29/09/15
Boa noite, Nica!
Burgos é mesmo uma
cidade encantadora! Amei. Tem tanta coisa interessante para ver, museus,
Igrejas, parques, além de restaurantes e pastelerias
bastante convidativos. As pastelerias
e panaderias são uma tentação. E
estão por toda parte, exalando aquele cheirinho bom de pão e outras guloseimas
recém assados. Burgos é famosa pela morcella,
que é o nosso chouriço (com sangue de porco). Realmente muito gostosa. Eu
ficaria fácil uns cinco dias aqui. Acabei ficando três noites porque consegui
marcar um dentista numa clínica bem legal. A dentista que me atendeu é cubana,
Dra. Orquidea, e mora há dezesseis anos na Espanha. Uma simpatia. E o melhor é
que acho que resolvi meu problema. Ela trocou toda a obturação do meu último
molar inferior, que estava infiltrada. Vamos rezar pra que não dê nenhum
problema.
Bom, ontem de manhã eu
acordei junto com todos os peregrinos, porque tinha dormido no albergue
municipal. Na realidade, dormi mal e já estava até acordada quando começou o
movimento. Às seis e meia acenderam as luzes do dormitório, que devia ter pelo
menos umas quarenta pessoas. Os albergues ao longo do Caminho geralmente têm
horário pra dormir (dez da noite) e horário pra pessoa deixar o albergue (oito
da manhã). Os albergues privados podem ser mais flexíveis com esses horários, mas
os municipais são muito estritos. Até
que me organizei rápido, desci para o refeitório e organizei um café da manhã
pro nosso grupo de quatro (eu, Cármine, Ella e e Kathie): frutas, iogurte, chá,
pão e queijo, que Ella tinha comprado. Ainda estávamos comendo, umas dez pras
oito, quando apagaram as luzes do refeitório, pra gente se apurar.
Durante o café rolou
um estresse entre Cármine e Ella. Cármine é uma boa pessoa, mas me parece um
pouco confuso. Alguém o feriu profundamente e ele parece bem suscetível. Além
disso, ele me parece dessas pessoas que acham que têm de sofrer, e estão diante
da vida como se pagando uma eterna penitência. Uma pena. Ele não consegue
enxergar a beleza e o valor que tem dentro de si. Mas acho que a discussão
entre ele e Ella (até parece trocadilho) teve uma sutileza. Ella tem 46 anos e
assume uma postura de mãezona de todo mundo. Suspeito que Cármine se encheu um
pouco desses cuidados maternais e estourou no café da manhã. O resultado é que
saímos do albergue e nos sentamos a umas mesinhas do café em frente, eu, Ella e
Kathie numa mesa, Cármine e Danielle, um italiano amigo deles, em outra. Aos
poucos Cármine foi acalmando, porém, Ella estava sentida. Depois disso,
passaram o dia separados. Pior que eu não tive coragem de dizer a Ella minha
impressão sobre esse estranhamento. Senti que Ella estava triste com a
perspectiva de perder o companheiro de caminhada.
Fiquei com um certo
remorso de não ter tentado alertá-la, mas ao mesmo tempo não tenho intimidade
de nenhuma com Ella para abordar algo tão delicado. Em todo caso, fiz uma
auto-reflexão. Preciso estar muito atenta, porque eu também tenho essa
tendência a ser muito mãezona. Por maior que seja sua boa vontade, esse tipo de
postura pode acabar sendo incômodo para os outros. Ou, o que é pior, sem o
devido equilíbrio, quando você toma conta de tudo, acaba sem deixar espaço e
oportunidade para que o outro resolva suas próprias questões, desenvolva suas
iniciativas, aprenda e cresça com os pequenos desafios cotidianos. Lembrei-me também
de Norma e Tom. Eles são um casal fofíssimo. Estão juntos há quase quarenta
anos e ainda se chamam de “Baby”. São super atenciosos um com o outro, porém,
senti, em várias ocasiões, que Norma tem uma tendência a controlar as coisas. E
faz isso com toda delicadeza. Do mesmo jeito que eu costumo fazer, no estilo
que eu mesma apelidei de “doce tirana”. Lição para mim mesma: preciso encontrar
o ponto de equilíbrio entre a mulher que quer tomar conta de tudo e de todos
(mesmo que com doçura) e a mulher submissa e sem iniciativa.
Afe! Deixemos de
filosofia e voltemos a Burgos. Após tomar um leite quentinho com mel, deixei
meus companheiros e fui ao hotelzinho que Norma e Tom recomendaram, para ver se
tinham lugar. Tudo certo no Hostal Monges
Magnos. Deixei minha mochila no quarto (o dono se encantou comigo e eu nem
precisei esperar o horário do check in) e fui reencontrar Ella para visitarmos
a Catedral. A Catedral de Burgos é, na verdade, um museu, que se visita com um
áudio-guia bastante razoável. A edificação principal e as capelas mais antigas
datam do século XII, assim como algumas belas imagens e trípticos (há uma
pequena e belíssima coleção de trípticos flamencos que se visita em um dos
ambientes dos claustros). Os altares barrocos são um pouco posteriores, do
mesmo modo que a decoração interna, em pedra, de tetos e paredes de alguns
ambientes. E há, ainda, algumas capelas em estilo rococó, demasiado floreado
para o meu gosto. Bem no centro da Catedral, logo abaixo da cúpula está a
decoração de teto e parede mais impressionante de todas. É uma coisa
impressionante o rendilhado esculpido na pedra, beleza difícil de descrever. Só
mesmo vendo.
Os claustros
superiores também são belos, especialmente as galerias com as paredes decoradas
com suaves pinturas medievais. Muitas são decorações para tumbas de nobres e de
bispos, que se encontram por toda a Catedral. Nos claustros inferiores há
propriamente um museu de arte sacra, com belos objetos litúrgicos de diferentes
séculos, e pinturas dos séculos XII a XV. Eu adoro essas pinturas da Idade
Média, por causa dos traços longilíneos das figuras, e pelo senso de proporção
absolutamente diverso da realidade. Outra coisa que me fascina nessas Igrejas
medievais que tenho visto é a presença de alegorias e figuras míticas, como
grifos, seres alados, gárgolas e até unicórnios e sereias. E tem algumas
representações sagradas que se tornaram raras posteriormente, inclusive por
proibição do Vaticano, como as Virgens de Leite, com o Menino Jesus mamando.
Após a visita à
Catedral, me despedi de Ella e fui compras algumas coisas de que estou
precisando. Agora que me conscientizei de que não devo carregar minha mochila,
pude me dar ao luxo de comprar hidratante! Minha pele estava pedindo
misericórdia de tão seca. E comprei algumas peças de roupa mais quentes, porque
começo a sentir um frio razoável pelas manhãs e à noite. Não demorei muito nas
compras, deixei-as no hotel e fui visitar a Igreja de São Lemes, que fica
pertinho do Monges Magnos. Nada muito
diferente das Igrejas góticas com altares barrocos que tenho visto ao longo do
Caminho. De lá, saí andando pela ampla avenida que contorna o centro histórico.
A certa altura, a calçada do lado direito se transforma num Passeio público,
bastante largo, composto de várias alamedas, algumas ladeadas por árvores
(plátanos, me pareceram). A alameda central tem fontes e está emoldurada por
arbustos esculpidos (desconheço o termo apropriado...). Há banquinhos de
madeira em toda a extensão do passeio, e pelas tardes, senhorzinhos ficam
sentados, apanhando a fresca, vendo o movimento ou conversando entre eles.
Ao final desse Passeio
se chega ao Arco de Santa María, que no século XIV foi importante porta de
entrada das muralhas que cercavam a cidade. O Arco tem ume bela decoração em
pedra, adicionada no século XVI. Abundam turistas fazendo fotos. À sua frente e
ao longo da ponte que lhe faz face, esculturas contemporâneas, de Henry Moore.
O contraste entre essas diferentes formas de expressão artística é bem
interessante. A ponte que cruza o rio nessa altura está estruturada em arcos de
pedra e é bem charmosa. Por trás do Arco de Santa María está a Plaza Mayor, com
seus edifícios coloridos e galerias de lojas em toda a extensão do amplo
quadrilátero. Perto da Plaza, localiza-se uma linda e sólida casa de pedra, a
Casa de Los Condestables, onde os Reis de Castilla receberam Cristóvão Colombo
quando de volta de sua segunda viagem ao Novo Mundo.
Após dar essa volta
pelo centro histórico, fui conhecer as ruínas do Castelo de Burgos, erguido
ainda no século IX. Lamentavelmente, uma restauração desajeitada, com fins
nitidamente turísticos, descaracterizou essas ruínas. Ainda assim, vale a
visita, pois em alguns pontos as pedras originais estão intocadas, e se pode
fazer uma visita guiada às galerias subterrâneas, abertas nos séculos XIV e XV
para defender o castelo, e o poço do século XII, com 61 metros de profundidade.
Para minha sorte, cheguei quase na hora de uma dessas visitas e pude descer às
galerias e ver o poço (descemos a uns 10 metros de profundidade apenas).
Emocionante caminhar por essas estruturas carregadas de tanta história.
Do Castelo caminhei
até os remanescentes de uma das antigas muralhas de Burgos. Também se notam os traços
de uma restauração recente, que, infelizmente, tira um pouco do sabor de ver e
poder tocar uma construção com tantos séculos. O Arco de San Estêvão, ao final
dessa muralha tem traços mouriscos porém, foi igualmente restaurado.
Ontem ainda visitei a
Igreja de São Nicolau. Essa é imperdível. O prédio é gótico, com as ogivas típicas
e o teto em arcos, om decoração leve, em forma de flor. Tem também uma espécie
de patamar retangular, acima, logo que se entra na Igreja, o que faz com que o
teto nessa parte seja rebaixado. Observei essa variação arquitetônica em algumas
Igrejas góticas daqui. Acho que é um espaço destinado ao coro. Impressionante
mesmo e belíssimo é o retábulo do altar, todo esculpido em pedra clara (a cor é
meio pérola), com detalhes pintados em dourado. No centro, uma grande Imagem de
São Nicolau, acima Nossa Senhora ladeada por duas figuras masculinas, uma das
quais me parece ser Jesus, com o Espírito Santo sobre a cabeça dela. E lá no
alto Deus pai, sentado em seu trono, com o mundo nas mãos. Tocava uma suave
música religiosa quando entrei a Igreja. Ajoelhei-me para rezar e, por alguma
razão, fiquei profundamente comovida. Permaneci um longo tempo sentada,
rezando.
Voltei para o hotel
cedo, porque estava muito cansada. O Monges Magnos é um hotel simples, porém
todo renovado, e de muito bom gosto. Dormi como um anjo, por quase onze horas. Sem
precisar de protetores auriculares! Foi um sono reparador e muito necessitado.
E o prazer de tomar banho e me enxugar com uma toalha de verdade?! Passar
hidratante depois do banho?! Verdadeiros luxos pra mim, desde que comecei o
Caminho. Graças a Deus que pude me propiciar esse pequeno luxo. E como te
disse, acabei ficando uma noite mais porque consegui marcar esse dentista pra
hoje.
Além de dormir muito,
de ir ao dentista e de andar mais um pouco por essas lindas ruas com seus
sobrados de varandas de vidro, charmosíssimos, e de comprar mais algumas coisas
de que estava sentindo falta, para enfrentar o frio, visitei o Museu do Livro Fradique D Basilea. A
coisa mais preciosa. Embora a maior parte dos itens da coleção do museu seja de
fac-símiles, as reproduções são, quase sempre, perfeitas. Tem-se toda a
história do livro, desde os primeiros registros da escrita humana em pedra, até
o livro digital. O museu é muito bem organizado e novinho, e o que mais me
impressionou é que se trata de uma iniciativa particular. Uma editora de livros
raros resolveu implantar esse museu por puro amor aos livros. Juro que fiquei
emocionada com o esforço que se vê ter sido despendido para localizar e
reproduzir todas as obras ali expostas. E eu estava no final da visita,
justamente refletindo sobre isso, quando chegou um dos diretores da editora e começou
a conversar comigo. Para resumir, me levou ao seu escritório e me mostrou
alguns exemplares de obras raras que eles editam. Nica, é uma coisa
impressionante. São livros medievais, que eles recriam com uma fidedignidade
incrível. As edições são em pergaminho e cada folha tem textura, coloração e
peso particulares, praticamente idênticos aos originais. Os detalhes dourados
das iluminuras são retocados a mão! A encadernação é igualmente fiel ao
original. Vi uma edição do Livro de Horas de Luis de Laval (um clássico dos
Livros de Horas) que é uma obra de arte. As edições têm oitocentos e poucos
exemplares numerados e priu. Ganhei uma amostra de duas folhas de uma das
edições fac-similares deles. E recomendei muito que eles entrassem em contato
com a Livraria Cultura, pois eles não têm distribuidor no Brasil.
Minha visita ao museu
já aconteceu no final do dia, porque como eu já lhe disse, quase tudo fecha
para a siesta, entre duas e cinco da
tarde. Para encerrar meu dia comi uns saborosos sanduíches de morcilla com pimentões vermelhos e vim
pro hotel para descansar e organizar minhas coisas, pois amanhã recomeça minha
caminhada. Já estou a 488 kms de Santiago. Nada mal. Daqui a pouco chego à
metade do Caminho.
Fica com Deus, Minha Irmã!
Beijos saudosos,
Léia