terça-feira, 28 de abril de 2015

O Bom Pastor


Domingo passado fui à missa na Igreja Episcopal, com D. A denominação é Anglicana e o rito da missa é praticamente idêntico ao da Igreja Católica. Uma diferença importante: eles convidam todos os batizados em Cristo a receber a Comunhão. Num dos panfletos da Igreja, eu li que isso não significa que eles não levem em conta a importância da Comunhão, mas sim, que eles dão extrema relevância ao Batismo. Perspectiva muito interessante. Também me parece muito bom que eles não imponham o celibato aos sacerdotes. Tomara que Francisco consiga levar nossa Igreja a esse ponto de equilíbrio e bom senso.
A missa foi linda. Teve coro e um organista que abriu e fechou a celebração com peças clássicas. D. passou a cerimônia inteira gentilmente selecionando as páginas das leituras e dos cantos, nos dois enormes livros posicionados em frente a cada fiel. Estava preocupada que eu pudesse acompanhar tudo. Uma gracinha.
A Igreja de St. James (São Tiago) é um belo prédio do século XIX, em tijolo aparente por fora. Um edifício sóbrio e elegante, com uma comprida torre e a fachada principal pontiaguda. Dentro, destaca-se a madeira trabalhada, em estilo gótico, com dois vitrais grandes nas laterais da nave principal, retratando cenas da vida de Cristo. A única imagem de santo é a de Saint James, acima do altar, retratado num conjunto de “vitrais” da Tyffany, do início do século XX (1910 mais ou menos). Todo o conjunto sugere uma atmosfera de sobriedade, quebrada basicamente pelo colorido dos forros dos bancos no altar, preciosamente bordados, e pelo carpete fuccia, que forra toda a igreja. A nave central, na realidade, é pequena. E a missa teve uma reduzida audiência. Vi apenas quatro pessoas negras, dentre as quais o organista e duas mulheres que cantavam no coro. Antes e após a missa, os fieis e sacerdotes se reúnem no ampla e igualmente elegante salão paroquial, aos fundos da Igreja. Servem-se cookies, café e limonada.
O que mais gostei foi o sermão do Padre. Um senhor gorducho, de cavanhaque branco e gestos tranquilos, porém firmes. Seu tom de voz era igualmente calmo, baixo, porém, seguro. O tom da voz que exorta, orienta, com serenidade e sem pretensão. Conheci outros padres americanos que falavam de modo semelhante. Talvez seja um traço cultural. Não há estridência. Não há exagero. Me transmitem uma sensação de equilíbrio que parece tão adequada ao seu papel de líderes espirituais... No Brasil, lembro-me de dois sacerdotes que falavam com essa serenidade, firme e humilde: Padre Luiz Antônio, que foi pároco em Boa Viagem, e Frei Aloísio, da Ordem Terceira de São Francisco. Não o conheci pessoalmente, mas acho que D. Helder também falava assim. Acho que quero dizer que nessas pessoas a autoridade moral, a liderança espiritual, prescinde da voz elevada ou estridente, ou de qualquer gestual mais dramatizado...
O padre de St. James proferiu um belo sermão sobre O Bom Pastor. Duas ideias me chamaram a atenção. A primeira foi sobre a sensação de conforto que uma voz conhecida sempre provoca em nós, criaturas humanas. Somos capazes de reconhecer as vozes dos que amamos à primeira palavra. E como esse reconhecimento pode nos encher de alegria! É um fato. O desafio é o de também estarmos aptos a reconhecer a voz de Deus, quando Ele fala conosco.

A segunda ideia é ainda mais interessante e diz respeito à imagem do Bom Pastor. Quem é, afinal de contas, o Bom Pastor? Em seu sermão, o Padre nos convidou a pensarmos no Bom Pastor não apenas como aquela figura que ampara, e que é capaz de dar a vida por suas ovelhas, mas como alguém que também está ali para exortar, quem tem um cajado na mão e um saquinho de pedras, para cutucar e admoestar as ovelhas que querem seguir pelo caminho indevido. O Bom Pastor é aquele que sabe ser firme e rigoroso quando é disso que suas ovelhas precisam. E aí, seguindo outro traço que talvez também tenha a ver com uma tradição cultural americana – e que muito me agrada --, o padre conectou essa mensagem com o cotidiano de seus fiéis. Nos exortou a pensarmos nos bons pastores que cruzaram nosso caminho, de quem nem sempre soubemos reconhecer as lições importantes. Nos estimulou a sermos bons pastores na vida de outras pessoas. Cumprindo, dentre outras, a espinhosa missão de advertir, cutucar e alertar.

domingo, 26 de abril de 2015

O suor do rosto

Na minha passagem por Miami, meu amigo Carlos me contou que havia lido sobre um tratamento muito eficaz para insônia. Eficaz e simples. A pessoa tem de passar 7 dias num lugar sem utilizar a luz elétrica. Preferencialmente numa área rural. Parece que depois de 7 dias dormindo com as galinhas e acordando com os galos, o corpo passa por uma espécie de reprogramação. Como se o organismo desse um reboot, ou zerasse tudo, pra recomeçar a contagem. Zerado, ele volta a funcionar direito. Trata-se de uma espécie de reprogramação de si mesmo.
Desde que Carlos me disse isso, que estou com essa imagem na cabeça. Parece-me uma metáfora interessante para o que eu estou tentando fazer comigo mesma. Nada a ver com insônia, mas com esse desejo de reprogramar comportamentos, concepções, prioridades. E assim como o insone busca reequilibrar o sono por meio da luz natural, o que estou tentando fazer é viver de atividades primárias, básicas, manuais. Voltar ao primitivo, para conquistar uma renovação genuína e profunda.
Claro que estou apenas no início desse processo, mas tenho me sentido muito gratificada com atividades primárias, que nunca fizeram parte da minha vida. E como estou trabalhando para ter comida e cama, pela primeira vez na minha vida posso dizer que estou literalmente vivendo do suor do meu rosto. Faz alguns dias que trabalho duro, puxando folhas com um “garfo”, remexendo a terra, plantando mudas, aguando plantas. E tenho feito questão de não usar luvas. Me dá prazer sentir a terra nas mãos, enquanto assento as raízes de uma plantinha que um dia será uma bela e frondosa árvore. Nessa lida, tenho me lembrado muito de Iza. Lembro de como ela conversava com as plantas na casa de vovó e, depois que meus avós morreram, na casa dela. Estou tentando fazer a mesma coisa, conversar com as minhas mudas, tratá-las com genuíno carinho, pra ver se elas crescem bonitas e viçosas.

Meu corpo, claro, acostumado apenas ao computador, está se ressentindo. Músculos me doem por toda parte. Mas até isso me alegra. Cada vez que sinto um músculo reclamando, tenho a certeza de que estou fazendo a coisa certa. Em pouco tempo sei que meu corpo estará afeito a essas atividades. Não me cansarei tanto como agora. Irei adquirindo resistência, à medida que o organismo se reprograma. Reprogramar a mente e o espírito será bem mais complexo e mais lento. Sei disso. E sei também que chegarei lá.

Um subúrbio americano


Os subúrbios americanos têm uma configuração muito particular. D. mora num subúrbio de Baton Rouge. Tenho saído para caminhar todos os dias (tentando desenvolver o hábito da atividade física), e aproveito essas ocasiões para observar a configuração espacial e humana do subúrbio. Me parece uma espécie de entre-lugar. Os subúrbios americanos ficam nas periferias das grandes e médias cidades, porém não têm nada a ver com as periferias brasileiras. Os subúrbios permitem que as pessoas fujam do ruge-ruge das cidades. Viver nessas áreas periféricas significa ficar mais distante dos engarrafamentos, do movimento intenso de pedestres, do barulho e da poluição dos centros de cidade. No entanto, também significa ficar distante de suas facilidades e conveniências, cinemas, bares, mercados. Quando se mora nos subúrbios, parece que dá pra fazer poucas coisas a pé. Minha impressão – que pode estar errada – é de que o carro se faz necessário para quase tudo. Além disso, os subúrbios estão sempre perto das highways e freeways, cujas margens não têm nenhum charme.
Tenho apreciado muito minhas caminhadas diárias, por essa vizinhança de ruas arborizadas, calmas e silenciosas. Confesso, porém, que não me agradaria a ideia de viver numa área com essa configuração. Todas as ruas nos arredores se parecem. Todas as casas se parecem. Predominam tons neutros nas fachadas. Basicamente o bege, quebrado aqui e acolá por alguma parede branca. Algum proprietário mais ousado, tem a fachada da casa cor de terra. Se alguém se aventura no verde, é um verde água, bem esmaecido. A sensação geral é de certo monocromatismo. Ousadia das ousadias, uma porta vermelha. Sinto falta de ver mais casas avarandadas, que não deixam de ser uma herança arquitetônica, profundamente vinculada à história desse estado sulista. Os jardins é que variam mais, e dá gosto observar alguns deles. Nenhuma das casas têm cerca. Jardins se dispõem à frente das portas, e terminam em calçadas, seguidas de um gramado que se interpõe à rua. Bandeiras americanas pontuam esse cenário. Minha casa favorita nessa vizinhança é uma casa com parte da fachada branca, com lamparinas a gás ladeando a porta de entrada. Tem o sabor nostálgico que me agrada quase sempre.
De modo geral, para mim, a beleza e o charme vêm principalmente das árvores. Os jardins são repletos delas. O que não apenas gera sombra, como serve de casa para pássaros e esquilos. As ruas são tranquilas e silenciosas (de ruídos humanos ou de máquinas). Raramente passam carros, quando estou caminhando. Assim, escuto basicamente o barulho alegre dos pássaros. Vejo inúmeros esquilos brincando nos gramados e nas árvores. Passam ligeiros diante de mim e sobem pelo troncos com grande agilidade e muita graça. Há muitas magnólias, que estão em plena floração. Admiro suas flores de enormes e firmes pétalas brancas.
O ambiente é muito propício para a caminhada e a reflexão. Em contrapartida, as pessoas não se encontram e não se falam. D. me confirma essa impressão. Os vizinhos não conversam, não interagem. Ela me explica que é uma vizinhança um tanto envelhecida, com raras crianças. Talvez nem todas as vizinhanças de subúrbios sejam assim... Em todo caso, a ampla extensão das fachadas das casas, associada ao uso constante de carros para o deslocamento cotidiano, me dão a sensação de não favorecer o convívio e a intimidade.

Claro que viver nos subúrbios é uma escolha por um estilo de vida. E como tudo na vida tem suas vantagens e desvantagens. O ponto de ônibus mais próximo da casa de D. fica a 40 minutos de caminhada. Seria um problema para mim, se fosse ficar mais tempo, ou se sentisse a necessidade de ir à cidade com mais frequência. Para D. é conveniente, porque seu amplo quintal é fundamental para as atividades que ela desenvolve e que lhe são tão caras. Enfim, mais uma prova de que não se pode ter tudo, e de como é importante que cada um tenha a clara noção de suas prioridades, para que não se sacrifiquem coisas essenciais, sem as quais, a paz de espírito é difícil de ser alcançada.

Pessoas são complexas

Como me ensinou papai, a gente não deve se deixar abater na primeira dificuldade. E também precisamos ter paciência uns com os outros. Estou muito feliz por não ter cedido à tentação de não lidar com a instabilidade de humor de D., e por não ter ido embora, em busca de uma situação mais fácil e mais reconfortante.
Tenho tido muitos momentos agradáveis e preciosos com D. Tenho aprendido muitas coisas com ela, sobre como cuidar de plantas, sobre a história e a cultura da Lousiana, sobre a arte de cozinhar. Após o estresse da véspera do Earth Day, D. foi gradualmente se acalmando e relaxando. Temos tido longas e deliciosas conversas, sobre o Brasil e sobre os Estados Unidos. Ela tem me levado a vários lugares que frequenta, e hoje me levou para visitar o antigo Palácio de Governo de Baton Rouge. Também está cogitando a possibilidade de ir comigo a um parque nacional histórico, que fica a três horas e meia daqui. Na terça passada, ela foi almoçar com amigos num lugar que vende frutos do mar e trouxe várias coisas para preparar um jantar especial para mim e para L. Comemos camarões frescos, peixe e perna de rã, fritos, com tempero cajun. Delicioso! Ontem foi a minha vez de retribuir. Fiz um molho ragú (com presunto) para o jantar, e ela adorou. Antes de ir embora, tentarei fazer uma feijoada.
Sem dúvida, teria sido mais cômodo partir. Ainda bem que fiquei. Sinto-me gratificada pelo que estou recebendo, e pelo que tenho a possibilidade de ofertar. D. é uma pessoa solitária e sofrida. Sei que ela está feliz com a minha companhia, com meu trabalho, com a possibilidade de compartilhar das minhas experiências e visão do Brasil. Meu coração sente isso com toda clareza. Conjugamos de certas concepções sobre política e religião. Nos emocionamos juntas, ouvindo a uma música chamada Here I am, Lord, que ela pôs para eu escutar. Estabelecemos uma relação de troca, enriquecedora para nós duas.
Faz uns dois dias, ela me chamou no quintal, à tardinha, para sentir o perfume das flores, que uma brisa de entardecer estava espalhando por toda parte. Foi mágico. O enorme jasmineiro que ela tem junto a uma cerca rescendia fortemente. Seu perfume se alternava com o de uma plantinha chamada honey buckle. D. me mostrou como tirar a pontinha do pé da flor e puxar um fio que solta uma gota de seiva docinha, parecendo um mel. Uma experiência cheia de delicadeza e sutileza.
Hoje, enquanto caminhava, pensava na convivência desses últimos dias com D. e refletia sobre como nós temos essa tendência a achar que as situações que estamos vivendo, no presente, são eternas. Ou pelo menos damos um grau de dramaticidade ao presente que só serve para gerar ansiedade, sofrimento e estresse; normalmente desnecessários. Quando a filosofia Zen diz que só existe o tempo presente, quer nos ensinar a nos libertarmos seja da nostalgia do passado, seja da ansiedade pelo futuro. Só que é muito importante fugirmos à armadilha de viver o presente como se ele fosse eterno. Não é. Como dizia vovô Jader: Não há bem que pra sempre dure, nem há mal que não se acabe.

O nervosismo de D. passou. Ela continua sendo uma pessoa de equilíbrio emocional delicado, logo, instável. Porém, aprendi a lidar com ela. Tive paciência para esperar a tempestade se desfazer, e agora estou colhendo deliciosos frutos. Aliás, literalmente, pois antes de ontem fomos à igreja dela apanhar umas mudas de uma “ameixeira japonesa” e colhemos frutos sborosos, de uma espécie que eu nunca havia provado. Essas ameixas são pequenas, amarelas, com uma penugem exterior que lembra mais um pêssego, e delicadamente doces. Mais um momento de alegria e descoberta ao lado dessa figura generosa e amorosa, que é tão complexa como todos nós somos.

Plantation Houses: uma viagem no tempo


O Sul dos Estados Unidos tem uma formação histórico-social que guarda alguns paralelos com o Brasil. Foi nessa região do país onde se instalaram latifúndios monocultores, com sua casas-grandes e senzalas. Na Lousiana, muitas dessas propriedades foram preservadas e podem ser visitadas. Como admiradora e, acho que posso dizer, discípula de Gilberto Freyre, não podia deixar de fazer uma incursão dessa natureza.
Num belo dia de sol e bastante calor, convenci L. a visitar algumas Plantation Houses que ficam ao Norte de Baton Rouge, no município de St. Francisville, a pouco menos de uma hora de carro. Duas observações gerais devem ser feitas a respeito das propriedades que visitei nessa região de Baton Rouge. A primeira é que as casas-grandes datam, na verdade, do século XIX, o que representa uma diferença importante em relação ao Brasil, onde as casas-grandes dos velhos engenhos do Nordeste são bem mais antigas. A segunda, é que as instalações onde viviam os escravos – o equivalente às nossas senzalas – não mais existem. De todo modo, o passeio vale demais a pena, seja para apreciar a arquitetura peculiar, seja para caminhar pelos imensos jardins, com vegetação exuberante e árvores magníficas.
The Myrtles Plantation é uma propriedade privada, que oferece visitas guiadas à casa-grande, além de hospedagem em quartos no interior e fora da casa. A casa-grande foi construída em 1796, mas o que se visita são instalações adicionadas posteriormente, na primeira metade do século XIX. A casa-grande não é tão grande assim, porém, é muito charmosa, com sua fachada em madeira branca e enormes janelas, protegidas por persianas de madeira. Uma ampla e convidativa varanda se estende por todas as faces da casa, emoldurada em ferro trabalhado, como se fosse uma renda. É o mesmo gênero de varanda que caracteriza a arquitetura do French Quarters, em Nova Orleans, e que me encanta. Na varanda da Myrtles Plantation, cadeiras de balanço evocam a temporalidade mais vagarosa dos tempos idos. Há uma simplicidade elegante na fachada da casa, que contrasta com a suntuosidade francesa da decoração interior.
Um jovem rapaz faz as vezes de guia na visita ao interior do edifício, que reivindica o título de uma das casas mais mal-assombradas dos Estados Unidos. A mobília, preservada do século XIX, é quase toda francesa, assim como os adornos e objetos de uso pessoal: belos lustres, canapés e poltronas forrados com brocados e bordados preciosos, móveis em madeira trabalhada, alguns objetos marchetados, a louça refinada sobre a mesa pronta para o jantar. A recomposição dos ambientes da casa parece autêntica, com algumas exceções, como as pesas cortinas de veludo verde e franjas douradas, que o guia faz questão de salientar serem semelhantes às utilizadas por Scarlett O´hara para fazer-se um novo vestido, no clássico E o vento levou.... Dentre os vários objetos que vejo, dois são novidades para mim. Ambos têm a mesma função de livrar os comensais de inconvenientes – e certamente abundantes – moscas. Algo semelhante a um enorme abanico de madeira pende do teto sobre a mesa de jantar. Por meio de uma corda, algum escravo produzia movimentos pendulares, de modo a abanar as moscas. Repousado sobre a mesa, um engenhoso objeto de vidro, parecido com a tampa de uma compoteira, era usado para aprisionar os indesejáveis insetos, de modo que não importunassem demasiado a refeição.
O guia nos conta histórias de morte, doenças, mentira, traição, incluindo assassinatos. O Coronel que implantou a propriedade foi um dos líderes da chamada Revolta do Whiskey (rebelião contra a pesada cobrança de impostos pela Coroa Inglesa). O segundo dono da casa, seu genro, foi morto à queima-roupa, na varanda, por um desconhecido a cavalo. Uma escrava envenenou um bolo de aniversário, matou algumas pessoas da família e foi enforcada. Uma das netas do Coronel morreu ainda criança, no curso de uma epidemia, e seu retrato terminou de ser pintado após sua morte. O retrato é impressionante. Nota-se uma clara diferença entre a metade do rosto pintada antes da morte da menina, e a metade supostamente pintada após a fatalidade. A diferença entre as duas metades é sutil, e isso só torna o retrato mais horripilante. A mãe da menina, com medo de espíritos maus, tomou várias providências para proteger a casa, como inverter as fechaduras e colocar uma proteção de metal nelas, de modo que os buracos das fechaduras permaneciam fechados durante a noite, para evitar a entrada de “visitantes” indesejados. O guia nos mostra marcas num espelho que se acredita ser mal-assombrado, além de fotos da casa com misteriosas sombras de pessoas. Com ou sem fantasmas, o fato é que se pode sentir a energia pesada e triste do lugar.
Todo o entorno da casa-grande da Myrtles Plantation é lindo. Não são propriamente jardins, mas extensos gramados, onde dezenas de árvores centenárias, cobertas de musgos, de jasmim e de outras trepadeiras, formam um lindo cenário. Dá gosto passear entre as árvores e caminhar até o pequeno lago, todo ele coberto de uma minúscula plantinha verde-clara, que forma como um tapete por sobre as águas. Por um momento a pessoa se pergunta se aquilo é um gramado, até que os pequenos habitantes do lago provocam o movimento inconfundível da água. Uma pontezinha de madeira branca leva à um caramanchão quase que dentro do lago. Ramos de árvores situadas às margens, projetam sombra sobre as águas. Tento remeter minha imaginação ao passado e vejo sinhazinhas sentadas sob o caramanchão, lendo livros, ou conversando com suas mucamas, ou casais aproveitando as horas doces e românticas do entardecer. A vida naquela época certamente não era fácil, mas tinha seus encantos.
A Rosedown Plantation é um cenário diverso. Trata-se de uma casa-grande imponente e suntuosa. Tem dois andares de pé direito altíssimo, e varandas com enormes colunas redondas e um pouco bojudas. Um enorme e trabalhado jardim se estende à frente e nas laterais da casa. A parte do jardim mais próxima à casa-grande é toda em estilo francês, com suas cercas-vivas esculpidas, formando labirintos, entremeados por canteiros de flores cuidadosamente selecionadas. Já na área do jardim mais próxima do enorme portão de entrada, ladeando a comprida e ampla alameda que leva até a casa-grande, estendem-se jardins em estilo eclético, onde as árvores e plantas se dispõem à vontade, e em profusão. Esse enorme e belo jardim foi sendo cultivado ao longo de quase seis décadas pela esposa do primeiro proprietário de Rosedown.
No interior, a casa-grande também tem decoração basicamente francesa. O mobiliário e os objetos são, em sua quase totalidade, originais. Hoje, Rosedown é propriedade do estado da Lousiana. Todas as guias que acompanham os visitantes e contam os detalhes pitorescos da história e da vida nessa casa-grande vestem roupas do século XIX. Os ambientes são, no fundo, semelhantes aos da Myrtles Plantation. Mesma sofisticação francesa dos móveis, tapetes, objetos (o mesmo abanico gigante e o mesmo apanha-moscas), ainda que um pouco mais de requinte. Além disso, em Rosedown, podemos ver os quartos de dormir, com suas camas de dorsel, um lindo berço, brinquedos da época, e algumas “modernidades” encomendadas pelo proprietário, homem que gostava de novidades. Um exemplo: banheiro com um complexo sistema que puxava água de uma cisterna, permitindo banhos de chuveiro. A história da família que viveu em Rosedown parece um tiquinho menos trágica.
Por trás da casa, uma despensa, um laguinho, um viveiro de pássaros, e mais adiante, um gigantesco e magnífico carvalho. Tal como na Myrtles Plantation, já não há vestígios das instalações onde viviam os escravos.
Na loja de souvenirs (que nunca falta em nenhum lugar de visitação em solo americano), há uma exposição sobre a Guerra Civil. Descubro, para minha grande surpresa, que cerca de 300 mulheres se disfarçaram de homem, para lutar no Exército Confederado.

Nas proximidades de Rosedown há uma outra Plantation House, chamada Oakley. Mas já se fazia tarde quando saímos de Rosedown e não foi possível visitá-la. L. não gostou das Plantation Houses. Disse que são lugares tristes. Provavelmente ele tem razão. Talvez não possa ser de outro modo, considerando-se toda a história de violência, brutalidade e injustiça que se encerra em qualquer casa-grande, nos Estados Unidos ou no Brasil.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Dia 15: Das águas tristes do Mississipi ao Egito

20/4/15

Depois de dois dias cansativos, finalmente uma boa e reparadora noite de sono. Quando acordo, D. e L. já não estão em casa. Afinal, resolvo limpar um pouco meu quarto e o banheiro. Passo a manhã nessa pequena faxina. Nada que faça diferença na casa, mas me sinto melhor de ter os ambientes onde circulo mais limpos e organizados.
D. mantém a casa fechada o tempo todo, por causa do ar condicionado. E isso me dá certa aflição. Ainda mais com o gato dentro de casa. Feliz ou infelizmente, desde que cheguei tenho o nariz meio entupido. Primeiro por causa da gripe que me pegou em Miami, agora já suspeito que estou tendo alguma reação alérgica. Todas as tardes meu nariz começa a fechar e estou usando uma medicação nasal para poder dormir. Não sei se é a sujeira da casa, ou a Primavera. Lembro que em meus últimos anos em Berkeley, tive rinite alérgica exatamente nos meses de abril e maio, quando as plantas começam a renascer e espalhar mais pólen pelo ar.
À tarde, L. se oferece para passear comigo pelo centro de Baton Rouge. L. é muito retraído, e pouco interage com D., mesmo antes do episódio do tiro na janela. No entanto, ele tem sido muito gentil comigo. Caminhamos à beira do rio Mississipi. É um rio largo, caudaloso e feio, pelo menos tal como o vejo nessa primeira vez. É um rio de águas barrentas e tristes. Não sei explicar porque me parece triste. D. me explica, mais tarde, que é um rio traiçoeiro, não parece, mas é perigoso, por causa da velocidade das águas. Nem pequenos barcos navegam nele. Tomar banho, então, nem pensar (mesmo que não fosse muito poluído). À beira do Mississipi, em Baton Rouge, há uma orla, com bancos, luminárias, esculturas e uma calçada onde se pode passear, caminhar, correr. Um muro de contenção, desce do passeio até a beira do rio, em posição diagonal. Trata-se de uma estrutura de contenção das águas, para as ocasiões em que o rio enche. Eu e L. nos sentamos bem à beira d´água e ficamos olhando as águas escuras, revoltas e tristes. Um grande barco à vapor repousa na ponta de um píer emoldurado por um portal modernoso, cheio de arcos. É um cruzeiro que vai até Menphis. A viagem de sete dias custa sete mil dólares. Me pergunto quem paga essa fortuna para subir o Mississipi. Imagino que seja pela nostalgia e pelo valor histórico do barco, que parece uma versão original daqueles que vemos nos filmes.
Um pouco depois do barco, à esquerda de onde estamos, se situa um outro barco, que é, na verdade, um cassino. À direita, bem mais longe de onde estamos, um outro barco abriga outro cassino. L. me explica que o jogo é permitido em Lousiana, desde que seja dentro d´água. Essa legislação parece fazer pouco ou nenhum sentido.
Deixamos as margens do Mississipi e vamos visitar o campus da LSU, a universidade do estado da Lousiana. O campus é lindo, como a maior parte dos campi americanos, diga-se de passagem. Prédios em tijolo aparente, de argila clara, todos próximos uns dos outros, muitas árvores imponentes, belos gramados, esquilos e pássaros em abundância. Um carvalho enorme e majestoso estende seus galhos sobre uma vasta área, tocando o chão em alguns pontos. Estudantes caminham em todas as direções, mas apesar do movimento constante de pessoas, reina um silêncio surpreendente e reconfortante no campus. Sobre a porta de entrada do prédio de Astronomia noto um alto-relevo com símbolos do zodíaco. Um grande galpão abriga a escola de artes plásticas, onde alguns alunos trabalham em suas obras, como se estivessem em seus pequenos ateliês. O pátio central da Universidade abriga uma coleção de esculturas contemporâneas. A torre com o relógio me lembra Berkeley. Um enorme estádio de football me sugere que o time da LSU pode ser uma paixão local. As cores da LSU são fortes e estão por todo o campus: roxo e amarelo.
Da LSU seguimos para o Museu de Artes e Ciências de Baton Rouge, para assistir a uma palestra de uma professora da American University of Cairo sobre múmias de animais. Antes da palestra vistamos a coleção que o Museu possui do Egito. São poucas peças, porém eles têm uma preciosidade: uma múmia de mais de dois mil anos. A exposição é interessante, apesar de pequena. Um pequeno cocktail nos surpreende à entrada da palestra. Há um queijo de cabra divino. A professora, de traços indianos e belo sotaque britânico, é muito simpática e divertida. A palestra é bem introdutória, desenhada para um público leigo como eu. Aprendo várias coisas sobre costumes do Egito Antigo, além dos princípios da mumificação, que consiste basicamente num processo de desidratação por meio de sal e bicarbonato, se entendi bem.

Chegamos em casa e D. nos espera com várias caixas de morango, que precisam ser limpos e selecionados para congelamento. Ela fará tortas e geléia para vender. Mais uma de suas estratégias de financiamento do projeto com as comunidades carentes da América Central. A casa rescende a morango e vou me deitar tarde, impregnada desse perfume.

Dia 14: Lousiana´s Earth Festival

19/4/15



Lição do dia: Como é importante a gente se esforçar para vibrar numa energia positiva.
Acordamos cedo para esperar o amigo de D. que nos ajudaria a transportar as plantas para o local do Earth Festival, bem no centro de Baton Rouge. A questão é que D. acordou de mau humor. Ainda que chateada pelo que aconteceu a S., e que continua me parecendo despropositado e injusto, não consigo deixar de ter alguma simpatia por D. e compreender seu estado de espírito. Trata-se de um evento muuuuito importante para ela. D. dedicou os dois últimos anos de sua vida aos preparativos para esse dia, no qual ela esperava vender a maior parte de suas plantas. Com esse dinheiro ela mantém seu projeto na América Central. Entendo que ela esteja ao mesmo tempo ansiosa e frustrada, porque tudo que aconteceu na véspera lhe tirou a alegria que esse dia deveria comportar.
O que D. não compreende é que a vivência desse dia depende principalmente da postura que ela assumir diante dos fatos. Lembro-me de papai e da frase que ele sempre cita do Imperador-filósofo, Marco Aurélio: as coisas exteriores só nos afetam na medida em que nos deixamos afetar por elas. A verdade é que a maior parte dos fatos da vida, independem da nossa vontade. Qualquer forma de controle sobre a própria vida é meramente ilusório, ou circunstancial. Mas podemos controlar nossas reações diante dos fatos, da realidade posta, das conjunturas. Eis o que tenho vontade de dizer a D. Permaneço calada, pois sei que ela não está aberta e não deseja escutar esse tipo de reflexão, nesse momento. Paciência. Só lamento porque ela vibra numa energia negativa, e isso me faz pensar que o Festival não trará os resultados esperados por ela. Creio piamente que essa é uma lei do Universo: a gente atrai o que emana.
B. chega com sua pick up. É o marido de uma companheira de congregação de D. Um sujeito muito simpático, bem humorado, solícito. Mais um exemplo da cordialidade sulista. Carregamos os carros e seguimos para o local do Festival. Arrumamos as plantas na área designada pela organização e ficamos à espera dos visitantes, que só começam a chegar em quantidades significativas no início da tarde. Muito tempo se passa até que as plantas de D. comecem a ser vendidas. Pelo menos o dia não será um desastre.
B. e sua esposa, M. ficam por perto, tentando ajudar. B. entende tudo de plantas, porque trabalha com isso. Sua ajuda ao longo de todo o dia foi essencial, e parece ser obra da Providência. M. é muito engraçada. Fala sem parar e parece ter três vezes mais energia que o marido. Observando-os fico pensando em como certos comportamentos e dinâmicas entre casais parecem universais. Talvez sejam universais para o Ocidente. B. e M. têm dois filhos, uma aborrescente, com todos os trejeitos próprios dessa fase da vida, e um garoto bonito e vivaz, com olhinhos atentos e inteligentes.
Pelas três da tarde o Festival começa a ficar mais animado. O número de transeuntes aumenta consideravelmente. Vejo meninas, brancas e negras, passando com enormes laços na cabeça. Para mim, parecem criaturas saídas de algum filme da primeira metade do século passado. Um costume que não saiu de moda na Lousiana, talvez. Acho isso pitoresco.
Difícil não observar a composição demográfica. Muitos negros, brancos em quantidade razoável, e poucos mulatos claros. Vários rapazes negros andam com as calças pelo meio da bunda, com a cueca quase toda de fora. Confesso que me causa estranhamento. Fico prestando atenção nos cabelos das moças negras, com penteados diversos, para todos os gostos: lisos, em coques, tranças, com topete, coloridos... Há uma clara preocupação dessas moças com o cabelo, que em alguns casos parece ser a parte mais importante da toilete, o que efetivamente as diferencia.
Faz um belo dia de sol. O calor é considerável. Me afasto da nossa barraca para dar uma volta pela feira, mas não tenho muita disposição para ficar andando sob o sol, que me queima a pele e aquece o ar a ponto de incomodar. Pelo menos a mim. Já os locais curtem o sol, sentados em cadeiras portáteis, de lona, dobráveis. Algumas dessas cadeiras têm um guarda-sol acoplado. Muitas pessoas estão acomodadas em suas cadeiras, no gramado de uma praça, no fundo da qual está montado um palco. Músicos se apresentam. Quando me aproximo, estão tocando jazz, e logo passam a um pop rock. No espaço entre o gramado e o palco, pessoas dançam ao som dessa música. Ao lado do gramado, crianças descalças brincam numa fonte. A alegria é quase palpável nesse domingo de sol e festa. Barracas de comida vendem todo tipo de fritura e junk food. Algo que ainda preciso provar é um marisco muuuuito popular na região, chamado crawfish. Parecem miniaturas de lagosta. São vendidos em pequenos montes para cada pessoa. D. me explica que crawfish é uma comida super social, própria de almoços com muita gente. Imagino que seja como feijoada ou caranguejada para nós, no Brasil. Comida típica de um domingo de reunião familiar ou entre amigos. Assim, nas barraquinhas de rua, me parece pouco convidativo. Aguardarei uma melhor oportunidade para experimentar. Como uma deliciosa raspadinha de maça verde, apropriadíssima para um dia tão quente.

O Festival termina e vendemos menos da metade das plantas que levamos. D. procura racionalizar ou disfarçar sua frustração. Carregamos a pick up e levamos as plantas de volta pra casa. Quando terminamos de descarregar a caminhonete e levar tudo para o quintal, estou tão cansada que não me animo nem a comer algo. Direto pra cama.

Dia 13: Um dia muito estranho

18/4/15

D. acordou de péssimo humor, porque descobriu, na noite passada, que a janela do quarto de L. estava quebrada. Na realidade, de algum modo, ele quebrou a janela com um tiro. Só posso imaginar que estivesse limpando a espingarda e ela disparou. Qualquer outra coisa me parece estupidez. Em todo caso, D. ficou furiosa porque L. não disse nada. E ele estava se programando para ir embora na segunda. Ao longo do dia, descubro que D. confiscou alguns bens de L. na noite passada, quando descobriu a janela quebrada, e que só irá devolvê-los quando ele tiver pago o conserto da janela. L. não é má pessoa. Apenas muito jovem. Agiu irresponsavelmente. É no que acredito, e é o que tento dizer a D., mas ela está nervosa demais para considerar qualquer argumento. L. sai para tentar consertar a janela.
S., uma moça israelense chega na hora do almoço. D. vai buscá-la na estação de ônibus. Tento dar as boas vindas a S. Vamos compartilhar o quarto. S. está viajando pelo WWOOF. A pobre chega num péssimo momento. Obviamente, não consegue entender o mau humor de D. e se sente mal com a acolhida pouco calorosa. Saio com S. para dar uma volta e comer alguma coisa. Vamos ao Chili´s. Cozinha tipicamente americana, mas bem decente. Conversamos muito e nos entendemos super bem. S. tem 39 anos e está terminando seu doutorado em Química. A seis meses de conclui-lo resolveu fazer algo semelhante ao que estou fazendo, com a diferença de que seu período de viagem é mais curto, e ela resolveu viajar apenas pelos Estados Unidos. Além disso, ela está trabalhando apenas em fazendas. Ela ainda não sabe o que fará da vida quando voltar a Israel e concluir seu doutorado. Sua família é de origem venezuelana, e seus dois irmãos moram na Venezuela. Se mudaram pouco antes de Chávez ascender à presidência. Ela me confirma que as coisas estão indo muitíssimo mal por lá.
Quando voltamos para casa, D. nos orienta a replantarmos algumas das flores e plantas ornamentais que serão levadas para o Earth Festival. D. continua de péssimo humor e S. fica cada vez mais chateada. Para completar, ela tem alergia a gato, e a casa tem um bichano. S. está decidida a ir embora no dia seguinte. Vai tentar achar algum trabalho em Nova Orleans. Falta pouco para ela voltar pra Israel. Ela já está no fim da jornada. É muito bom o sentimento de conversar com alguém que entende exatamente o que você está fazendo. Só espero que ao final da minha jornada eu tenha um pouco mais de clareza sobre o rumo a ser dado à minha vida.
A noite chega e, após falar com papai, mamãe, Quel e Nica pelo Skype (o que me deixa muuuuito feliz), eu vou cozinhar com D. Preparamos Shrimp Étoufée, um prato típico da cozinha Criole. Quando o jantar está quase pronto, algo surpreendente acontece. D. se irrita profundamente porque S. deixou a janela e a porta do quarto abertas, e D. tem a casa permanentemente climatizada, com o ar condicionado programado e controlado por termostato. D. dá um piti. S. fica chateadíssima, com toda razão, e sobe para o quarto. Nos sentamos para jantar, sem S. O que deveria ser um momento muito especial, acaba se tornando um desastre. Comemos em silêncio e constrangidos. D. quer que S. vá embora imediatamente. Tento argumentar com D. que já é noite, mas ela está transtornada. Na realidade, D. está muito chateada com L., que a decepcionou após conviver dois meses com ela, e está despejando parte de sua raiva e frustração em S.
Após tão sorumbático jantar, eu e L. acompanhamos S. até a estação de ônibus, e esperamos seu embarque, depois da meia-noite. Enquanto esperamos o ônibus, conversamos sobre nossas experiências pessoais e nossas viagens. S. tenta me convencer a deixar a casa de D. Me diz que aquela é sua quinta experiência, e que eu deveria procurar um ambiente mais acolhedor, e pessoas menos complicadas.
Tenho de concordar com ela que D. é mesmo uma pessoa complicada. E que o ambiente da casa tem um peso. D. é uma mulher solitária e judiada pela vida. Ninguém que perde um filho tão tragicamente pode ser leve. S. não se conforma com minha determinação em ficar. Ela está voltando para a fazenda de onde veio, e me convida para me juntar a ela. Diz que a proprietária é uma pessoa simplesmente adorável. A instabilidade de humor de D. obviamente me assusta, e a o convite de S. tem seu lado tentador. No entanto, meu coração me diz que devo não apenas honrar minha palavra e ficar as duas semanas prometidas, mas que preciso ter compaixão e solidariedade. Não posso esperar que tudo seja maravilhoso nessa jornada. As dificuldades fazem parte do aprendizado. Talvez sejam, inclusive, a parte mais importante. Não vim à procura de flores, mas de sabedoria e crescimento.
Antes que S. embarque, trocamos telefones e combinamos de nos encontrar no próximo final de semana, em Nova Orleans. Sinto que fiz uma amizade.
Volto para casa triste com tudo que aconteceu a S. Foi tudo muito absurdo e injusto com ela.

Desse dia tão estranho e tumultuado, ainda não sei bem que lições importantes vou extrair. De imediato, penso em duas coisas práticas. Falta de planejamento custa dinheiro. O pen drive de 64 G que comprei quando saí com S. não comporta meus arquivos. Não teria gasto esse dinheiro se tivesse me dado ao trabalho de verificar, precisamente, de quanto espaço eu necessitava. A segunda lição é ainda mais importante: incorporar a ideia de que preciso gastar o mínimo possível ao longo dessa jornada. Esse é o espírito de L. e de S. Ambos evitam gastar qualquer dólar, a menos que seja realmente necessário. Compreendo que o que me soaria como mesquinharia em outras circunstâncias, para eles é uma estratégia de sobrevivência, pois a estrada é longa, e não se sabe o que vai acontecer.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Dia 12: Novas experiências

17/4/15

Durmo muito e acordo surpreendentemente tarde.
A casa onde estou é efetivamente uma verdadeira bagunça. Lembro daqueles programas de TV que mamãe assiste, sobre casas super bagunçadas, que são magicamente transformadas pelas equipes de produção dos programas. Meu primeiro e forte impulso é me oferecer para limpar e arrumar tudo. Mas, me controlo. Sei que tenho de desapegar também da minha mania de ordem e limpeza. Será um desafio me sentir bem nesse ambiente, do jeito que ele é. Ao menos consigo controlar meu impulso inicial.
EU, L. e D. começamos a transportar as plantas que foram cultivadas nos últimos dois anos para a frente da casa. É sexta-feira, e no domingo acontecerá o Earth Festival. Trata-se de um importante acontecimento para D. Meu trabalho hoje consistirá basicamente na limpeza e transporte dos potes e sacos de plantas para a frente da casa.
D. é uma senhora de sessenta e poucos anos. Gordinha, baixinha e muito falante. Sem que eu pergunte nada, me conta que seu filho se matou. Toda essa história me sensibiliza profundamente. Seu marido, C., nos deixa. Volta para o seu refúgio. Me dou conta de como D. é uma pessoa solitária. Sua relação com o marido parece distante e fria. Talvez por isso ela procure ter sempre gente de fora na casa. Há dois anos ela aderiu a uma plataforma chamada WOOFERS, e também ao Workaway. Com esses voluntários, ela leva à frente o projeto de cultivar plantas para vender e levantar fundos, que servem para financiar uma cooperativa de famílias pobres num país centroamericano. Também faz tortas para vender, com a mesma finalidade.
Após uma tarde de trabalho, L. me ensina a atirar. Ele tem 28 anos, é magro e baixo. Acabou de deixar as Forças Armadas, nas quais serviu por três anos. Atiramos com uma espingarda de chumbo, apenas por diversão. Sempre tive curiosidade e gosto da experiência, apesar da minha péssima mira. Só consigo acertar o alvo de muito perto. L. é um bom professor. Paciente. Me diz que a mira é uma questão de prática, além de concentração e respiração.
À noite, após o jantar, eu e L. saímos para passear. Ele me propõe irmos a Nova Orleans. Apesar da viagem de hora e meia, eu topo. Caminhamos à toa pelo French Quarter. A famosa Bourbon St. está apinhada de gente. Evoca um certo ambiente de carnaval, mas sem a música na rua. Muitos jovens parecem estar ali apenas para se embreagar. Andam em grupos, com frequência. A rua é repleta de bares, um bar ao lado do outro, cada um com sua música particular. Por uma feliz coincidência, entramos num pátio onde um quarteto de músicos toca jazz. Assim que chegamos ao pátio e nos sentamos para tomar um drink, o vocal começa a cantar Unforgetable. Lindo! Fico emocionada. Me lembro especialmente de mamãe. Após algumas músicas, voltamos a caminhar pela Bourbon St. e adjacências. Brincamos de alternar coordenadas a cada esquina, de modo a nos desorientarmos um pouco, andando sem muito destino. A brincadeira proposta por L. é interessante.
Apesar da pouca iluminação das ruas (exceção da Bourbon St.), aprecio a arquitetura histórica. Encantadora! Casas de dois andares, com os dois pés direitos altos, se sucedem. Têm belas varandas, adornadas com estruturas de metal trabalhado. Lindos abalcoados, onde os visitantes ficam bebendo. A temperatura é bastante agradável.
Ao longo da Bourbon St. também há várias casas de striptease. Entramos em uma. Eis algo que sempre me despertou curiosidade. Não ficamos nessa primeira, que parece meio decadente. Tentamos uma segunda casa de strip-tease. Essa, sim, é interessante. Um lugar arrumado, com vários casais sentados nas mesinhas ao redor do placo central, onde uma bela negra faz movimentos super sensuais. A mulher é o que se chamaria no Brasil de mulherão. Grande, carnuda, voluptuosa. Veste uma calcinha mínima e sapatos plataforma brilhosos, de salto enorme. Dança e brinca com casais. Sua habilidade no Pole Dance é impressionante. Clientes jogam notas de dólares no palco, e alguns engancham as notas na calcinha da dançarina, homens e mulheres. Garçonetes desfilam de calcinha e sutiã. Ao final da apresentação, a dançarina recolhe seus dólares num balde, enquanto outra dançarina entra e cena e começa seu número.
Saímos dali e continuamos caminhando pelo French Quartes. Numa casa, rapazes com toda pinta de homossexuais fazem uma festa particular. É bem tarde e resolvemos voltar para casa. No caminho de volta ao carro, passamos por uma locação de filme. Vários caminhões, cheios de apetrechos estão estacionados nas proximidades de um antigo e belo sobrado. Já havia visto esses caminhões na estação central. O senhor que me ajudou com a bagagem na minha chegada de trem, me disse que estão rodando um filme na cidade. Aliás, foi mais um sulista extremamente amável comigo.
A viagem de volta para Baton Rouge me parece interminável, porque estou muito cansada. É difícil me manter acordada, e dou graças a Deus quando finalmente chegamos e eu me encontro com minha cama.

Dia 11: Chegando à Lousiana

16/4/15

Boa e necessária noite de sono. O Nola Jazz House é um albergue super charmoso, localizado numa vizinhança simpática, na parte superior da Canal St. Uma casa antiga, mas reformada, em madeira branca, com varanda, de arquitetura típica da cidade. Ambiente agradável e descolado, com belos grafites, tendo o Jazz como motivo. Oferece café da manhã, com massa para panquecas ou waffles, além de café ou chá. O refeitório é coletivo, e, obviamente, movimentado. Converso rápida e superficialmente com uma jovem americana, um rapaz francês e uma moça alemã.
Quando volto para o meu quarto, após o café, uma surpresa desagradável. Um aviso no meu computador, supostamente da Microsoft, avisando que eu posso ter sido vítimo de roubo de identidade. O aviso pede que eu entre em contato com um número de telefone. Faço isso, e uma voz de homem indiano começa a me explicar os perigos a que estou exposta. Meu computador teria sido infectado por um Trojan, vírus perigoso, que pode ter infectado outros aparelhos que mantenho conectados à internet. O homem fala com tranquilidade e segurança, e eu, estupidamente, lhe dou crédito. Lhe franqueio acesso remoto ao meu computador. Ele vai me mostrando as vulnerabilidades da minha máquina. Ao final de uma ,onga demonstração, me sugere uma empresa que resolve esses problemas on-line. Custo: 200 dólares. Pergunto sobre algum endereço físico próximo, credenciado ou recomendado pela Microsoft. Ele tenta me convencer que eu teria de pagar 500 dólares num serviço off-line. Quer transferir minha ligação para a empresa on-line. Eu insisto num serviço off-line. Após alguns minutos, ele me dá um endereço em Ohio. Agradeço e desligo o telefone. Localizo uma assistência técnica próxima ao albergue e caminho uns quatro quarteirões até lá. Aproveito para conhecer a vizinhança. Uma graça, por sinal, com suas casinhas de madeira avarandadas. Na assistência técnica, o rapaz que me atende é de uma solicitude surpreendente. Ele precisaria ficar com o computador por uns dois dias, para fazer uma verificação completa e remover qualquer tipo de ameaça por ventura existente. Explico que não posso deixar o computador porque tenho que seguir para Baton Rouge. Ele, então, baixa um programa, faz uma verificação básica, me explica que tentaram me aplicar um golpe e que talvez meu computador não tenha nada. Localiza uma assistência técnica em Baton Rouge e liga para lá. Sim, eles poderiam cuidar do problema pra mim. Passo cerca de uma hora e meia nessa loja. Ao final, ele não me cobra nada. Fico impressionada com sua amabilidade e generosidade, e ele me diz que faz parte da hospitalidade sulista, e que eles realmente levam isso a sério.
Saio da loja mais tranquila e passo numa farmácia. No caixa, pergunto por alguma lavanderia perto. Preciso lavar roupa. A caixa não sabe informar, mas duas senhoras que estão na fila, me indicam um endereço próximo. Uma delas pega um papel e desenha pra mim. Caminho até a lavanderia. A senhora que toma conta da lavanderia também é um amor comigo. Me dá todas as orientações, opera as máquinas pra mim, troca meu dinheiro. Ficamos conversando, e ela me conta que seu filho mudou para Nova Orleans após o Kathrina, para trabalhar na reconstrução. Me explica que muitos centroamericanos chegaram à cidade nesse período, para trabalhar na construção civil. Já se passaram 10 anos desde essa tempestade que devastou Nova Orleans! Incrível como o tempo passa sem que a gente se dê conta direito.
Resolvidas essas questões práticas, regresso à pousada, pego minha bagagem e chamo um Uber para me levar à estação central, de onde partem trens e ônibus. A estação de Nova Orleans é bem mais bonita que a de Nova Iorque, além de mais organizada. Há belos painéis por toda parte, retratando a história de Lousiana. Poucas pessoas ocupam os muitos bancos do hall central. O faxineiro da estação se aproxima e começa a conversar comigo. Veio de Honduras e mora há mais de 20 anos na cidade. Gentilmente me ajuda a carregar minha mala até o ônibus, quando chamam pelo embarque pelo sistema de auto-falantes da estação.
O ônibus me parece bastante velho. Sento ao lado de um senhor negro. Também ele super gentil. Conversamos ao longo da viagem. Uma tempestade nos pega pelo caminho, mas trafegamos por uma bela highway, portanto, fazemos a viagem sem maiores sobressaltos. Ao chegarmos na estação de Baton Rouge, o senhor desce comigo, me empresta seu telefone para que eu possa chamar D. e avisar que cheguei. O telefone não atende. Um ligeiro sobressalto me toma. Já é noite e a estação tem pouco movimento. Pergunto por um táxi a um funcionário da estação. Um taxista se materializa na mina frente. Providência divina. Me despeço do me companheiro de viagem, profundamente impressionada com a amabilidade dos sulistas. É um trato efetivamente distinto de qualquer outro lugar dos Estados Unidos onde eu tenha estado. Essa amabilidade é muito reconfortante, sem dúvida.
O táxi me leva ao subúrbio de Baton Rouge. Uma viagem de uns 20 minutos, relativamente cara. D. e seu marido, C., me esperam para o jantar. C., um legítimo cajun guy, preparou um lombo de porco com molho de cogumelos, absolutamente delicioso. Gosto do jeito de Charlie. É um homem da terra, telúrico mesmo, eu poderia apostar. Vive em outra casa que eles têm, no interior, nos pântanos. Seus ancestrais vieram do Canadá e se estabeleceram em Lousiana há quase trezentos anos.
Descubro que o casal perdeu um filho de 21 anos. À primeira vista D. é uma figura muito interessante. Recebe estrangeiros em casa desde seus 26 anos, já foi responsável por um programa de intercâmbio de jovens. Me conta que sempre tem pessoas de fora em casa. Conheço L,, jovem de origem vietnamita, bastante reservado, na realidade, um tanto estranho. D. me mostra meu quarto. À parte a bagunça da casa, creio que ficarei bem instalada. Após ajudar com a louça do jantar, me recolho ainda bastante cansada da viagem de trem.

Dicas de viagem:
Para quem decidir viajar de trem, convém levar apoio para a cabeça e cobertor. Nada disso é oferecido pela companhia (Amtrak). Não cheguei a sentir frio na viagem, porque tinha meu casado à mão e uma pashmina, mas a temperatura dentro do trem era fria pra mim.

É bom sempre pedir a estimativa de preço quando se chamar um Uber. Não fiz isso em Nova Orleans e acabei pagando bem mais caro na corrida para a estação do que havia pago pelo táxi comum que fez o mesmo trajeto entre o albergue e a estação de trem/ônibus.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Dia 10: De Nova Iorque a Nova Orleans, no Crescents

15/4/15

Viajando de trem desde ontem à tarde.
Sentada à mesinha onde escrevo, observo a paisagem composta basicamente de árvores esguias, com folhagem esparsa. O verde claro de suas folhas contrasta com o escuro de pinheiros que aparecem de vez em quando. Algumas casas solitárias em meios a vastos gramados, um pequeno lago, um riacho, uma vila à beira da estrada... inevitável comparar com as vilas de beira de estrada do nosso Nordeste, com suas casinhas simples de alvenaria ou de taipa, caiadas, baixinhas e humildes; casas meio que perdidas no meio da paisagem, sugerindo pessoas esquecidas, também elas quase que perdidas nesse mundo todo feito contra elas, para citar Clarice. A vila de beira de estrada que vejo pela janela do trem que me leva a Nova Orleans, com suas casas e edifícios de tijolo aparente, ou mesmo de madeira pintada, sugere uma imagem oposta: ordenamento, afirmação da vontade humana, domínio do espaço, amparo.
O céu cinzento, desde ontem, destaca o verde das árvores, que não precisa competir com o azul de dias ensolarados. Curiosamente, o nublado do dia parece combinar com o doce balanço do trem. Há uma certa melancolia nessa combinação. Não uma melancolia que entristece, mas uma que favorece a introspecção. Estou curtindo bastante a viagem de trem, que me foi inspirada por Gilberto Freyre. Ainda não chegamos ao Deep South, e anseio por ver essa paisagem social que tanto o impressionou. Verdade que dormir numa cadeira de trem, por espaçosa que seja, não é o melhor dos sonos, mas ainda assim me sinto repousada. Acabo de tomar café com uma senhora de Nova Iorque, no restaurante do trem. Chama-se Sarah. Dado que a viagem de trem é relativamente mais cara que a de avião, lhe pergunto porque fez a opção de viajar por terra. Afinal, trata-se de um longo percurso. Quase trinta horas entre Nova Iorque e Nova Orleans. Me responde que não conseguiu vôo direto e sente muito a pressão nos ouvidos, na descida do avião. Viaja de trem para evitar o desconforto que seria duplicado por uma conexão.
O trem é antigo e não tem maiores confortos. Há uma área com mesinhas onde se pode sentar para comer, escrever ou simplesmente mudar de ambiente. Em longos intervalos há pausas extensas para que os passageiros possam descer e caminhar um pouco. Os funcionários são bastante simpáticos. A grande maioria é de negros. É curioso como o serviço público, nos Estados Unidos, tem presença massiva de negros. Eles estão nos correios, no transporte público, na segurança.
O processo de embarque na estação de trem me pareceu bastante curioso. Aliás, há algumas coisas que impressionam nos Estados Unidos pelo insuspeitado grau de desorganização e aparente precariedade. Assim se passa com o metrô de Nova Iorque. Idem com o sistema de trens (Amtrak). A pessoa chega à estação e não encontra nenhuma indicação clara de como a coisa funciona. Você, então, se dirige ao guichê de informações e descobre que a primeira providência é despachar a bagagem num guichê ao final do corredor. Tomada essa providência, a pessoa volta ao guichê de informações e descobre que precisa ficar observando um velho painel que pende do teto e se encontra situado bem no meio da estação. Ali estão dispostos os nomes e horários dos trens. Passageiros se aglomeram em volta do painel, esperando que apareça a indicação do portão de embarque do seu trem, que pode estar a Leste ou a Oeste. As indicações aparecem cerca de 15 ou 10 min antes da partida do trem. Isso significa que quando o número do portão aparece no painel, provoca uma corrida desesperada de passageiros, que se precipitam na direção indicada. Percebe-se uma curiosa aflição no ar. Certamente um receio maio “atávico” de perder o trem, já que se dispõe efetivamente de pouco tempo para embarcar.
Confesso que o ambiente da estação, o processo de embarque e o próprio trem me provocaram essa estranha sensação de precariedade, muito pouco condizente com os Estados Unidos do século XXI. Um curioso anacronismo, mas com sabor de pitoresco para mim, que adoro esses anacronismos sociais. Afinal, uma viagem de trem tem tudo a ver com isso. Aprecio a temporalidade do trem, no seu movimento lento e compassado. Até o balanço do trem me agrada. À noite, me deu a sensação de um movimento de ninar. Se não fosse pela minha bursite, que me obrigou a ficar mudando de lado a noite toda, acho que teria dormido horas a fio, sem despertar. Os assentos são largos, reclinam bem e o apoio para as pernas sobe bastante. É possível encontrar uma posição relativamente confortável para dormir.
Aviões têm tudo a ver com o frenesi e o ritmo acelerado da vida contemporânea. São um meio de transporte para quem tem pressa de chegar. Trens implicam uma outra temporalidade, um outro ritmo. Exigem paciência e disposição para entregar-se à viagem e desfrutar o percurso. Como o Universo é perfeito – quando há confiança e entrega --, sinto que essa viagem de trem está acontecendo no momento perfeito. É o prelúdio de uma nova etapa dessa minha travessia, e um importante estímulo para a desaceleração que pretendo alcançar na minha vida.
A medida em que nos aproximamos do Sul, o céu vai abrindo e pedaços de azul aparecem em meio às nuvens. Infelizmente, temos um acidente com o trem. Uma pessoa cruzou a linha férrea e foi morta. Nos anunciam que ficaremos parados por três ou quatro horas. Estamos no Mississipi e o acidente aconteceu junto a uma área pantanosa. Da janela do trem observo as árvores alagadas e avisto uma pequena tartaruga nadando.
Todos no trem estão consternados, obviamente. Rezo pela pessoa acidentada, e me pergunto o que leva alguém a atravessar uma via férrea, com um trem enorme e pesado vindo em sua direção...
Ficamos umas duas horas parados na linha férrea e chegamos a Nova Orleans quase às dez da noite. Na estação, o senhor que me entrega minha mala é mais um fã do Brasil. Assim como o motorista de táxi, etíope, que me leva ao albergue, um ambiente super descolado, numa das casinhas de arquitetura típica da cidade. Vejo pouca coisa no caminho, mas meu coração me diz que vou adorar a Lousianna.


Dicas de viagem:
As passagens de trem podem ser compradas pela internet, no site da Amtrak. Mas o trem é recomendável apenas para quem quer fazer uma viagem de trem, ou tem problemas com avião. Na realidade, acaba sendo mais caro, especialmente se a pessoa quiser uma cabine com cama. Achei a viagem entre Nova Iorque e Washignton rápida, e imagino que o trem pode ser uma opção economicamente interessante para essas viagens mais curtas, em que a ponte área muito concorrida pode ser bem cara.
Quem tiver bagagem para despachar deve chegar 45 minutos antes. Considerando-se o trânsito de Manhattan, convém sair “de casa” umas duas horas antes. Se a pessoa tiver uma bagagem pequena, vale a pena pegar o metrô. A estação 34St. é exatamente a mesma da Amtrak.


O Moma e a 5ª Avenida






Para quem tem qualquer grau de apreço pela Arte Moderna, o Moma é um endereço obrigatório. Fui com a intenção de passar duas horas, e acabei passando quase três, apenas no 5º andar, onde fica a coleção de obras do final do XIX até os anos 40 do século XX. É bem verdade que esse é o meu período favorito no que se refere às artes plásticas, e a depender dos interesses e preferências do visitante, a visita pode ser mais ou menos curta. No total, passei quatro horas no museu, incluindo o 4º andar, onde se encontra a coleção pós-Segunda Guerra e o jardim interno, onde há algumas poucas esculturas – dentre as quais uma cabra de Picasso me pareceu a peça mais interessante.
O 5º andar do Moma tem vários obras importantes – e belas – dos grandes nomes da pintura Moderna, como Picasso, Matisse, Van Gogh, Klint... é uma visita emocionante, desde que seja feita sem pressa. Aliás, aproveitei essa visita ao Moma para exercitar uma das posturas que pretendo amadurecer e incorporar: estabelecer prioridades e ordenar o tempo de acordo com elas. Não apenas quando se está viajando e visitando uma cidade cheia de coisas interessantes para fazer, mas principalmente no cotidiano atribulado, quantas vezes me deixo levar pela ilusão de que darei conta de fazer uma lista enorme de coisas num único dia. Incapaz de olhar para minha lista de tarefas, ou de interesses, e escolher aquilo que é efetivamente importante para mim, vou tentando fazer tudo. O resultado é, invariavelmente: frustração ou esgotamento (madrugadas insones, trabalhando, quando deveria estar dormindo).
Sei disso, mas como é difícil mudar um hábito, uma postura! Na véspera da minha visita ao Moma, havia tomado mais uma lição da vida (que é implacável). Achando que dava pra visitar o Harlem, atravessar o Central Park e chegar às 15h na Broadway, meti os pés pelas mãos, e por muito pouco não perco minha peça, cujo ingresso custou mais de 300 reais (são muito caros os ingressos para esses espetáculos). Na verdade, perdi os primeiros 10 minutos de peça, mas achei que seria muito pior. Para meu alívio, descobri que se pode entrar nos teatros da Broadway mesmo depois do espetáculo começado, ainda que você fique de pé, no fundo, esperando uma ocasião propícia para ser conduzido ao seu assento.
O fato é que o episódio me serviu como mais um puxão de orelha. Preciso lutar, com todas as forças, contra a tentação de acreditar que posso fazer tudo e mais alguma coisa num único dia. Foi assim que, ao chegar no Moma, escolhi começar pelo que mais me interessa nas artes plásticas, e fui diretamente ao 5º andar. Meu plano era seguir dali para o Guggenheim. Com meia hora de Moma, fiz uma reflexão e decidi esquecer o Guggenheim. Melhor usufruir intensamente daquelas obras incríveis, que estavam ali, à minha disposição, do que não aproveitar bem, nem a coleção do Moma, nem a do Guggenheim. Voltarei a Nova Iorque uma outra vez, e então visitarei o Guggenheim. E se isso não for possível, paciência. Tomada essa sensata decisão, aproveitei cada minuto passado no Moma. Também decidi concentrar-me no 5º andar, já que não sou grande apreciadora da Arte Contemporânea. Acabei passando rapidamente pela coleção do 4º andar. Mas o importante é que pude fruir, com calma, atenção e emoção, cada um dos incríveis quadros dos meus pintores preferidos.


O Moma fica pertinho da 5ª Av. Como tinha tempo antes da ópera, fui caminhar um pouco por esse elegante trecho de Manhattan. A 5ª. Av. é o endereço imperdível de quem vai a Nova Iorque interessado em compras. Não é  o meu caso. Pra mim, o que vale a pena na 5ª Av. é a catedral de Saint Patrick, realmente bela e imponente, além das várias outras igrejas e templos que se espalham ao longo dessa via. Gosto da sensação de estranhamento que a presença desses lugares sagrados, entre prédios enormes e lojas chiquérrimas, me causa. Há várias igrejas ou templos ao longo da 5ª Av., justo nos trechos mais movimentados, onde o vai-e-vem de turistas e de nova-iorquinos, com seus elegantes sobretudos, é intenso. Já na lateral do Central Park, numa área mais residencial e mais tranquila, há uma bela sinagoga, em estilo românico. Acho que se chama templo de El-Manuel. Na fachada, uma estrela de Davi bem no meio de uma grande rosácea. Mas ao contrário do que se passa com a catedral de Saint Patrick, a Sinagoga parece perfeitamente harmônica em meio aos edifícios elegantes e claros do East Central Park.

Dicas de viagem:
Mesmo para quem não aprecia tanto a Arte Moderna, registro que vale a visita ao Moma para ao menos conhecer quadros emblemáticos, como as Démoiselles d´Avignon, de Picasso, Dance, de Matisse, ou Noite Estrelada, de Van Gogh. O museu disponibiliza um aparelho de áudio gratuito, com comentários sobre os principais quadros da coleção. Nas plaquinhas ao lado dos quadros comentados há um símbolo indicando a existência do comentário em áudio e o número do arquivo. É só digitar esse número e escutar a gravação. Aprendi muitas coisas interessantes com esse dispositivo.

The Jane Hotel


Como é importante estarmos sempre prontos a superar as primeiras impressões.
Na noite em que cheguei a esse hotel, pensei que tinha entrado numa roubada. O quarto minúsculo me deu a sensação de que estava pagando caro por algo que não valia. No entanto, a cada dia me senti melhor no hotel, até que fui embora com pena e uma certa vontade de voltar. Ou seja, acabei adorando o The Jane. Trata-se de um prédio antigo, inaugurado em 1908, como um hotel para homens do mar, marinheiros e oficiais. Por isso os quartos são efetivamente pequenos. Lembram uma cabine de navio. Tudo no quarto é compacto e ele não comporta uma mala inteiramente aberta. O banheiro é coletivo, e fica no final do corredor (tem uma ducha incrível! O banho é delicioso). Certamente, não é um hotel para quem deseja espaço e privacidade. Apesar do que, há quartos maiores, para casais (provavelmente os que pertenciam aos oficiais).
O fato é que para viajantes solitários e com espírito de despojamento, o The Jane é perfeito. Ainda mais se esse viajante tiver uma sensibilidade nostálgica como a minha. Tudo no hotel remete ao tempo de sua construção. Do hall, com colunas espelhadas e animais empalhados nas paredes, aos corredores estreitos, acarpetados e iluminados a meia-luz por luminárias em forma de pequenos abajures. Um tom salmão predomina por toda parte e há vários toques orientais, mas no estilo decorativo que se usava no início do século XX, quando o Oriente se tornou moda e invadiu muitos dos mais elegantes salões da Europa e dos Estados Unidos. Os banheiros também preservam ares do início do século passado, mas com outro estilo. São sóbrios e elegantes, com suas pastilhas em branco e preto.
Gostei do cheiro do hotel, que é muito organizado e limpo. Por duas vezes cruzei com uma senhorinha negra, bem idosa e encurvada, limpando o banheiro, com imenso capricho e paciência. Não esquecerei do perfume sempre presente no banheiro e nos quartos, florido, mas suave, agradável e em total harmonia com o ambiente, como se também ele pertencesse a um tempo passado. O único elemento a destoar da forte impressão de ordem e limpeza é o tapete do elevador, demasiado esgarçado e cheio de manchas.
O The Jane guarda uma curiosidade histórica. Abrigou os sobreviventes do Titanic, enquanto se concluíam as investigações preliminares. E uma cerimônia fúnebre foi realizada no seu salão alguns dias após o naufrágio.
Na entrada do hotel, à esquerda, há um restaurante que parece bastante concorrido. Chama-se Gitane. Tomei café da manhã nesse restaurante, onde as referências ao Oriente são ainda mais marcadas na decoração. Nota-se que é um restaurante frequentado pelos locais. Pelas noites, no final de semana, realizam-se festas no salão do The Jane. Sábado à noite, voltando da ópera, bem tarde, tomei um susto com a quantidade de gente na porta, fazendo fila para entrar na festa. Achei bem curioso.

Um dia, resolvi descer de escada, em lugar de tomar o elevador, e acabei saindo dentro do salão de festas. Um enorme salão, decorado com alguma suntuosidade e inteiramente com motivos orientais. Me senti num romance qualquer do século XIX, ou princípios do XX. Fiquei surpresa e intrigada. Procurei me informar. Parece que as festas aí realizadas são privadas. Não seria mal observar uma delas. Quem sabe numa próxima vez? Quando voltar a Nova Iorque gostaria muito de ficar novamente no The Jane.

O burburinho de Times Square


Times Square é, talvez, o lugar mais simbólico da Big Apple. Já registrei como é impressionante a profusão de luzes coloridas e o fluxo intenso e meio frenético de pessoas. Parece que o mundo inteiro está ali. A cada dois passos alguém empunha uma máquina fotográfica ou faz um selfie com um celular. Pelas calçadas da 7 Av. personagens de filmes disputam a atenção dos turistas. Querem dólares em troca de uma foto. Olaf, Hannah, Elsa, os Minions, um decadente e roto Capitão América, e um bizarro cowboy com suas cowgirls. Trata-se de um belo rapaz, com compridos cabelos castanhos-claros, vestido de cueca, botas, chapéu, com a bandeira americana pintada no corpo, empunhando uma guitarra, e de algumas moças, de calcinhas vermelhas rendadas, minúsculas, de botas e o resto do corpo coberto por uma pintura da bandeira americana. Não sei se acho isso curioso ou simplesmente patético. Numa das vezes em que cruzo Times Square, olho para o lado e vejo uma moça relativamente feia tirando uma foto com o belo e ridículo cowboy. E viva a diversidade do mundo.
Entro numa loja do Walgreens e testemunho uma triste cena. Um gerente indiano repreende um senhor negro, idoso e encurvado, que se apoia numa bengala e parece suster-se de pé com dificuldade. O gerente lhe fala com calma e educação, mas com firmeza. Lhe diz que há câmeras por toda parte e que ele não deveria fazer aquilo. Pede que o senhor devolva o que estava tentando furtar, o que ele acaba por fazer. Porém, tão logo devolve a comida, o senhor negro começa a esbravejar e ofender o gerente indiano, que o havia tratado com um respeito e uma delicadeza quase incondizentes com a situação. O senhor grita que ele deveria ir embora da América e que ele sabe muito bem o que é uma guerra, e sai da loja esbravejando, enquanto o indiano se afasta, de modo a evitar um atrito maior.
A Times Square concentra todos os teatros onde se pode ver os espetáculos da Broadway e muitos off-Broadway. Assisto a uma peça com Hellen Mirren: The Audience. O texto não tem nada de muito especial. Os vários primeiros-ministros do reinado de Elizabeth II se sucedem nas audiências com a rainha, que tratam de assuntos domésticos a episódios dramáticos da história do mundo nos séculos XX e XXI. Nada de muito especial, a não ser pela interpretação de Hellen Mirren, que é mesmo uma excelente atriz. Seus diálogos -- e a relação -- mais interessante se dão com um primeiro-ministro que eu desconhecia, Wilson (excelente ator também!).
O que eu adorei assistir foi The Book of Mormon. Nem sou muito afeita a musicais, mas adorei o texto inteligente, irônico (sarcástico em vários momentos) e engraçado. A montagem e os atores são excelentes. Realmente, um espetáculo que vale a pena assistir. Boa indicação de Fabinho.
Como Times Square é diverso e pode ser surpreendente, também foi lá que assisti a uma linda missa, no domingo. Tinha passado o dia todo procurando por uma igreja. Saí da peça e fui a um Starbucks para usar o sinal da internet e tentar localizar uma missa de final de tarde em NY. Sem obter sucesso na minha busca, pois aparentemente não havia mais missa depois das 17h, resolvi arriscar a compra de um ingresso para The Book of Mormon. Quando estava chegando ao teatro, vi uma igreja do outro lado da rua e havia pessoas entrando. Corri para lá e uma missa estava começando. Eram 18:10h. A igreja de São Malaquias tem estilo gótico, mas é pequena, portanto, sóbria e aconchegante. A missa foi linda, toda cantada, e o padre era jovem e carismático. Fiquei profundamente comovida, e agradecida por vivenciar aquele momento. Mais uma lição sobre a importância da entrega ao Deus que nos ama. Eu procurando a missa, e a missa me achou. Aliás, o sermão foi exatamente sobre a Misericórdia divina, que não é outra coisa senão um Amor infinito por nós, e a despeito de nossas limitações.

Dicas de viagem:

Em quase todas as esquinas da área central de Nova Iorque, o que inclui Times Square, há uma carrocinha de halal food. É comida árabe, mas não sei bem de que país, ou países. O fato é que os homens que estão à frente das carrocinhas (nunca há mulheres) falam árabe e têm biotipo árabe. O cheiro que essa comida exala é marcante e muito perfumado, irresistível, eu diria. Comi um sanduíche de falafel numa esquina da 6ª Av. que estava simplesmente divino. Os falafels foram fritos na hora e estavam muito crocantes, além de extremamente saborosos. O melhor falafel que já comi na vida. O vendedor me explicou que halal significa sagrado. Acabou virando um nome comum para esse tipo de comida árabe que se vende nas esquinas de nova Iorque.

Um domingo no Harlem


Foi pura coincidência, mas acabei descobrindo que domingo é um ótimo dia para se visitar o Harlem. Não creio errar ao pressupor que só aos domingos se pode ver as senhorinhas super arrumadas para os cultos, com seus casacos, sapatos alinhados e, principalmente, seus chapéus de cores e formas as mais inusitadas. Assisti a uma cena graciosa. Uma avozinha saindo de sua igreja toda na beca, com chapéu e sapatos vermelhos. Um carro encostou no meio-fio para apanhá-la. Ela se aproximou da mala, tirou um par de tênis de dentro e se pôs a descalçar seus elegantes sapatos vermelhos, para pôr os tênis. Como se tratava de uma pessoa idosa, e a operação requeria alguma flexibilidade e esforço físico, foi custosa e demorada.
Eu queria ter ido assistir a algum culto gospel, mas cheguei tarde. Em geral, eles vão até as 11 da manhã. Descobrir que assistir aos cultos gospel virou atração turística. Por isso, os guias recomendam que se vá logo cedo, por volta das 8 da manhã, quando os turistas ainda não saíram de suas camas.
Duas coisas me impressionaram no Harlem. A primeira é a tonalidade de cores das casas do bairro. É tudo ocre no Harlem! De um ocre sombrio e triste. É quase que sem respiro essa paisagem urbana, onde é difícil ver alguma manchinha branca, que se dirá mais colorida e alegre. Essa é mais uma imagem de Nova Iorque que me parece incongruente. Culturas e sociedades negras sempre me sugerem cor e alegria. É simplesmente estranho que essa vizinhança negra, em Nova Iorque, seja tão monocromática, esteticamente tão pobre, fechada, e, sobretudo, sem alegria.
A outra coisa que me impressionou no Harlem foi a profusão de igrejas na Av. Malcom X. Num pequeno trecho contei cerca de vinte, e de distintas denominações. Católicas, batistas, episcopais, evangélicas. Pra todos os gostos e credos. E sempre a poucos passos umas das outras. Paro diante de uma delas. Me chama a atenção um absurdo letreiro com texto homofóbico. Uma senhora, branca, se aproxima de mim e expressa sua indignação com o letreiro. Eu tento acalmá-la e lhe digo que não é nessa direção que o mundo está caminhando. Temos uma tendência natural para valorizar o momento em que estamos vivendo, o que nos leva a perceber os problemas de forma mais dramática. Mas a verdade é que quando olhamos a longue durée, como dizem os franceses, ou seja, os períodos extensos, nos damos conta de que apesar de todos os males e mazelas que persistem, a humanidade vem avançando em muitos aspectos, inclusive no que diz respeito ao bem-estar social e aos direitos humanos e das chamadas minorias.

Tento visitar um centro de cultura e herança negra, mas está fechado. Um homem à porta começa a conversar comigo e quando lhe digo que sou do Brasil faz a maior festa. No seu caso, adora futebol. Também queria muito ter almoçado no Sylvia´s, que Verônica me recomendou muitíssimo. E deve ser bom mesmo, porque estava lotado. Gente esperando do lado de fora. Infelizmente, tenho um espetáculo para assistir e não posso esperar o atendimento. Coleciono mais uma boa razão para voltar a Nova Iorque.