02/11/15
Apóstolo Santiago:
Estou aqui, como milhares de peregrinos, ao
longo dos séculos, oferecendo a Deus o cansaço do Caminho. Venho com o desejo
de aprender a caminhar pela senda da Vida, que é Cristo. Ajuda-me, tu que
seguiste o Mestre até dar tua vida por Ele. Dá-me um coração grande e generoso
como o teu, para que também eu seja apóstolo de Cristo. / Maria
Santíssima, Rainha dos Apóstolos, faz-me sentir o amor e a ternura do teu
coração. Ajuda-me com teu sorriso e teu carinho de Mãe a percorrer o caminho da
vida com a alegria dos filhos de Deus. / Roga por nós, bem-aventurado Santiago.
Para que sejamos dignos das promessas de Nosso Senhor Jesus Cristo. / Oremos:
Aceita, Senhor, as súplicas que te dirigimos por meio do teu Apóstolo Santiago,
e faz com que a peregrinação ao seu sepulcro, farol de unidade cristã, nos
disponha a percorrer juntos o caminho que conduz à glória eterna. Por Nosso
Senhor Jesus Cristo. Amém.
Eis, Niquinha, a
oração a Santiago, que ganhei hoje numa Igrejinha do Santo, em Boente. Lá
assisti à missa do Dia de Finados. Um padre velhinho e simpaticíssimo me
recebeu com tanta alegria e carinho! É uma Igreja pequenina, caiada de branco,
com uma torre de sinos vazada, mais comprida e delgada que as que tenho visto.
O interior é muito simples e o altar tem as feições renascentistas que não me
encantam muito. Mas nada disso importa. Assisti à missa tão comovida. Parecia
que todos os senhorzinhos e senhorinhas da pequena Boente estavam lá, para
rezar por seus mortos. Eles iam chegando e depositando papéis dobrados em cima
do altar. A missa foi rápida, talvez mais curta que a leitura dos papeizinhos,
logo antes da bênção final. A cada intenção, rezávamos um Pai-Nosso e o padre
encomendava as almas dos mortos. Em silêncio, rezei pelos meus.
Tão engraçado, porque
eu já estava meio que num espírito de finalização do Caminho. Já com vontade de
chegar, e achando que tinha vivido o que era necessário e importante. E, no
entanto, o Caminho continua me surpreendendo. Antes dessa missa, na saída de
Melide, passei por uma outra Igrejinha, toda de pedra, cercada por uns
cipestres. Estava aberta e entrei. Havia um rapaz recebendo os peregrinos,
carimbando as credenciais e dando explicações sobre a Igreja de Santa María.
Nica, eu estava em frente ao altar e José me contava a história daquele templo,
e eu fui ficando toda arrepiada. Enquanto ele falou, fiquei emocionada, sem
entender muito bem porquê.
Essa Igrejinha de
Santa María é uma preciosidade! Foi construída no século XII e o altar tem
pinturas em estilo bizantino, do século XIV. Lembra que eu te falei do Panteón,
um claustro que existe em León, com umas pinturas magníficas (que não podem ser
fotografadas)? Pois é o mesmo estilo. Inclusive, tem a mesma representação, do
Senhor do Mundo, cercado de figuras que simbolizam os quatro Evangelistas
(águia, touro, anjo e leão). Só que na pintura de Santa María, o Senhor do
Mundo é Deus Pai, que segura Jesus crucificado. Todo o altar, inclusive a mesa,
está decorado com essas pinturas do século XIV. A Igreja também conserva o
exemplar mais antigo da Espanha das grades que se usavam muito nas Igrejas,
para separar altares. É um trabalho em ferro tão delicado, como se fossem uns arabescos.
E a pia batismal, também do século XII, tem a forma octogonal que era marca
registrada dos Cavaleiros Templários. A fachada da Igreja tem, igualmente,
várias particularidades templárias. No portal da entrada principal, há um
relógio solar de 24 casas. As primeiras casas têm símbolos templários, e lá
pelo meio há símbolos celtas, que evocam a energia da Terra. Segundo José, há alguns
pontos da Igreja com elevada concentração de energia (lembra que uma brasileira
com quem eu caminhei, Celina, me disse que nas pesquisas dela, ela leu que os
Templários tinham muito conhecimento sobre a energia dos elementos naturais?).
Eu só posso te dar testemunho da emoção que senti enquanto estive ali.
Ah! Aprendi com José a
razão de ser dos frisos de xadrez que tanto me encantam nas Igrejas de pedra
mais antigas do Caminho (as do período Românico). O óbvio ululante: as Igrejas
eram o principal abrigo de quem peregrinava a Santiago. O xadrezinho indicava
aos peregrinos o próprio Caminho de Santiago. Numa época ainda extremamente
distante das famosas flechinhas amarelas. Ao seguirem as Igrejas com frisos em
xadrez, os peregrinos de outrora sabiam que estavam no rumo certo.
Conversei um tempo bom
com José, que sabe Reike, e trabalhou um pouco no meu pé. Continuei minha
caminhada mais leve e mais alegre. Cruzei muitos bosques na primeira parte. Em
dado momento, deu um vento mais forte e vi uma linda chuva de folhas bem à
minha frente. Fazia um bonito dia de sol, e eu podia vislumbrar o azul do céu
por entre os troncos e galhos das árvores já bastante desnudas. Estava eu
andando por uma dessas matas, quando escuto uma flauta. Eu já comentei que
esses bosques me dão a impressão de estar numa estória dessas meio mágicas.
Pensei, rindo comigo mesma, só me falta aparecer um Fauno aqui. A música era
doce e alegre. Não era um fauno, apenas um rapaz, numa velha calça jeans, de
barba trançada. Ele é húngaro (esqueci seu nome!) e conheceu a namorada,
italiana, no Caminho. Cada um deles tinha um burrinho consigo. Ao observarem a
coincidência, entenderam que aquilo não era coincidência. Terminaram o Caminho
juntos e agora estão voltando, procurando por um lugar para ficar e montar um
ponto de acolhida de peregrinos. No momento, estão acampando, e ficam ali, no
meio da mata, pedindo doações. Com uma batata eles fizeram um carimbo que tem a
carinha de um burro. No burro de verdade, o mais claro, pintaram um sorriso e a
frase Buen Camino. Eu carimbei meu
passaporte, fiz uma doação e pedi que ele continuasse tocando. Ele tocou uma
música linda, meio celta, chamada O caminho
do peregrino. Nos abraçamos e continuei minha marcha.
Foi depois da flauta e
dos burros que passei pela Igrejinha de Santiago, onde ia começar a Missa de
Finados. Nessa cidadezinha de Boente, pouco antes da Igreja, duas crianças
estavam vendendo braceletes numa banquinha. O menino devia ter uns 4 aninhos, e
a menina, uns 6. Comprei uma pulseirinha e eles me desejaram Buen Camino. Tão fofinhos! Após a
pequena Boente, passei por um lugarejo de poucas casas, e por uma cidade bem
charmosinha, Ribadiso de Baixo, com casas de pedra, ao pé de uma ponte medieval
toda coberta de musgo e de hera. De resto, quando não estava caminhando pelo
meio de bosques, andei por entre pastos, pequenas plantações e vários sítios,
com belas hortas. Cada pé de couve imenso. Te juro que via algumas mais altas
que eu. Ah! Pela primeira vez na vida vi um pé de kiwi! É uma trepadeira. Cresce
que nem videira! Uma graça. Os kiwis ficam penduradinhos feito cachos de uva.
Aliás, vi belos cachos de uva nos quintais e fachadas de algumas casas. São
uvas distintas das que vi nos parreirais das vinícolas. São grandes e parecem
bem suculentas. Fiquei tã tentada a pegar um cachinho... mas não tive coragem.
A caminhada de hoje
foi dura, viu? Me surpreendeu. Muitas subidas íngremes e, claro, muitas
descidas também. Assim, não foi nada terrível. Só puxado mesmo. Acaba que
cheguei a Arzúa sentindo a planta do pé meio dolorida. Mas acho que é mais
muscular. A inflamação da lateral está sob controle. O lado bom das subidas é
que normalmente nos proporcionam vistas preciosas. Foi o caso hoje. Muitas
vistas de vales e colinas. E essa área da Galícia é muito graciosa, porque tem
muitas pequenas plantações, e pastos, casinhas perdidas no meio das colinas,
vacas, ovelhas. E pelo meio, sempre algum bosque.
Sabe quem eu encontrei
na estrada, no meio de um bosque, voltando de Santiago? Nacho. Lembra do
espanhol que está peregrinando desde Roma? Pois é. Ele chegou a Santiago junto
com o grupo de brasileiros que conheci em O Cebreiro, e agora está voltando. Quer
caminhar até Lourdes. Conversamos um pouco. Dei a ele minha medalhinha de São
Bento, um abraço bem forte, e segui meu rumo.
Ontem, Flávio tinha me
mandado uma foto dele, Paulo e Karine em Santiago. Desde o dia 18 de outubro,
mais ou menos, venho recebendo notícias dos meus companheiros de caminhada que
já chegaram a Santiago. É sempre uma grande alegria receber a notícia de que
alguém que compartilhou momentos especiais com você, chegou a Santiago. É como
se uma parte de você também estivesse lá...
Para mim serão mais
dois dias de marcha. Estou em Arzúa. Uma cidadezinha sem maiores interesses. Me
instalei em um albergue novinho em folha, De Camino. Tomei um banho quente
delicioso, meditei um pouco e saí para procurar algum lugar pra comer. Muita
coisa está fechada porque é Dia de Finados, então, a cidade está bem morta. De
todo jeito, não há nada de muito especial em Arzúa. Nem a Igreja de Santiago tem
muita graça. Jantei no Café teatro. Pedi uma salada e um pedaço de tortilla.
Veio tanta comida que saí de lá quase passando mal. Gostoso, abundante e
barato. Não posso me queixar.
Vou ver se durmo cedo,
para acordar cedinho e ver se saio até umas oito da manhã. Foi a hora que saí
hoje de Melide, e o dia rendeu muito. Aliás, dormi muito bem em Melide. O
austríaco não roncava e dormi bem quentinha. Só que tinha hora para deixar o
albergue. Por isso, tive de levantar às seis e meia. Às oito eu estava pegando
meu beco. O albergue aqui de Arzúa é mais flexível, porém, vou tentar sair cedo
amanhã, pois até Pedrouzo são vinte quilômetros, e com meu pé ainda sensível, e
minha mochila, isso me custará muitas horas de caminhada. O quarto onde estou
tá cheio. Tem umas americanas, umas canadenses e apenas um homem. Uma das
canadenses é uma senhorinha de 83 anos! Fala pra mamãe que da próxima vez ela
vem comigo!
Agora de noite o tempo
fechou e começou a choviscar. Amanhã a previsão é de chuva.
É isso, Minha Irmã!
Vou começar a me organizar para dormir.
Beijos mil,
Léia
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