Domingo, 05/07/2009
O dia amanhece com sol e um relativo calorzinho! Dou graças
a Deus. Dessa vez, chegamos ao centro já perto do meio-dia. Todos se dirigem ao
café, à margem do Perequê-Açu. Eu me separo do grupo e vou assistir à palestra
do historiador Simon Schama. Muito performático. O que mais chama a atenção é
sua dificuldade em manter-se preso à cadeira. Em certo momento, inclusive, não se
contém e sai saltitando pelo palco. As perguntas da mediadora são demasiado
longas, e levam a respostas necessariamente incompletas. Fico com a sensação de
uma reedição do batido discurso fundacional americano. O ponto mais
interessante da conversa é a defesa da história narrativa. Logo depois,
conversando com Mário Hélio, ele observa que tanto a História como o Jornalismo
estão realizando um movimento de volta às suas origens, o que muito os aproxima
da Literatura. Eu complemento lembrando que Gilberto Freyre já defendia todas
essas ideias e gestos, que, tantas vezes, de modo muito menos consequente, são
proclamados como o coração da chamada pós-modernidade. Ainda na década de 20
Gilberto falava de como se deve estudar a história tocando em nervos, num esforço
por reconstituir não os fatos, mas a sensibilidade dos tempos idos. Ele argumentava
que o historiador precisa preencher com a intuição e com a imaginação, as
lacunas necessariamente existentes entre os dados disponíveis. Fico pensando
que ao ver um desses abalcoados meio mouriscos, de Paraty, Gilberto
imediatamente imaginaria que histórias ele guarda. Quem seriam as sinhás ali
postadas, furtivamente, a trocar sinais de leques e lenços, com mancebos
enamorados, suas angústias, desejos, frustrações...
Depois de Schama, vou reencontrar a trupe pernambucana na
Rua Fresca (nome delicioso!), ao pé da marina. Caminhamos por ali. Entramos na
igreja de Nossa Senhora das Dores. Toda branquinha e pequenina. Dá um charme
especial à paisagem. Mas o melhor da visita é uma doce senhora, negra, que
revela aos visitantes da igreja como esta se destinava apenas às mulheres
brancas. Seus antepassados, comenta compenetrada, não podiam atravessar o
pórtico. A igreja reabrira no dia anterior, e ela, sua nova guardiã, comemorava
o sucesso de público: quase 300 visitantes logo no primeiro dia! Onde outros
veriam alienação, eu vi apenas ternura e um orgulho feliz, de quem ocupa uma
posição interdita aos seus semelhantes, em um passado nem tão distante assim.
Seguimos o passeio pela marina, até a casa do Príncipe. Dobramos à direita e
ficamos apreciando os detalhes da arquitetura colonial. Ao contrário de Olinda,
as casas não têm as tribeiras, que em Pernambuco identificavam os senhores mais
abastados.
Almoçamos em um charmoso restaurante, perto da praça da
Matriz. Aliás, charme é o que sobra a tudo em Paraty. A comida é divina. A
melhor que comemos até então. Novamente o extraordinário palmito assado. No
meio do almoço, adentra o restaurante um arlequim multicolorido. Altíssimo, e
tão magro quanto alto. Lembra mais um Dom Quixote. Recita poemas e passa a
sacola. Perfeita consonância com o ambiente da Flip.
Caminhamos mais um pouco, à espera da mesa que reunirá Edson
Nery da Fonseca e Zuenir Ventura. A contemplação dos passantes parece dar razão
à tese de Sophia de Melo Brayner. Muitas esbeltas solitárias. Todas as
gordinhas acompanhadas. Regressamos ao café da tenda principal. Enquanto
esperamos, visito com calma a exposição de fotos dos lugares amados e cantados
por Bandeira, ao lado da Tenda dos Autores. Lindas fotos do Recife de
princípios do XIX. O casario esguio da rua da Aurora. As velhas pontes, em
estruturas rústicas, hoje substituídas por construções mais charmosas.
Nos posicionamos em longa fila e conseguimos bons lugares. O
evento começa com quinze minutos de atraso, coisa rara na Flip, onde tudo, até
então, fôra muito pontual. Edson Nery, afligido pela artrose, adentra o palco
apoiado em Zuenir Ventura. A conversa gira em torno de Manoel Bandeira,
homenageado do ano. Edson e Zuenir evocam lembranças dos contatos pessoais com
o poeta. Entremeiam-se poemas declamados pelo pernambucano, cuja memória, aos
86 anos, é espantosa – para dizer o mínimo. Uma terna conversa de amigos,
poder-se-ia dizer. Edson revela segredos de poemas de Bandeira. A mesa termina
com uma inigualável declamação de “Evocação do Recife”, por Edson Nery. O
auditório aplaude de pé. Edson sai, mais uma vez apoiado em Zuenir. A
humildade, quase reverência, que emana dos gestos e da postura do jornalista
carioca confere a esse momento da Flip uma beleza toda especial. O gigante
Zuenir se apequena, apenas para deixar brilhar o homenzarrão pernambucano, que
vive um momento crepuscular de merecida glória. Aos meus olhos, a nobreza de
Zuenir o torna ainda maior. Não esquecerei a cena dos dois homens deixando o
palco abraçados. Nunca. Esta será para mim a mais cara de todas as lembranças
da minha primeira vez em Paraty.
A feira termina para nós. Em alguns minutos tomaremos a van
que nos levará pela noite fluminense, rumo à Cidade Maravilhosa.
Pos scriptum: Alguém
menciona que os “xexos” das ruas de Paraty sequer são originais. Em algum
momento não muito longínquo, um processo de “restauração” teria levado à
substituição de paralelepípedos por essas infames pedras arredondadas. Não sei
se é verdade. Em todo caso, me parece improvável que qualquer veículo sobre
rodas de madeira pudesse circular com tranquilidade por essas “cabeças de
nego”. Sem brincadeira: o autor dessa ideia estupenda não merece menos que
prisão perpétua! Considero um verdadeiro milagre que todos voltemos para casa
com os tornozelos intactos. Conselho para novatos: tênis ou botas rasteiras são
os únicos calçados viáveis em Paraty!