosque, voltando de Santiago? Nacho. Lembra do espanhol que está peregrinando desde Roma? Pois é. Ele chegou a Santiago junto com o grupo de brasileiros que conheci em O Cebreiro, e agora está voltando. Quer caminhar até Lourdes. Conversamos um pouco. Dei a ele minha medalhinha de São Bento, um abraço bem forte, e segui meu rumo.
Ontem, Flávio tinha me mandado uma foto dele, Paulo e Karine em Santiago. Desde o dia 18 de outubro, mais ou menos, venho recebendo notícias dos meus companheiros de caminhada que já chegaram a Santiago. É sempre uma grande alegria receber a notícia de que alguém que compartilhou momentos especiais com você, chegou a Santiago. É como se uma parte de você também estivesse lá...
Para mim serão mais dois dias de marcha. Estou em Arzúa. Uma cidadezinha sem maiores interesses. Me instalei em um albergue novinho em folha, De Camino. Tomei um banho quente delicioso, meditei um pouco e saí para procurar algum lugar pra comer. Muita coisa está fechada porque é Dia de Finados, então, a cidade está bem morta. De todo jeito, não há nada de muito especial em Arzúa. Nem a Igreja de Santiago tem muita graça. Jantei no Café teatro. Pedi uma salada e um pedaço de tortilla. Veio tanta comida que saí de lá quase passando mal. Gostoso, abundante e barato. Não posso me queixar.
Vou ver se durmo cedo, para acordar cedinho e ver se saio até umas oito da manhã. Foi a hora que saí hoje de Melide, e o dia rendeu muito. Aliás, dormi muito bem em Melide. O austríaco não roncava e dormi bem quentinha. Só que tinha hora para deixar o albergue. Por isso, tive de levantar às seis e meia. Às oito eu estava pegando meu beco. O albergue aqui de Arzúa é mais flexível, porém, vou tentar sair cedo amanhã, pois até Pedrouzo são vinte quilômetros, e com meu pé ainda sensível, e minha mochila, isso me custará muitas horas de caminhada. O quarto onde estou tá cheio. Tem umas americanas, umas canadenses e apenas um homem. Uma das canadenses é uma senhorinha de 83 anos! Fala pra mamãe que da próxima vez ela vem comigo!
Agora de noite o tempo fechou e começou a choviscar. Amanhã a previsão é de chuva.
É isso, Minha Irmã! Vou começar a me organizar para dormir.
Beijos mil,

Léia

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