quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 18


29/09/15

Boa noite, Nica!
Burgos é mesmo uma cidade encantadora! Amei. Tem tanta coisa interessante para ver, museus, Igrejas, parques, além de restaurantes e pastelerias bastante convidativos. As pastelerias e panaderias são uma tentação. E estão por toda parte, exalando aquele cheirinho bom de pão e outras guloseimas recém assados. Burgos é famosa pela morcella, que é o nosso chouriço (com sangue de porco). Realmente muito gostosa. Eu ficaria fácil uns cinco dias aqui. Acabei ficando três noites porque consegui marcar um dentista numa clínica bem legal. A dentista que me atendeu é cubana, Dra. Orquidea, e mora há dezesseis anos na Espanha. Uma simpatia. E o melhor é que acho que resolvi meu problema. Ela trocou toda a obturação do meu último molar inferior, que estava infiltrada. Vamos rezar pra que não dê nenhum problema.
Bom, ontem de manhã eu acordei junto com todos os peregrinos, porque tinha dormido no albergue municipal. Na realidade, dormi mal e já estava até acordada quando começou o movimento. Às seis e meia acenderam as luzes do dormitório, que devia ter pelo menos umas quarenta pessoas. Os albergues ao longo do Caminho geralmente têm horário pra dormir (dez da noite) e horário pra pessoa deixar o albergue (oito da manhã). Os albergues privados podem ser mais flexíveis com esses horários, mas os municipais são muito estritos.  Até que me organizei rápido, desci para o refeitório e organizei um café da manhã pro nosso grupo de quatro (eu, Cármine, Ella e e Kathie): frutas, iogurte, chá, pão e queijo, que Ella tinha comprado. Ainda estávamos comendo, umas dez pras oito, quando apagaram as luzes do refeitório, pra gente se apurar.
Durante o café rolou um estresse entre Cármine e Ella. Cármine é uma boa pessoa, mas me parece um pouco confuso. Alguém o feriu profundamente e ele parece bem suscetível. Além disso, ele me parece dessas pessoas que acham que têm de sofrer, e estão diante da vida como se pagando uma eterna penitência. Uma pena. Ele não consegue enxergar a beleza e o valor que tem dentro de si. Mas acho que a discussão entre ele e Ella (até parece trocadilho) teve uma sutileza. Ella tem 46 anos e assume uma postura de mãezona de todo mundo. Suspeito que Cármine se encheu um pouco desses cuidados maternais e estourou no café da manhã. O resultado é que saímos do albergue e nos sentamos a umas mesinhas do café em frente, eu, Ella e Kathie numa mesa, Cármine e Danielle, um italiano amigo deles, em outra. Aos poucos Cármine foi acalmando, porém, Ella estava sentida. Depois disso, passaram o dia separados. Pior que eu não tive coragem de dizer a Ella minha impressão sobre esse estranhamento. Senti que Ella estava triste com a perspectiva de perder o companheiro de caminhada.
Fiquei com um certo remorso de não ter tentado alertá-la, mas ao mesmo tempo não tenho intimidade de nenhuma com Ella para abordar algo tão delicado. Em todo caso, fiz uma auto-reflexão. Preciso estar muito atenta, porque eu também tenho essa tendência a ser muito mãezona. Por maior que seja sua boa vontade, esse tipo de postura pode acabar sendo incômodo para os outros. Ou, o que é pior, sem o devido equilíbrio, quando você toma conta de tudo, acaba sem deixar espaço e oportunidade para que o outro resolva suas próprias questões, desenvolva suas iniciativas, aprenda e cresça com os pequenos desafios cotidianos. Lembrei-me também de Norma e Tom. Eles são um casal fofíssimo. Estão juntos há quase quarenta anos e ainda se chamam de “Baby”. São super atenciosos um com o outro, porém, senti, em várias ocasiões, que Norma tem uma tendência a controlar as coisas. E faz isso com toda delicadeza. Do mesmo jeito que eu costumo fazer, no estilo que eu mesma apelidei de “doce tirana”. Lição para mim mesma: preciso encontrar o ponto de equilíbrio entre a mulher que quer tomar conta de tudo e de todos (mesmo que com doçura) e a mulher submissa e sem iniciativa.
Afe! Deixemos de filosofia e voltemos a Burgos. Após tomar um leite quentinho com mel, deixei meus companheiros e fui ao hotelzinho que Norma e Tom recomendaram, para ver se tinham lugar. Tudo certo no Hostal Monges Magnos. Deixei minha mochila no quarto (o dono se encantou comigo e eu nem precisei esperar o horário do check in) e fui reencontrar Ella para visitarmos a Catedral. A Catedral de Burgos é, na verdade, um museu, que se visita com um áudio-guia bastante razoável. A edificação principal e as capelas mais antigas datam do século XII, assim como algumas belas imagens e trípticos (há uma pequena e belíssima coleção de trípticos flamencos que se visita em um dos ambientes dos claustros). Os altares barrocos são um pouco posteriores, do mesmo modo que a decoração interna, em pedra, de tetos e paredes de alguns ambientes. E há, ainda, algumas capelas em estilo rococó, demasiado floreado para o meu gosto. Bem no centro da Catedral, logo abaixo da cúpula está a decoração de teto e parede mais impressionante de todas. É uma coisa impressionante o rendilhado esculpido na pedra, beleza difícil de descrever. Só mesmo vendo.
Os claustros superiores também são belos, especialmente as galerias com as paredes decoradas com suaves pinturas medievais. Muitas são decorações para tumbas de nobres e de bispos, que se encontram por toda a Catedral. Nos claustros inferiores há propriamente um museu de arte sacra, com belos objetos litúrgicos de diferentes séculos, e pinturas dos séculos XII a XV. Eu adoro essas pinturas da Idade Média, por causa dos traços longilíneos das figuras, e pelo senso de proporção absolutamente diverso da realidade. Outra coisa que me fascina nessas Igrejas medievais que tenho visto é a presença de alegorias e figuras míticas, como grifos, seres alados, gárgolas e até unicórnios e sereias. E tem algumas representações sagradas que se tornaram raras posteriormente, inclusive por proibição do Vaticano, como as Virgens de Leite, com o Menino Jesus mamando.
Após a visita à Catedral, me despedi de Ella e fui compras algumas coisas de que estou precisando. Agora que me conscientizei de que não devo carregar minha mochila, pude me dar ao luxo de comprar hidratante! Minha pele estava pedindo misericórdia de tão seca. E comprei algumas peças de roupa mais quentes, porque começo a sentir um frio razoável pelas manhãs e à noite. Não demorei muito nas compras, deixei-as no hotel e fui visitar a Igreja de São Lemes, que fica pertinho do Monges Magnos. Nada muito diferente das Igrejas góticas com altares barrocos que tenho visto ao longo do Caminho. De lá, saí andando pela ampla avenida que contorna o centro histórico. A certa altura, a calçada do lado direito se transforma num Passeio público, bastante largo, composto de várias alamedas, algumas ladeadas por árvores (plátanos, me pareceram). A alameda central tem fontes e está emoldurada por arbustos esculpidos (desconheço o termo apropriado...). Há banquinhos de madeira em toda a extensão do passeio, e pelas tardes, senhorzinhos ficam sentados, apanhando a fresca, vendo o movimento ou conversando entre eles.
Ao final desse Passeio se chega ao Arco de Santa María, que no século XIV foi importante porta de entrada das muralhas que cercavam a cidade. O Arco tem ume bela decoração em pedra, adicionada no século XVI. Abundam turistas fazendo fotos. À sua frente e ao longo da ponte que lhe faz face, esculturas contemporâneas, de Henry Moore. O contraste entre essas diferentes formas de expressão artística é bem interessante. A ponte que cruza o rio nessa altura está estruturada em arcos de pedra e é bem charmosa. Por trás do Arco de Santa María está a Plaza Mayor, com seus edifícios coloridos e galerias de lojas em toda a extensão do amplo quadrilátero. Perto da Plaza, localiza-se uma linda e sólida casa de pedra, a Casa de Los Condestables, onde os Reis de Castilla receberam Cristóvão Colombo quando de volta de sua segunda viagem ao Novo Mundo.
Após dar essa volta pelo centro histórico, fui conhecer as ruínas do Castelo de Burgos, erguido ainda no século IX. Lamentavelmente, uma restauração desajeitada, com fins nitidamente turísticos, descaracterizou essas ruínas. Ainda assim, vale a visita, pois em alguns pontos as pedras originais estão intocadas, e se pode fazer uma visita guiada às galerias subterrâneas, abertas nos séculos XIV e XV para defender o castelo, e o poço do século XII, com 61 metros de profundidade. Para minha sorte, cheguei quase na hora de uma dessas visitas e pude descer às galerias e ver o poço (descemos a uns 10 metros de profundidade apenas). Emocionante caminhar por essas estruturas carregadas de tanta história.
Do Castelo caminhei até os remanescentes de uma das antigas muralhas de Burgos. Também se notam os traços de uma restauração recente, que, infelizmente, tira um pouco do sabor de ver e poder tocar uma construção com tantos séculos. O Arco de San Estêvão, ao final dessa muralha tem traços mouriscos porém, foi igualmente restaurado.
Ontem ainda visitei a Igreja de São Nicolau. Essa é imperdível. O prédio é gótico, com as ogivas típicas e o teto em arcos, om decoração leve, em forma de flor. Tem também uma espécie de patamar retangular, acima, logo que se entra na Igreja, o que faz com que o teto nessa parte seja rebaixado. Observei essa variação arquitetônica em algumas Igrejas góticas daqui. Acho que é um espaço destinado ao coro. Impressionante mesmo e belíssimo é o retábulo do altar, todo esculpido em pedra clara (a cor é meio pérola), com detalhes pintados em dourado. No centro, uma grande Imagem de São Nicolau, acima Nossa Senhora ladeada por duas figuras masculinas, uma das quais me parece ser Jesus, com o Espírito Santo sobre a cabeça dela. E lá no alto Deus pai, sentado em seu trono, com o mundo nas mãos. Tocava uma suave música religiosa quando entrei a Igreja. Ajoelhei-me para rezar e, por alguma razão, fiquei profundamente comovida. Permaneci um longo tempo sentada, rezando.
Voltei para o hotel cedo, porque estava muito cansada. O Monges Magnos é um hotel simples, porém todo renovado, e de muito bom gosto. Dormi como um anjo, por quase onze horas. Sem precisar de protetores auriculares! Foi um sono reparador e muito necessitado. E o prazer de tomar banho e me enxugar com uma toalha de verdade?! Passar hidratante depois do banho?! Verdadeiros luxos pra mim, desde que comecei o Caminho. Graças a Deus que pude me propiciar esse pequeno luxo. E como te disse, acabei ficando uma noite mais porque consegui marcar esse dentista pra hoje.
Além de dormir muito, de ir ao dentista e de andar mais um pouco por essas lindas ruas com seus sobrados de varandas de vidro, charmosíssimos, e de comprar mais algumas coisas de que estava sentindo falta, para enfrentar o frio, visitei o Museu do Livro Fradique D Basilea. A coisa mais preciosa. Embora a maior parte dos itens da coleção do museu seja de fac-símiles, as reproduções são, quase sempre, perfeitas. Tem-se toda a história do livro, desde os primeiros registros da escrita humana em pedra, até o livro digital. O museu é muito bem organizado e novinho, e o que mais me impressionou é que se trata de uma iniciativa particular. Uma editora de livros raros resolveu implantar esse museu por puro amor aos livros. Juro que fiquei emocionada com o esforço que se vê ter sido despendido para localizar e reproduzir todas as obras ali expostas. E eu estava no final da visita, justamente refletindo sobre isso, quando chegou um dos diretores da editora e começou a conversar comigo. Para resumir, me levou ao seu escritório e me mostrou alguns exemplares de obras raras que eles editam. Nica, é uma coisa impressionante. São livros medievais, que eles recriam com uma fidedignidade incrível. As edições são em pergaminho e cada folha tem textura, coloração e peso particulares, praticamente idênticos aos originais. Os detalhes dourados das iluminuras são retocados a mão! A encadernação é igualmente fiel ao original. Vi uma edição do Livro de Horas de Luis de Laval (um clássico dos Livros de Horas) que é uma obra de arte. As edições têm oitocentos e poucos exemplares numerados e priu. Ganhei uma amostra de duas folhas de uma das edições fac-similares deles. E recomendei muito que eles entrassem em contato com a Livraria Cultura, pois eles não têm distribuidor no Brasil.
Minha visita ao museu já aconteceu no final do dia, porque como eu já lhe disse, quase tudo fecha para a siesta, entre duas e cinco da tarde. Para encerrar meu dia comi uns saborosos sanduíches de morcilla com pimentões vermelhos e vim pro hotel para descansar e organizar minhas coisas, pois amanhã recomeça minha caminhada. Já estou a 488 kms de Santiago. Nada mal. Daqui a pouco chego à metade do Caminho.
Fica com Deus, Minha Irmã!
Beijos saudosos,

Léia

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 17


28/09/15

Minha Amada Nica,
Estou em Burgos! Essa cidade é preciosa! Bem mais encantadora que Pamplona!
Cheguei ontem, na verdade. Porém, estava muito cansada e sem muita estrutura para escrever, porque dormi no albergue municipal. Hoje mudei para um hotelzinho. Resolvi me dar uma boa noite de sono de presente. Preciso descansar de verdade, pois há quase uma semana que não venho dormindo direito. Sempre acordo no meio da noite umas três ou quatro vezes, e seis da matina começa o movimento dos peregrinos. Estava me sentindo muito cansada, então, achei que era sábio repousar de verdade por duas noites, para repor as energias. Ficarei mais um dia em Burgos, pois consegui um horário numa clínica dentária amanhã de manhã. Preciso ver meu dente que está sensível, antes que ele se transforme num grande problema. Confesso que adorei ter de ficar mais um dia em Burgos! Amanhã te escrevo contando tudo sobre essa charmosa cidade.
Deixe-me, agora, falar sobre o dia de ontem. Dormi num quarto bem pequeno, com mais 5 pessoas. Dentre elas, duas canadenses muito simpáticas. A mais jovem está com o pé todo estourado de bolhas. Fiquei morrendo de dó. E olhe que ela passou seis meses treinando com as botas, e ainda por cima carregando mochila e subindo montanha. Eu tenho que agradecer muito! Pra quem é sedentária feito eu, que não treinou nada, e ainda por cima está acima do peso, tenho de me dar por muito satisfeita com minha pequena inflamação no pé e nas costas. Deus me conserve livre de bolhas!
Seis e meia da manhã a galera acordou e começou a se movimentar, e eu com eles. Ainda estava completamente escuro e eu pude ver o céu estrelado quando fui logo pegar a roupa que eu tinha deixado secando no varal. Para minha tristeza, descobri que estavam mais molhadas do que quando eu terminei de lavá-las. Um orvalho brabo deixou tudo ensopado. Parecia até que tinha chovido. Isso é pra eu aprender a não deixar roupa de noite no varal. Após catar minha roupa, fui tomar meu café na cozinha, para evitar o congestionamento dos banheiros. Sempre que é possível, tento andar no contrafluxo do movimento dos albergues, para não ter de perder tempo em fila de banheiro, ou disputar espaço na cozinha coletiva.
Como sempre, fui das últimas pessoas a saírem do albergue. Creio que eram umas oito e meia. Com meia dúzia de passos, cheguei na altura de uma estátua de um homem primitivo (Atapuerca tem um importante sítio arqueológico) e dobrei à esquerda, seguindo o Caminho. Havia uma quantidade razoável de peregrinos caminhando, mas já era a galera que saiu da cidade anterior, bem cedinho. Começamos a subir uma encosta. A manhã estava gelada e eu até achei bom o esforço da subida, porque me ajudou a aquecer um pouco o corpo. Passamos por uma propriedade com centenas de ovelhas meio beges com cabeças e patas marrons, e mais ou menos nessa altura, me virei para trás e surpreendi um belíssimo nascer do sol, no meio de uma densa névoa. Fiquei emocionada. Por dois ou três quilômetros caminhamos assim, subindo um monte, em meio a uma névoa que foi ficando cada vez mais densa, e o sol subindo por trás de nós, porém, ofuscado pela névoa. Só se viam os vultos dos peregrinos e das árvores contra o véu branco da neblina. Lindo demais.
O terreno era meio pedregoso e a subida foi puxadinha, até que atingimos o cume da colina, onde há uma grande cruz. Pouco adiante, avistei uma enorme espiral desenhada no chão, com pedras. E junto à espiral, um grande coração, também feito de pedras. Imagino que seja a mesma pessoa que fez desenhos no chão que eu tinha visto na etapa anterior. E quem sabe se não é o mesmo que fez os totens de madeira... em todo caso, é sempre uma bela dádiva para os peregrinos. Ainda subimos um tiquinho, e, de repente, avistamos um extenso vale ao pé desse monte. A vista do vale é muito, muito bela. Vêem-se algumas vilas com suas torres de Igreja salientes, e, lá no fundo, em meio à névoa, me deu a impressão de ver os contornos de alguma grande cidade, que imaginei ser Burgos. No fundo de tudo, uma cadeia montanhosa com torres de energia eólica. Sabe que em inglês eles chamam essas torres de Wind mills? Pois a terra de Dom Quixote está literalmente cheia de moinhos de vento. A vida imitando a arte?!
A descida da encosta para chegar ao vale até que foi tranquila, mesmo com o terreno pedregoso. Em certo ponto, há uma bifurcação, com duas possibilidades para o Caminho. Uma segue junto a uma estrada mais movimentada, a outra entra pelo vale e passa por dois pequeninos vilarejos. Segui pela esquerda, para passar pelos vilarejos e apreciar uma paisagem que me pareceu mais bucólica. Caminhei por entre campos cobertos por tocos de alguma planta cor de palha. A essa altura o céu já estava limpíssimo e o céu era de um azul luminoso. O contraste entre o azul celeste intenso e o ocre os campos é sempre belo, e produz em mim uma sensação profunda de paz. De vez em quando, de uma curva da estrada, num ponto mais alto, se podia avistar as montanhas ao longe, ainda cobertas de névoa. Passei por uma localidade chamada Villaval, onde há uma Igrejinha em ruínas, e pouco depois cheguei a Cardeñuela Rio Pico, onde há um lugar bem estruturado para tomar café da manhã. Até pensei em parar pra tomar um leite quente, mas havia muitos peregrinos ali e uma fila considerável no balcão. Resolvi seguir adiante. Subi até a Igrejinha do local, que estava fechada. Talvez menos de um quilômetro depois, cheguei a Orbaneja Rio Pico, e num café desse vilarejo, encontrei os dois italianos com quem havia caminhado no dia anterior. Sentei-me com eles, tomei meu leite quente e comi uma tapa de polvo, que parecia deliciosa. Eu sei que polvo não tem nada a ver com leite, mas a tapa estava tão linda, que não resisti. O polvo estava macio e saboroso.
Caminhei o resto do dia com Ella, Cármine (que não se chama Hugo) e uma jovem alemã, Kathie, que encontramos na saída de Orbaneja. Foi um dia agradável de caminhada, na companhia dos três. Todos em busca de uma mudança interior que lhes permita mudar a própria vida e encontrar mais paz e felicidade. Pouco antes de chegar a Burgos, após cruzarmos uma ponte sobre ampla e movimentada rodovia, há uma nova bifurcação, com duas possibilidades de seguir o Caminho. Uma delas acompanha essa rodovia e, conforme os guias do pessoal (eu não tenho nenhum), atravessa uma zona industrial, na entrada de Burgos. A outra vai margeando um rio. Obviamente, tomamos o caminho da esquerda, que deveria nos levar até esse rio. Passamos por uma espécie de aeródromo e logo depois, cruzamos uma simpática pontezinha e começamos a caminhar no meio de um bosque, com o rio à nossa direita. Caminhamos quilômetros nesse bosque, que já começa a se vestir com o amarelo e o alaranjado do outono. Bancos e mesas de piquenique, churrasqueiras, ciclistas e pessoas passeando, caminhando ou correndo, deixaram evidente que estávamos em um parque urbano. Em certo trecho, o rio se alarga um pouco e assume ares de um simpático lago, com capim alto e patos nadando. À margem, puseram areia fina e branca, como se fosse uma pequena praia.
Ainda caminhamos muitíssimo nesse parque, passando por debaixo de pontes e seguindo por uma extensa alameda, com árvores de um lado e uma murada protegendo o rio, de outro. Eu já estava cansadíssima e não via a hora desse parque ter um fim. Ao mesmo tempo, estava feliz de termos escolhido esse caminho para entrar em Burgos, pois o parque é belo, agradável e nos propiciou uma sombra providencial no dia quente e ensolarado que fazia. Finalmente, dobramos numa ponte à nossa esquerda, para procurar o hotel para onde eu havia despachado minha bagagem e que ficava um pouco antes da entrada da cidade antiga. Chegamos a uma grande avenida, com prédios altos e modernos. Recolhemos minha mochila. Eu até havia pensado em ficar nesse hotel, mas meus companheiros queriam dar uma olhada no albergue municipal. Poucos metros à frente, nos deparamos com as primeiras construções históricas e avistamos um dos arcos que dá acesso ao centro histórico.
Após cruzarmos os arcos, começamos a andar por ruazinhas estreitas, com altos sobrados, coloridos e com enormes janelões de vidro, em estrutura de madeira, meio projetados para fora. Ainda não consegui verificar a informação, mas me deu a impressão de que são edifícios de princípios do século XX, estilo Belle Époque. Em todo caso, são simplesmente um charme! Fiquei apaixonada por Burgos logo à primeira vista. Fomos subindo as ruazinhas (Kathie tinha um providencial GPS no celular dela) até chegarmos ao albergue municipal, que fica num prédio histórico (creio que um antigo mosteiro), mas está todo renovado. Tudo novinho em folha e com um ar moderno e descolado. Ainda havia lugar disponível e custava apenas cinco euros. Nossos beliches eram no sexto andar.
Deixamos as mochilas e estávamos tão famintos (eram quase quatro da tarde), que saímos imediatamente para almoçar. Encontramos um restaurante bem simpático, com menu peregrino a dez euros. Eu comi, mais uma vez, peixe com um delicioso molho de tomate e pimentões. Após o almoço, eu e Cármine voltamos ao albergue para tomarmos banho e descansarmos um pouco antes de irmos à missa (era domingo). Ella e Kathie foram em busca de uma farmácia e um mercadinho.
Banho tomado, um pouco de repouso e eu e Cármine nos dirigimos à Catedral, para a missa das 19:30h. A Catedral está muito perto do albergue. Assim que subimos a ladeira, nos deparamos com a imensa construção no que eles chamam de gótico florido. Absolutamente linda! O céu ainda estava bem azul e o contraste com o branco das pedras produz um efeito magnífico. As torres altas, cheias de detalhes, se projetam para o infinito, imponentes. Mas amanhã te falo mais sobre a Catedral, que visitei com calma hoje. Ficamos tão abasbacados admirando a edificação e tirando fotos, que chegamos à missa com cinco minutos de atraso. A pequena capela destinada ao culto estava cheia. O interior não me agradou tanto, com sua decoração excessiva e muito colorida no teto e nas paredes, num estilo rococó, bem posterior à construção do edifício. Em contrapartida, adorei o forte cheiro de incenso no ar, que parece dar certa gravidade ao ambiente de culto.
O sermão do padre foi demasiado longo e pouco expressivo. E as leituras eram tão fortes. Tanto a Primeira Leitura como o Evangelho mostravam a reação enciumada dos discípulos e “escolhidos” quando outros pregavam e operavam milagres em nome de Deus. A reação de Moisés e de Jesus foi a mesma: quem prega o Amor e opera milagres sempre age inspirado por Deus. Fiquei pensando em como essas passagens relativizam o poder e a importância da Igreja, de qualquer Igreja. Não no sentido de que a Igreja seja desimportante, pois creio na relevância da vida em comunidade, mas no sentido da exclusividade. São muitos os Caminhos para Deus, e são muitos os Caminhos de Deus. É uma pena que os homens se esqueçam disso com tanta frequência.
Após a missa, o padre abençoou os peregrinos. Quando saímos da Catedral, a noite estava nascendo. Fazia um friozinho danado. Cármine estava muito emocionado e sentou-se nos bancos de pedra rente a uma murada da Catedral. Um casal de senhores italianos que o conhecia se aproximou. A senhora ficou conversando com ele, e eu fiquei conversando com o senhorzinho. Uma lindíssima lua, quase cheia, despontou no céu, por detrás da catedral. E foi com essa imagem, lindíssima, que me recolhi ao albergue. Kathie estava num bar em frente, tomando cerveja com outros peregrinos. E Ella lavava nossa roupa nas máquinas do albergue. Fiquei com ela, esperando a secadora terminar seu trabalho e finamente fui me deitar, exausta.
Só que não dormi bem. Na verdade, faz umas cinco noites que eu não durmo direito. Especialmente quando tenho de dormir no beliche superior, passo a noite meio inquieta. Por isso, resolvi mudar-me hoje para o hotelzinho de onde te escrevo. Também tomei uma outra resolução importante. Ao carregar minha mochila ontem, só pelas ruas de Burgos, voltei a sentir minha coluna. E me convenci de que é mais prudente ficar despachando a mochila até o final do Caminho. Se eu não fizer isso, corro o risco de não conseguir chegar ao final. Paciência. Cada um conforme a medida das suas forças. É tão interessante como o Caminho obriga você a viver no presente! Pelo menos comigo tem sido assim. Sinto que tenho de viver um dia de cada vez. Cada etapa vencida é uma conquista. E aí, quando você acorda, pede forças para chegar até o final daquele dia. E ponto. O resto, é entrega.
Boa noite, Minha Irmã! E beijos mil,

Léia 

sábado, 26 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 16


26/09/15

Nica, Querida,
Estou em um vilarejozinho chamado Atapuerca. Hoje caminhei apenas 18,8 kms. Graças a Deus consegui lugar num albergue simples, mas bem organizado e com um extensor jardim (Albergue El Peregrino). Saí de Montes de Oca com um certo receio, porque alguns peregrinos tentaram fazer reserva nessa cidade onde estou e numa anterior e não conseguiram. Disseram a eles que estava tudo cheio. Por isso, eles tomaram um ônibus direto para Burgos. Eu não quero e não devo pular nenhuma etapa, portanto, entreguei nas Mãos de Deus e pus o pé na estrada. O nó é que se não desse certo, a próxima cidade fica a quase 7 quilômetros. Mas deu certo e eu estou muito contente com meu albergue.
Mais um belo dia de sol se anunciava quando saí de Montes de Oca. A primeira parte da caminhada foi dura, porque foi só subida, até o alto desses Montes. Em compensação, caminhei em meio a um lindo bosque, repleto de samambaias que já estão adquirindo as tonalidades do outono. E quando cheguei na parte mais alta do Monte, pude apreciar uma lindíssima vista do vale e de uma cadeia de montanhas ao longe. Mais um pouco adiante, há um monumento em homenagem a vítimas da ditadura de Franco.
O Caminho continuou o tempo todo ladeado por árvores e samambaias. Em alguns trechos, a estrada se largou e a terra adquiriu uma cor avermelhada. No meio da estrada alguém desenhou com pedras um desejo de “Buen Camino” e um grande coração. E mais adiante um pouco, após um belo bosque de pinheiros, fui surpreendida com uma espécie de área de repouso amorosamente criada por algum artista. Vários troncos de árvores estavam esculpidos em forma de totens, e pintados também. Alguns troncos estavam cortados e dispostos como bancos e mesas onde os peregrinos podiam descansar e comer. Havia placas e troncos de madeira pintados com frases positivas: Somos luz; Hapiness is only true when shared; Pueblos de um lugar llamado mundo (com bandeiras de vários países pintadas num tronco). Achei muito lindo que alguém tenha se dado ao trabalho de criar um ambiente tão convidativo e acolhedor no meio desse longo trecho (12,6 kms) entre Montes de Oca e San Juan de Ortega.
Após mais alguns quilômetros de bosques, finalmente cheguei ao alto de uma colina e avistei San Juan de Ortega embaixo, no vale. Esse lugarejo não tem quase nada além um Mosteiro com sua Igreja. Esse Santo viveu na região no século XI e foi uma espécie de pupilo de Santo Domingo de La Calzada. Ambos trabalharam muito pelos peregrinos. A Igreja do Mosteiro, que leva o nome de San Juan, tem sua tumba e um mausoléu em sua homenagem. Curiosamente, não há um altar principal. Quer dizer, lá no fundo, após o mausoléu, a gente pode vislumbrar um Crucifixo, mas o mausoléu ocupa todo o centro da Igreja, que não é muito grande. A construção é românica (séc. XII). E os retábulos laterais não são especialmente belos. Um deles, que está acima da tumba do Santo é curioso, contudo. Várias das cenas representadas mostram almas pedindo misericórdia, e lá em cima, um Cristo de braços abertos (quero crer eu que em sinal de acolhimento de todas elas). Acho que o que eu mais gostei na Igreja de San Juan foi a torre de uma parede só, com seus velhos sinos destacados diretamente contra o céu azul.
Almocei no bar do arruado (acho que não dá nem pra chamar de vilarejo), um simples omelete com salada. Quando estava entrando no bar encontrei uma italiana e um italiano daquele grupo animado do albergue de Cirueña. Ella (é o nome da moça) se ofereceu para me esperar, pra que eu não seguisse caminhando sozinha. Tão gentil da parte deles, não?! Terminei de comer pouco depois que Ella e Hugo terminaram de visitar a Igreja. Retomamos, então, o Caminho. Só que logo adiante tinha uma bifurcação que mostrava “Camino alternativo” e caminho principal. Pelo mapa e pelos nomes das cidades que constavam na placa, dava a impressão de que a estradinha que seguia pelo meio do bosque não era a que eu precisava pegar, porque tinha mandado minha mochila para Atapuerca. Me despedi dos meus novos companheiros. Eles seguiram pelo bosque e eu segui pela estrada que a placa parecia indicar. No entanto, após um quilômetro e meio, como não havia nenhuma flechinha amarela, resolvi voltar ao bar e me informar direitinho. E lá vou caminhando pra trás, como se não me bastassem os quilômetros que tenho de andar pra frente... No bar, o rapaz me disse que eu não fizesse caso da placa e seguisse pelo bosque, acompanhado as setinhas amarelas. Paciência! Ainda bem que eu resolvi voltar logo para me informar!
Bom, segui pela estradinha em meio às árvores, agradecendo pelas sombras, pois a essa altura o sol estava a pino. Passei por umas vaquinhas pastando soltas, com seus bezerrinhos fofíssimos. Logo acabou-se o bosque e a paisagem voltou a assumir as feições ocres que já te descrevi ontem. Campos pelados, prontos para a semeadura. Na descida de uma colina, vislumbrei a cidadezinha de Agés, com sua torre de Igreja destacando-se entre as casas. Bem na entrada da cidade, encontrei Ella e Hugo sentados numa mureta. Hugo chorava. Me aproximei, Ella se levantou e me chamou para tomarmos algo num café charmosíssimo que fica bem na esquina da rua principal de Agés, enquanto Hugo se recuperava de alguma emoção forte causada pelo Caminho. O café charmoso se chama El Alquimista. Trata-se de uma casa linda, com quatrocentos anos de existência, que foi toda reformada, e é café, bar e mercadinho. Uma jóia. A pia do banheiro é em forma de coração. Mas juro que não é cafona. Pelo contrário, tudo é de muito bom gosto em El Alquimista. E a dona, Amapola, é uma verdadeira figura!!! Morri de rir com ela.
Eu não tomei café, mas comi uma fatia de melão docinho. Nisso, chegou Hugo, que queria ir ao banheiro. Ella pediu a chave e Amapola deu a chave do banheiro de mulheres. Hugo entrou no banheiro. Quando Amapola percebeu que a chave era para um homem (tem um banheiro masculino), ela quase teve um treco. Começou a falar que homem só sabe fazer sujeira em banheiro, que sai salpicando tudo, até o teto. Enquanto falava, ela fazia toda a interpretação. Enquanto eu morria de rir, Ella procurava tranquilizar Amapola, dizendo que Hugo era um homem limpíssimo. Agora, nessa conversa toda, Amapola falava em espanhol, e Ella em italiano. Por um momento eu achei que Amapola fosse arrastar Hugo do banheiro pra fora. Mas ela se acalmou e quando Hugo saiu, os três começaram uma conversa animadíssima. Amapola falando pelos cotovelos, em espanhol, e Hugo e Ella, respondendo em italiano. Um barato! Pra você ver que quando as pessoas querem se comunicar, a língua não é um empecilho. Me diverti demais com a cena. E quando resolvemos tirar uma foto, e Amapola disse que uns italianos tinham ensinado ela a dizer clitóris, na hora do “X”. Hugo observou que essa não era uma palavra apropriada e perguntou a Amapola se ela sabia o que significava. Resposta dela: E eu não vou saber o que eu tenho e que me dá mais prazer? Ri demais.
Antes de deixarmos a pequena e charmosa Agés, eu, Ella e Hugo fomos dar uma espiada na Igrejinha local. Uma gracinha de construção românica, pequena, com teto baixo, e dois pequenos altares barrocos, mas simples. Na fachada da Igreja, a mesma torre de sinos, de uma única parede, que tanto me encantou em San Juan, e no seu topo, um enorme ninho de cegonha.
A caminhada de Agés a Atapuerca foi rápida e agradável. Fui conversando com Ella, arranhando meu italiano, enquanto cruzávamos belos campos de girassóis. Quase na entrada de Atapuerca, rezamos um mistério juntos. Atapuerca é um vilarejo. Acho que a rua principal não tem nem um quilômetro. Me dirigi ao albergue para onde havia despachado minha mochila e me despedi dos meus adoráveis amigos italianos. Nem acreditei quando a moça do albergue me disse que tinha lugar! Fiquei tão feliz e agradecida. Deixei minhas coisas no quarto, tomei banho e fui dar uma espiada na Igreja local, que estava fechada. Porém, como a Igreja fica num alto, pude apreciar uma bela vista das redondezas. Voltei ao albergue, comi umas coisinhas que comprei em El Alquimista e estou aqui na minha cama, escrevendo para você, e ao mesmo tempo já pronta para me estirar na cama e dormir.
Amanhã caminharei 21 kms até Burgos. Pretendo ficar um dia a mais, para visitar a cidade. Infelizmente não conseguirei alcançar Norma e Tom. Temos nos falado sempre por email. Eles estão em Burgos hoje e partem amanhã pela manhã. Eu lamento, porém, ao mesmo tempo, sei que não consigo manter o ritmo deles. Na realidade, toda vez em que eu penso em acelerar meu passo, me aparece uma novidade. Hoje mesmo comecei a sentir um pouquinho meus quadris e já dei uma segurada no ritmo.
Engraçado que hoje eu estava caminhando entre as árvores, sozinha, pensando nos peregrinos que pegaram o ônibus, e dizia pra mim mesma, com toda convicção: Eu vou caminhar tudo, até Santiago! Nesse exato momento, dei uma topada danada, e quase me estabaco no chão. Na hora captei a mensagem. Algum anjinho me avisava: Mais humildade! Pra chegar até o fim dessa jornada, careço da Graça. Se Deus quiser, chegarei ao fim. Nunca devo esquecer de como as convicções sobre o futuro são ilusórias.
É isso, Niquinha. Agora vou me preparar para dormir. Preciso descansar o corpo, pra longa jornada de amahã.
Espero que esteja tudo bem por aí. Saudade muita!
Beijos no seu coração,

Léia

Obs: Saí para pegar o sinal da internet e tem uma lua incrível no céu!

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 15


25/09/15

Boa noite, Nica,
Me dou conta de que bagunço a cronologia dos fatos. Espero que isso não cause confusão. Já tendo feito o relato do dia de hoje, agora pela tarde. Passo a te contar sobre o dia de ontem. Tomei um gostoso café da manhã no albergue de Dona Amparo. Pão fresquinho, geleias caseiras, suco de laranja. Dona Amparo não economiza. Coloca a comida na mesa e a pessoa se serve à vontade. Bem se vê que ela tem prazer em alimentar as pessoas. Tinha sido assim no jantar da noite anterior. Esqueci de te dizer que comi um peito de frango com molho de pimentões vermelhos absolutamente divino. Foi Dona Amparo que me explicou que eles assam os pimentões na lenha, e depois despelam e põem no azeite. Afe! Uma coisa de gostoso.
Após meu lauto café da manhã, tomei meu rumo. Pra variar, fui a última a deixar o albergue. Porém, assim que deixei a pequena e feiosa Cirueña pra trás e entrei pela estradinha de terra, encontrei o grupo de italianos que jantara no albergue na noite anterior. Cristina, a única do grupo que falava bem inglês, se aproximou e começamos a conversar. Ela está fazendo o Caminho em busca de paz interior. Queria sair da rotina acelerada e estressante e se reencontrar consigo mesma e com Deus. Cristina mora na Suíça por conta do trabalho e tive a sensação de que é uma pessoa um pouco solitária. Batemos um bom papo enquanto descíamos e subíamos colinas desnudas, com os campos em processo de aragem, até chegarmos a Santo Domingo de la Calzada.
A entrada da cidade é cheia de galpões, portanto, meio feiosa. Já o centro histórico é uma graça. Tem uma Ermida bem bonitinha, de N. Sra. De la Plaza. O altar é simples e delicado, com pinturas que parecem ícones, e, no meio, uma imagem de Nossa Senhora sentadinha com o Menino Jesus no colo. Do lado direito, uma bela torre de sinos, com um carrilhão, que deve ser do século XVIII, tal como a torre da Catedral, ambas com um certo maneirismo na decoração. Mesmo com o cansaço permanente de pés e pernas, decidi galgar os muitos degraus dessa torre. E valeu demais, porque se tem uma bela vista do vale onde se situa a cidade, com montanhas ao fundo. Também foi de lá que vi os remanescentes da muralha que um dia cercou a cidade.
Visitei, ainda, a Catedral de Santo Domingo de la Calzada. Tem um milagre famoso atribuído a esse Santo, que nasceu e viveu nessa região. Conta-se que um casal de peregrinos seguia para Santiago com o filho. Ao pararem numa hospedaria, a filha do hospedeiro se engraçou com o rapaz, que não lhe deu bola. Com raiva, a moça colocou uma peça valiosa entre os pertences dele. Pela manhã, a moça o acusou de furto. O rapaz foi enforcado. Os pais, que assistiram ao enforcamento, se preparavam para partir, quando ouviram o filho dizendo que estava vivo. Correram, então, à casa do juiz, que estava comendo. Contaram-lhe a história, pedindo que lhe soltassem o rapaz, e o juiz disse que o rapaz estava tão vivo com o galo e a galinha que ele comia. Nesse instante, penas começaram a crescer e o galo e galinha saltaram das travessas e saíram cacarejando pela sala. O rapaz foi libertado e pôde seguir viagem com os pais. Teria sido Santo Domingo que salvou sua vida, sustentando-o pelos pés.
A Catedral, gótica, não é especialmente bonita, mas tem algumas particularidades, em função da forma arredondada de suas paredes. O altar fica num patamar no centro da nave principal e tem apenas um enorme crucifixo de madeira, sem imagem, pendendo do teto. No semi-círculo em volta do altar encontram-se os altares laterais, a maioria decorada com retábulos, um deles apenas com uma antiga Imagem de Nossa Senhora. No último altar à esquerda encontra-se o retábulo principal, que é interessante porque acompanha o arredondado da parede. É um retábulo barroco (sec. XVI), rebuscadíssimo, com várias cenas da vida de Jesus, do nascimento à morte, uma Imagem de Santiago e num dos nichos centrais, uma Imagem do Criador. É tanta informação que a pessoa fica meio atordoada.
Essa Catedral tem o túmulo com as relíquias de Santo Domingo de La Calzada, no subsolo. Acima dele, na nave da Igreja, está seu mausoléu (1954), esculpido em mármore, com detalhes em prata e uma grande Imagem do Santo. Em frente ao mausoléu, um galináceo, onde vivem um galo e uma galinha (belas aves, enormes e emplumadas), como referência ao milagre mais conhecido de Santo Domingo. O mais interessante da Catedral é o museu sacro que há ao lado, com belas peças de entre os séculos XII e XVIII, incluindo uns ex-votos em marfim, de clara inspiração oriental, que me pareceram curiosíssimos, além de verdadeiramente belos. Na coleção, há uma vitrine de pertences de trabalhadores dos retábulos, que foram encontradas em obras de restauração.
Acabei passando umas duas horas e meia visitando esses monumentos de Santo Domingo. E olhe que não caminhei até os restos da muralha porque já era meio-dia e eu ainda tinha dezessete quilômetros de caminhada pela frente. Na saída de Santo Domingo há uma Ermida e logo após, uma ponte. A gente segue caminhando por uma estradinha paralela a uma rodovia. Na realidade, durante boa parte dos dias de ontem e de hoje, caminhei paralela a essa rodovia, o que significa um ambiente mais barulhento. Às vezes o Caminho se afasta um pouco da rodovia, e a gente pode desfrutar melhor da paz dos campos e colinas do entorno. Em vários pontos o Caminho cruza a rodovia, que é muito movimentada, com muitos caminhões. É preciso atenção para atravessá-la.
A paisagem ao longo de todo o dia de ontem foi em grande parte como te descrevi: campos desnudos, alguns deles sendo arados por tratores. Vales e colinas se sucederam na monotonia do tom ocre, aqui e acolá pontuado pelo verde de alguma plantação de vegetais, ou pelo amarelo e marrom dos girassóis. No entanto, como fazia um céu azul luminoso, o contraste era bonito. Em alguns trechos, na linha do horizonte, se podia vislumbrar uma cadeia montanhosa. Várias subidas, o que tornou esse percurso de ontem mais cansativo. Tanto mais que pela tarde fez um calor danado. O sol estava tinindo.
Após Santo Domingo passei por Grañon, um pequeno povoado, onde há uma Igreja que acolhe peregrinos. Quando cheguei, o pároco estava sentado a uma mesa, nos fundos da Igreja, recebendo os peregrinos, com biscoitos, e explicando os procedimentos. Justo ao lado desse pequeno gramado, há uma espécie de pracinha, com bancos e uma fonte no meio. Sentei-me ali para comer um sanduíche (com pão fresquinho que comprei numa padaria local) e fiquei escutando o padre explicar que eles têm um jantar comunitário, em que todos ajudam a preparar, há uma missa antes do jantar, e depois cada um pega um colchonete e todos dormem na torre da Igreja. Achei super interessante. Na verdade, Cristina tinha mencionado algo a respeito e ela estava entre os que se registravam para passar a noite na Igreja. Fiquei com muita vontade de fazer uma experiência semelhante. Mas precisarei comprar um cobertor em Burgos, porque as noites estão cada vez mais frias e não creio que aguentaria o frio de uma torre de Igreja sem estar devidamente preparada. Cristina me disse que há outras Igrejas que acolhem peregrinos, ao longo do Caminho.
Grañon é um povoado bem simpático, casas bem conservadas, ruas limpas, um bonito mirante na saída da cidade, com vista para o vale abaixo e colinas ao fundo, e a Igreja de São Pedro, que é simples, sem excessos na decoração. Num retábulo secundário, há uma bela representação da Santíssima Trindade. Antes de deixar a cidade, tomei um chá e comi um bolo com laranjas assadas por cima, simplesmente divino!
Cinco quilômetros depois de Grañon está Redecilla del Camino, que tem de interessante uma Pia Batismal do século XII, com detalhes meio mouriscos. A Igrejinha de Nossa Senhora da Calçada é fofinha, pequena, com paredes brancas e muito simples. O altar barroco não é muito exagerado, e numa das paredes laterais há um belo crucifixo, com um Cristo de rosto sereno, que muito me agradou. A Imagem parece ser antiga, mas por alguma razão não tem os traços cadavéricos e sombrios das Imagens de Cristo crucificado que se costuma ver nessas Igrejas medievais.
Ainda cruzei Viloria de Rioja, um povoado com três ou cinco ruas, até chegar a Villamayor del Río. Nesse último trecho de caminhada, encontrei Paquita, uma catalã bem gordinha, que está fazendo o Caminho também em buscar de serenidade e de um encontro consigo mesma e com Deus. Fomos conversando até Villamayor, que não chegava nunca! Ontem foi um dia mais puxado. Caminhei quase 23 kms, e não sei se por isso, mas o fato é que esse último trecho me custou uma eternidade. Quando chegamos em Villamayor, as amigas de Paquita estavam sentadinhas nuns bancos à entrada do povoado, que tem apenas uma rua. Adorei escutá-las conversando em catalão. Parece tão diferente do espanhol! Não havia uma única palavra que me soasse familiar.
Villamayor del Río é quase um povoado abandonado. As casas estão bastante deterioradas e havia um cheiro desagradável no ar. Lembrei-me da queixa da senhorinha que encontrei no ponto de ônibus em San Millán de que a juventude está toda indo embora desses povoados. Os jovens vão-se embora atrás de oportunidades nas cidades maiores e os povoados estão basicamente habitados pelos idosos. E realmente, a gente vê sobretudo pessoas de mais idades nas ruas dessas vilazinhas. Mas Villamayor, assim como Cirueña, me deu uma triste impressão de abandono e decadência.
Meu albergue, na verdade, ficava fora do povoado, do outro lado da rodovia. Me despedi de Paquita e de suas amigas e me dirigi ao albergue. Como já te disse, é um lugar simples, sem internet, e a dona tem jeito de poucos amigos. Em todo caso, a cama parecia limpa e pude tomar um banho quentinho. Cheguei muito cansada. Fiz um lanche com comida que ainda tinha na mochila e me deitei cedo.
Um evento me deixou pensativa. Em Grañon, quando me sentei nos banquinhos para comer, havia vários peregrinos que estavam por ali, porque esperavam para se registrar, e eu fui incapaz de oferecer-lhes do pão e do queijo que tinha comigo. Eu tinha sobrando, só que pensei que seria meu jantar, e por isso não consegui ser generosa o suficiente para oferecer aos que estavam por ali. Fiquei chateada comigo mesma depois. Sempre há onde comprar comida ao longo do Caminho. Não faz nenhum sentido ter esse tipo de apego. Espero ter aprendido a lição. É preciso generosidade pra viver na abundância.
É isso, Niquinha. Amanhã (26/09) devo caminhar quase 19 kms. Meu plano é dormir em Atapuerca. Mando notícias de lá.
Fica com Deus!
Grande beijo,
Léia

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 14


25/09/15

Boa Tarde, Minha Irmã!
Estou agora em Villafranca Montes de Oca, sentada no extenso gramado de albergue, que é também um charmoso hotel, onde em tempos medievais existiu um hospital de peregrinos. Faz uma tarde agradabilíssima. Céu azul, algumas nuvens no céu, um sol morninho. À minha frente, uma linda igrejinha em pedra quase branca, do século XVIII, com uma torre de cúpula em forma de minarete. E por trás da Igrejinha (que infelizmente está fechada), uma colina com bosques verdes do lado direito e campos cor de ocre, do lado esquerdo.
Hoje caminhei pouco, apenas 16,8 kms. Mas já venci meus primeiros 200 kms!!!! Na verdade, daqui a pouco completo 300 kms. Devagarzinho vou vencendo as distâncias. Sempre me lembro de um ditado que mamãe adora repetir: Devagar, que eu tenho pressa. Pois vou nesse compasso. Sinto que meu pé está melhorando, e minha coluna também. Se Deus quiser, a partir de Burgos volto a carregar minha mochila.
Ontem, em Villamayor del Río, dormi num quarto com um casal francês de seus sessenta anos. Ela, Marianne, tem um problema crônico nos rins. Certamente fez hemodiálise, pois um de seus braços tem as veias bastante hipertrofiadas. Marianne é tão magrinha que dá aflição. E está aí, firme e forte fazendo esse Caminho, que não tem nada de fácil. O albergue onde fiquei ontem era bem fraquinho. E a dona não fazia nenhuma questão de ser simpática, o que é bem estranho para os padrões do Caminho. O lugar era simples, porém limpo, e consegui dormir direitinho. Só que não tinha internet, e dormi preocupada de vocês estarem agoniados sem notícias minhas. Por isso, acordei mais cedo do que o costume, tomei o café frugalíssimo desse albergue (também, acho que por cinco euros eu não devia esperar mais) e botei o pé da estrada. Eram oito horas da manhã e o dia estava apenas raiando. Logo após cruzar a minúscula cidade, de apenas uma rua, me voltei para trás e o céu estava a coisa mais linda, em tons de amarelo, rosa e um suave alaranjado. Até parecia um pôr-do-sol.
Caminhei sozinha, entre colinas arenosas, e em cerca de uma hora cheguei a Belorado. A essa altura o sol já iluminava tudo e o céu estava vestido de um azul resplandecente, e de alguns fiapos de nuvens. Belorado é uma cidadezinha de verdade, ao contrário dos vilarejos que cruzei ontem e hoje. Tem uma grande praça central, com um coreto e uma Igreja (obviamente), e um comércio razoável. Quase tudo ainda estava fechado, mas pude comprar algumas coisas para comer ao longo do dia, num mercadinho dessa praça. Não deu foi para visitar as duas Igrejas da cidade, que ainda estavam fechadas. Uma delas parece estar colada a uma parede de pedra arenosa. Do lado direito dessa Igreja, avistei uma casa inteiramente encravada na rocha. A gente só vê as janelas (com cortininhas de pano) e a porta em madeira. E parece ser uma casa renovada. Certamente tem alguém morando nela.
Caminhei pelas ruazinhas estreitas até chegar à saída de Belorado, onde as construções já são contemporâneas, e onde vi um senhorzinho assando pimentões num fogareiro a lenha. Esses pimentões assados são muito comuns aqui no norte da Espanha e são divinos! Cruzei um parque, uma ponte e segui caminhando em meio a campos que parecem estar arados, prontos para a semeadura. Ontem e hoje cruzei vastas extensões desse cenário meio agreste, com campos pelados, nessa cor ocre, nos dois lados do caminho. Aqui e acolá, uma plantação de girassol quebrava a monotonia do ocre, adicionando notas de um amarelo esmaecido e de marrom escuro (os girassóis estão bem secos). Às vezes, ao longe, a gente vê a mancha verde de uma colina coberta por algum remanescente de bosque. Parece que os campos que agora estão pelados são plantações de trigo. Devo dizer que desde ontem deixei a Província de Rioja, e estou caminhando pela Província de Burgos.
Mais uma hora de caminhada e cheguei a Tosantos. O Caminho passa quase que por fora do povoado. É preciso entrar por uma ruazinha e cruzar uma rodovia, para chegar à Igrejinha local e ter acesso a uma Ermida que fica no alto de um monte arenoso. Por trás da Igreja (também fechada), há um albergue com café, de onde pude, finalmente, mandar um whatsapp para vocês, para avisar que estava tudo bem. Espero que mamãe não tenha se inquietado muito. De todo modo, esse episódio é bom pra gente ver que nem sempre eu vou poder dar notícias diárias.
Tomei um chá nesse albergue, cujo dono era uma simpatia, e subi a colina que leva à Ermida, de onde há uma bela vista do vale com o povoado de Tosanto. A Ermida está encravada na pedra. É uma formação parecida com a de Nájera, só que em vez da areia avermelhada, é uma rocha também cor de ocre. E está disposta em camadas finas, como se alguém tivesse empilhado folhas de pedra. A gente vê com tanta nitidez as camadas finas de rocha umas sobre as outras! Muito bonito.
Desci a colina e segui meu caminho no mesmo cenário que acabo de te descrever. Cruzei dois minúsculos povoados (Villambistia e Espinosa del Camino), até que cheguei à entrada de Villafranca Montes de Oca. Pouco antes da cidadezinha há vários campos de girassóis e um formoso riachozinho. Villafranca está à beira da rodovia e tem basicamente uma rua. O albergue San Anton Abad fica ao final dessa rua, numa colinazinha. Na frente está um hotel três estrelas e atrás, o albergue. Ao lado tem esse gramado delicioso, onde há pouco tirei uma soneca, aproveitando o solzinho gostoso de fim de tarde, e de onde te escrevo agora.
Como cheguei cedo, e tem uma boa estrutura nesse albergue, pude aproveitar para lavar toda a minha roupa (que é pouquíssima), incluindo casaco e toalha. Todos os dias eu lavo minha blusa e calcinha, no chuveiro mesmo, enquanto tomo banho. Dia sim, dia não, lavo um dos pares de meia, e a cada três dias tento lavar uma das duas calças que levo comigo. Como não dá tempo de secar da noite pro dia, penduro a roupa molhada na mochila e deixo que seque ao longo da caminhada. Mas casaco e toalha é mais difícil lavar. Por isso, adorei a possibilidade de lavar tudo com mais calma, num tanque de lavar roupa! E tendo chegado cedo, com o sol e o vento que estão fazendo, vai dar pra secar tudo ainda hoje. Só vou registrar que após caminhar 17 kms, ficar de pé até pra lavar roupa é custoso. Meus pés ficam muito cansados. Acho que ainda não se acostumaram inteiramente com o rojão.
Bom, Niquinha, vou dar uma saidinha para comprar algo pro jantar. Mais tarde te escrevo sobre o dia de ontem.
Beijos cheios de saudade,
Léia

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: Visitando os Mosteiros de Nájera e San Millán


23/09/15

Oi, Niquinha,
Óia eu aqui outra vez!
Então, quero te contar agora sobre o belo dia de ontem.
Como você já sabe, de manhã cedo fui com Danielle aos Correios e depois de tomar um café com ela, fui visitar os monumentos religiosos de Nájera. A Igreja de Santa Elena (sec. XVII), que é parte do Convento das Irmãs Clarissas, não tem nada de muito especial. A Igreja da Santa Cruz (sec. VII) eu achei propriamente feia e sombria. Já o Mosteiro de Santa María La Real é bem bonito e vale demais a visita. A edificação é de princípios do século VXI e conserva muito de seus traços e peças originais. A Igreja é gótica e tem um altar principal barroco rebuscadíssimo, com uma particularidade: nas laterais tem imagens dos reis que fundaram o Mosteiro. Segundo a lenda, o rei Don García Sánchez III saiu um dia para caçar e, seguindo seu falcão, chegou a uma caverna onde estava uma imagem de Nossa Senhora, um sino, uma lâmpada e um vaso com açucenas. Logo após, esse rei venceu uma batalha contra os muçulmanos e decidiu erguer o Mosteiro em agradecimento à Virgem. Por isso é um Mosteiro Real e abriga tumbas de vários reis. Essas tumbas ficam na parte posterior da Igreja, que é um Mausoléu. E no fundo do Mausoléu está a cova onde supostamente o rei encontrou a Imagem de Nossa Senhora. Uma estátua em madeira, do século XIV, reproduz a Imagem de Nossa Senhora da Rosa, que é semelhante às Virgens sentadas que venho te descrevendo, só que ela tem uma rosa na mão.
Só para esclarecer, os fundos da Igreja efetivamente encontram uma grande formação arenosa que se situa nos fundos de Nájera. É uma pequena montanha de algum tipo de arenito (espero não estar usando uma expressão muito equivocada), que se dispõe em camadas, de uma cor meio avermelhada, e cheia de covas, nas quais vivem muitas cegonhas. O Mosteiro foi construído de encontro a essa formação e a cova mítica está exposta à visitação.
O claustro do Mosteiro é igualmente gótico, com belos portais rendilhados, esculpidos em pedra, em torno ao pátio, com sua fonte típica dessas construções. Agora, o que eu mais gostei nesse Mosteiro foi o coro, onde os monges cantavam e rezavam diariamente. Tive a sorte de chegar justo na hora em que ia ter uma visita guiada ao coro, que fica suspenso. É um belo trabalho em madeira esculpida, de princípios do século XVI, com uma pintura ao fundo, onde estão representadas cenas com os reis e sua corte. Os assentos são uma preciosidade. São retráteis e como os monges deviam cantar de pé, os assentos têm umas carinhas esculpidas na parte inferior, de modo que quando estavam fechados, ainda assim ofereciam uma espécie de apoio para que os monges pudessem apoia os traseiros e descansar pernas e pés. Esses apoios se chamam misericórdias. O mais interessante é que as carinhas são alegóricas. Algumas representam pecados capitais, a morte, lobo em pele de cordeiro... muito interessante.
Após a visita a esse Mosteiro, me dirigi ao albergue, com a ideia de usar o código de entrada (que Maitê tinha me dado) e preparar meu almoço, antes de tomar o ônibus para San Millán de la Cogolla. Para meu azar, quando me aproximei da porta, uma peregrina veio a meu encontro, me dizendo logo que o albergue só abria a uma hora e que eles eram muito severos com o horário. Outros peregrinos aguardavam à porta. Eu não quis tumultuar o processo, acusando o meu privilégio de saber a senha, então, passei batida e fui para o parque à beira do rio, e fiz um lanche com o que eu tinha na mochilinha: damascos frescos, iogurte e croissants. Deixaria para comer minha salada quando chegasse de San Millán.
Comi e me dirigi à estação de ônibus. De manhã eu tinha passado na Oficina de turismo e tomado todas as informações, além de ter feito a reserva para a visita a Suso. Fiquei esperando o ônibus na praça e acompanhando uma conversa saborosa entre uma senhorinha e um senhor ainda mais idoso que ela. Eles só se conheciam de vista, mas entabularam um animado bate-papo sobre personagens da cidadezinha onde a senhora mora. E que fulano morreu, sicrano casou-se com beltrana, porque o filho isso, a filha aquilo... Típica conversa de gente de Interior, onde todo mundo se conhece e alguém sempre é filho de um fulano ou pai de sicrano. O ônibus chegou com uns quinze minutos de atraso, que ninguém está na Inglaterra. Subi junto com a senhorinha e fomos conversando as duas.
A viagem até San Millán leva uma meia hora, porque o ônibus vai entrando em vários povoados. Fui desfrutando da paisagem graciosa. Subimos uma serra e seguimos por uma estradinha cheia de curvas, em meio a colinas e vales bem verdinhos. Super bucólico. Não demorou muito, cheguei a San Millán. O motorista me perguntou se eu ia voltar, e diante da minha resposta afirmativa, me explicou direitinho onde eu devia pegar o ônibus de volta e me escreveu num papelzinho, a que horas eu deveria estar na parada. Achei tão gentil da parte dele.
A parada do ônibus fica na entrada da cidade. Precisei caminhar toda a rua principal (deve haver umas duas paralelas) até chegar ao Mosteiro de Yuso. De repente, após uma curva, a enorme construção se apresenta diante dos seus olhos, numa parte mais baixa, ao pé de uma ladeira. O Mosteiro estava fechado, como tudo o mais na cidade, porque eram duas e pouca da tarde, hora da siesta. Fiquei sentadinha no café do hotel de charme que ocupa uma parte do Mosteiro, escrevendo para você. Às três e meia me dirigi à bilheteria e comprei meu tíquete para a visita ao Mosteiro de Suso. Os nomes dos dois Mosteiros vêm do latim e significam acima (Suso) e abaixo (Yuso). Logo, Suso é o mosteiro que fica no alto da montanha, enquanto Yuso fica no vale em que também se situa o povoado de San Millán.
San Millán foi um ermitão que viveu no século V, nas covas acima da cidadezinha. É o mesmo tipo de formação arenosa que se vê em Nájera. Pois ele viveu ali e arregimentou seguidores, que viviam com ele nas covas e continuaram a viver ali após sua morte. As covas se converteram em ermida, e no século X começou a ser erguido um Mosteiro. Esse mosteiro é dos raros na Espanha que têm arquitetura moçárabe, porque nessa época a Espanha estava ocupada pelos muçulmanos. É emocionante de ver. Os arcos têm a forma típica das construções árabes. E nas pedras da entrada se encontram “grafites” também dos séculos X e XI. Ao fundo, estão as covas onde, em princípio, viveram San Millán e seus discípulos. Embora tenha sido enterrado ali, seus restos mortais foram transferidos para Yuso por um rei. Diz a lenda que o rei determinou que os restos do Santo fossem transportados a Nájera, só que os bois que puxavam o carro pararam na altura de Yuso e se recusaram a seguir adiante.  
Ainda tem mais um detalhe, os dois Mosteiros foram importantes centros de copismo. Códigos e livros de cantos eram copiados pelos monges, e as primeiras palavras em castelhano e em basco de que se tem registro estão em códices copiados em Suso. Só que como o Mosteiro está vazio (o edifício, hoje, é apenas para visitação), esses documentos foram levados para Yuso, que por razões óbvias abriga um centro de estudos de linguística espanhola.
Em Suso conheci Don Paco, um médico holista, formado em medicina chinesa, que me ensinou umas técnicas de massagem para aliviar as dores nos pés, joelho e costas. Adorei a conversa com ele e já comecei a praticar as técnicas. Não custa tentar! Foi ele também a primeira pessoa que, nesses últimos dois dias, me falou em cura interior. Do nada ele me disse que preciso me dedicar a um processo de cura que passa pelo perdão. Ele me disse que minhas dores estão associadas a isso. Eis um assunto para a gente conversar com mais calma. Farei isso em outra ocasião.
Após a visita a Suso, descemos a montanha no micro-ônibus e fomos fazer a visita de Yuso. Esse já é um Mosteiro bem mais recente. Data dos séculos XVI e XVII. Foi construído pelos Beneditinos, embora hoje seja habitado pelos Agostinhos. De fora, o prédio impressiona pelo seu tamanho. Dentro, impressiona pela opulência da Igreja, com enormes portas trabalhadas, com muito ouro e pinturas maneiristas. O altar principal até que é sóbrio, quando comparado com as talhas barrocas. No meio, uma enorme pintura representando San Millán numa batalha contra os mouros. Curiosidade: ele monta um unicórnio e empunha uma espada de fogo. Ao fundo da nave principal, dois coros, um superior e um inferior. O Inferior é luxuoso e tem uma enorme peça de madeira no meio, giratória, onde se punham os livros de cânticos. Os dois coros são em madeira entalhada, e têm as já mencionadas misericórdias. Separando o coro da parte posterior da Igreja, uma enorme porta dourada, belo trabalho em madeira, encimada por um grande círculo vazado, por onde passa a luz que entra pela rosácea central da parede. Duas vezes no ano a luz que atravessa a rosácea coincide exatamente com o círculo desse portal e ilumina o centro do altar. Um barato, né?
A sacristia do Mosteiro também é interessante, com suas paredes e tetos decorados com uma pintura rebuscada, acho que neoclássica. Porém, o que eu mais gostei dessa visita foi a biblioteca onde os monges guardavam os livros de cânticos e missários. Trata-se de um compartimento embutido na parede, com um sistema sofisticado de ventilação, para evitar o mofo, onde a gente vê enoooormes livros, que de tão grandes e pesados tinham de ser transportados por quatro monges. Podemos ver os livros, encadernados em couro! Uma coisa preciosa!
Após a visita ao Mosteiro de Yuso, como eu ainda tinha quase duas horas até o horário do ônibus, decidi subir a pé até Suso, por uma estradinha que segue pelo meio da montanha. É uma caminhada de menos de dois quilômetros, muito agradável. Nessa subida pude ter uma vista ainda mais encantadora de Suso. Visto do lado de fora, encravado no coração da montanha, em meio à vegetação (que começa a adquirir cores alaranjadas do outono) e colado à parede de areia, o Mosteiro de Suso é mesmo uma graça. A gente se sente quase como se estivesse em tempos medievais. Pensei muito em vocês, em como vocês teriam adorado visitar esse lugar, papai e Quel mais particularmente.
Desci por uma outra estradinha, que segue rente à pista de asfalto, tomei a rua principal e segui até o ponto de ônibus. Havia um senhorzinho, de oitenta e cinco anos, sentado no banco, descansando de sua caminhada diária. Ele tinha uns dois dentes na arcada inferior, e me custava um pouco compreender o que dizia. Ainda assim, ficamos conversando, até que chegou uma senhorinha do povoado e começou a conversar conosco. O senhorzinho se mudou pra uma vila próxima há poucos meses. Os dois se conheciam de vista. E de novo testemunhei uma boa “conversa de comadres” de Interior. Ambos verificando os conhecidos em comuns, falando das famílias das redondezas. Muito pitoresco.
Peguei meu ônibus e fui apreciando um belíssimo pôr-do-sol. Estava faminta quando cheguei a Nájera. Ao voltar para o albergue, fiz logo minha saladinha, e enquanto jantava conversei com um rapaz mexicano, chamado Fernando e uma moça alemã, se não me engano. Fernando está com uma tendinite no pé e também tirou o dia para repousar, em Nájera. Às dez horas, toque de recolher. Tomei banho e fui pro meu quarto, com apenas três pessoas. O casal canadense, que apenas tinha cumprimentado mais cedo, já estava dormindo. Mais uma vez, minha lanterninha foi providencial. Dormi uma boa noite de sono. E o resto você já sabe.
Amanhã tem mais. Fica com Deus, Minha Irmã!
Saudades muitas de todos.
Beijos mil,

Léia

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 13


23/09/15

Boa noite, Nica!
Estou em Cirueña, um povoadozinho de nada, mas numa pousadinha bem simpática. Tenho sido tão abençoada com minhas hospedagens. Com raras exceções, tenho ficado em lugares bem organizadinhos, e com hospedeiros simpáticos e acolhedores. É o caso de Amparo, a dona do Albergue Turístico Victoria. Esse albergue é na casa dela mesmo. Então, não tem essas regras de hora de dormir. E tem uma grande mesa de jantar, com cadeiras confortáveis, onde é mais cômodo escrever. Acabamos de jantar faz pouco. Um grande grupo de peregrinos: alemães, canadenses, italianos, espanhóis e eu. Foi um jantar bem animado. E a comidinha, caseira, saborosa.
Vou começar te relatando o dia de hoje, que foi bem tranquilo. Saí de Nájera umas 9:30 da manhã. O dia estava nublado, com toda cara de chuva. E fazia um friozinho bom. Comecei minha caminhada sozinha. Pra variar, fui a última a deixar o albergue. A saída de Nájera é bem mais agradável que a entrada. Mais ordenada, ainda que as casas sejam de feição contemporânea. Na realidade, poucos metros após a parte histórica, se chega ao fim da área urbana. Começa, então, uma estradinha que segue ao lado das formações arenosas que parecem ser típicas dessa região. Fui seguindo as setas pintadas nessas rochas. No início da caminhada a paisagem é um pouco árida. Além desses morros pelados e cor de ferrugem, passei por alguns descampados, onde não havia nenhum tipo de plantação. Porém, logo adiante reapareceram os parreirais e surgiu uma bela cadeia montanhosa no horizonte. As montanhas, que nem parecem ser muito altas, estavam envoltas em neblina, formando uma bela paisagem.
Ventou muuuuito hoje, quase o caminho todo. Um vento gelado. Mesmo com o casaco, senti frio. Solucionei meu problema colocando minha capa de chuva, que imediatamente cortou o efeito do vento. Quero dizer, do frio, porque o vento era tão forte que tornou a caminhada mais pesada, especialmente quando dava de frente, criando uma força contrária ao meu movimento. Também choveu várias vezes ao longo do dia. Chuva fininha, contudo, que a capa resolveu muito bem. Cheguei ao meu destino sequinha. Caminhei mais uma vez em meio a parreirais, e também junto a campos com plantação de alguma verdura que não consegui identificar. Só sei que formavam um bonito tapete verde. Começou a vindima aqui na Rioja. Pequenas carretinhas carregam as uvas. As estradas entre os parreirais, vazias até anteontem, se mostram mais movimentadas.
Cruzei um povoado minúsculo, chamado Azofra (não consegui visitar a Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, que estava fechada) e segui adiante, até Cirueña, para onde havia despachado minha mochila. Decidi fazer uma caminhada mais curta hoje. Apenas 15kms e meio. Era caminhada de subida, então, achei prudente poupar as articulações e as costas. Creio que meu pé está melhorando. E também não senti o joelho hoje. A única coisa que continua me aperreando são as costas, na região dorsal. Ah! Tenho sentido uma sensibilidade ao doce no meu último molar inferior esquerdo. Parece que caiu um pedacinho de obturação. Talvez seja melhor procurar um dentista em Burgos, não? Tô com medo de acaba tendo dor de dente, se não cuidar logo. Burgos é a próxima grande cidade no Caminho. Pela minha programação, devo chegar por lá em quatro dias.
Na estrada, hoje, reencontrei Terry, a californiana com quem dividi dormitório em Navarrete, lembra? Ela está com dores no joelho e, como eu, caminha devagar. Tivemos uma conversa bem interessante. Terry está fazendo o Caminho em busca de uma maior conexão com Deus e com ela mesma. Caminha em busca de calma (para sair da rotina estressante) e de bênçãos que crê estarem reservadas para ela.
Nessa conversa, algo interessante aconteceu. Enquanto eu caminhava sozinha, pensando em como organizar melhor meu tempo para meditar mais, ler e crescer na Fé, algo dentro de mim falou: Esse não é um tempo de aprendizagem, mas de cura. Pois quando eu estava conversando com Terry e falando sobre minha própria motivação para fazer o Caminho, ela me disse: Muito bem. E você também vai curar a você mesma. É a terceira vez, em dois dias, que esse tema da minha própria cura aparece. É engraçado porque a gente normalmente não pensa que precisa se curar espiritual e emocionalmente. E, no entanto, todos nós temos nossas cicatrizes de alma. Há sempre eventos e pessoas que nos feriram, mesmo que involuntariamente, e que deixaram marcas no nosso inconsciente que precisam ser tratadas. Agora me parece claro que devo usar esse tempo de caminhada para analisar, des-cobrir (levantar o véu que cobre) essas feridas e tratá-las. Normalmente, isso envolve perdoar outros e se perdoar pelos próprios erros. É o que pretendo fazer de agora em diante.
Bom, Cirueña é uma cidade estranha. O povoadozinho, como te disse, é minúsculo e até meio feioso. A Igreja (Santo André) não guarda nenhum traço de sua construção original, pelo menos no exterior. Estava fechada e não consegui visitá-la. A parte esquisita está antes do povoado. Há um belo campo de golfe, seguido de vários condomínios (apartamentos e casas), quase totalmente vazios. Parece uma cidade de faroeste. Terry até comentou que deviam trazer os refugiados da Síria pra cá. Placas de Vende-se estão por toda parte. É de dar dó ver uma área residencial tão extensa, meio que abandonada. Indaguei Amparo (a dona da pousada a respeito) e ela me disse que são residências de veraneio, e que no mês de agosto a cidade fica mais movimentada. Ainda assim, há mesmo muitos apartamentos vazios, por causa da crise financeira que vem afetando a Espanha nos últimos anos.
Na entrada do povoado, me despedi de Terry e segui para o meu albergue. Estou no quarto com um casal canadense simpaticíssimo. Eles têm a minha idade e já tem filhos de 22 e 18 anos. Agora que os filhos estão grandes, resolveram tirar um tempo para viajar. Estão fazendo o Caminho para se redescobrirem como pessoas e como casal. Adorei. Finalmente passei a encontrar mais pessoas que estão fazendo o Caminho com alguma motivação de natureza espiritual ou existencial. No jantar, também conheci um casal alemão, na faixa dos 50, que está fazendo o Caminho para rezar pelos seus entes queridos e pedir graças. Achei tão bonitinho quando o marido, em certo momento, disse que espera que quando eles voltem para a Alemanha encontrem as coisas diferentes, transformadas pela Graça divina. Eles estão caminhando há dois meses. Começaram na Alemanha!
Essas foram as novidades de hoje. Para que não fique uma carta tão comprida, vou encerrar por aqui e te escrever uma nova carta sobre o maravilhoso dia de ontem.
Beijocas, Niquinha!

Léia

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 12


22/09/15

Boa Tarde, Nica!
Te escrevo do Mosteiro de Yuso, em San Millán de la Cogolla. Decidi ficar um dia a mais em Nájera, para conhecer dois mosteiros que são Patrimônio da Humanidade (Unesco). Peguei um ônibus em Nájera e vim até essa cidadezinha, no meio das montanhas, para visitar esses monumentos. Como toda boa cidadezinha espanhola, neste exato momento está tudo fechado para a siesta. Desci do ônibus (às 14h) e caminhei pela rua principal, obviamente deserta. Estou aqui esperando que a recepção reabra, para subir até o Mosteiro de Suso. Enquanto espero, vou te contar como foi o dia de ontem.
Dormi muito bem em Navarrete, no albergue de um alemão radicado na Espanha, que como muitas pessoas, fez o Caminho e se encantou com ele. Não sei como, mas o albergue estava quase vazio. Éramos apenas três pessoas no quarto: eu, uma senhora californiana chamada Terry, e um senhor alemão. Apesar das poucas pessoas, achei que não ia conseguir dormir direito, porque quando saí pra te escrever, na noite anterior, esse senhor alemão (bem redondinho), já roncava em altíssimo e bom som. Pensei: Tô ferrada. Eu tenho dormido com protetores auriculares, mas essa criatura roncava tão alto que meus protetores teriam sido inúteis. Bem, como que por milagre, quando voltei ao quarto, ele tinha parado de roncar. Dormi na mais santa paz. E o que é melhor: não fui despertada pelo barulho de ninguém se arrumando. Pela primeira vez, acordei com meu despertador, às sete da manhã. E fui a primeira a acordar! Cumpri meu ritual de cuidados com os pés e alongamento, tomei meu café na deliciosa varanda do albergue, preparei meu envelope para despachar a mochila e me dirigi à Igreja de Santa María de la Asunción.
Pelo interior se vê bem que a Igreja é uma construção gótica, de teto altíssimo, com delicado rendilhado e as típicas arcadas em forma de ogiva. Já a fachada está descaracterizada. Certamente sofreu intervenções posteriores. O altar principal (que em espanhol se chama retábulo) é barroco, com todo o exagero característico, todo em ouro, e com muitas imagens. Nessa Igreja eu gostei mesmo foi da Imagem central, de Nossa Senhora sentadinha, no mesmo estilo da Imagem que te descrevi ontem, mais alongada, e com uma espécie de véu debaixo do manto. Muito linda. Também achei belo o órgão com duas enormes pinturas laterais. Aproveitei a visita para fazer minhas orações, antes de começar a caminhada do dia.
A saída de Navarrete não tem nenhum charme. Aliás, não achei muita graça na cidade, que tem um certo ar de descuido. Muitas casas abandonadas e grossos fios de eletricidade expostos nas paredes das edificações. Quando a gente sai do centro antigo, o caminho segue rente à autopista, até depois de uma Ermida (Santa María de Jesús). Ao lado dela há um cemitério com um belo pórtico do século XII. Passado o cemitério, seguimos por uma estradinha toda ladeada por parreirais. Ao fundo, uma pequena cadeia montanhosa. E do lado direito, a certa distância, uma bonita formação rochosa, achatada no topo, como um platô.
Quando saí de Navarrete, fazia um friozinho bom, mas o céu estava claro, sem nuvens no céu. Obviamente, ao longo do dia, o calor foi aumentando, e quando cheguei a Nájera, às 14:30h, posso dizer que estava um calor de cozinhar o cocoruto. Em todo caso, prefiro o calor ao frio. E com o sol, o mundo fica mais vivo e mais colorido. Mesmo com o cansaço, desfrutei bastante da beleza dos caminhos de ontem. O contraste entre vales e colinas é muito bonito, tanto mais que estava tudo verdinho. Como te disse, andamos o tempo todo pelo meio de parreirais. La Rioja (província em que estou agora), produz o vinho mais famoso da Espanha (os que provei até agora não me pareceram grandes coisas, para ser sincera). Por duas vezes, peguei cachos de uva caídos aos pés das parreiras. Dulcíssimas as uvas, tanto que deixam as mãos pegajosas.
Entre Navarrete e Nájera há apenas duas cidadezinhas. Passei ao largo da primeira, Sostes, e parei na segunda, Ventosa, para tomar um chá (venci meu vício de café!!!). Sentada nas mesinhas do lado de fora, apreciando a vista do vale ao fundo, conheci Daniella, uma jovem alemã, que perdeu a mãe há um ano, e está fazendo o Caminho em busca de algum tipo de resposta ou conforto. Ela me disse que não acredita “no Deus da Bíblia”, mas em alguma força maior. Fiquei pensando em como já conheci muitas pessoas, na vida, que me disseram a mesma coisa. Eis algo que mereceria reflexão por parte das Igrejas cristãs: por que o Deus “da Bíblia” não fala ao coração de tantas pessoas? Bom, Daniella estava muito aflita, ansiosa com os gatos que deixou em casa sozinhos, com o joelho que começou a doer, com o Caminho de modo geral. Conversamos bastante, e acho que ajudei a acalmá-la. Disse a ela, entre outras coisas, que ela peça auxílio e confie nessa “força maior” que ela consegue sentir que existe. Os caminhos para Deus são muitos. Religião alguma jamais deve ser um empecilho para que alguém chegue a Deus.
Daniella ia dormir na pequena Ventosa. Retomei meu caminho. Tentei visitar a Igrejinha da cidade, que, infelizmente, estava fechada. Toda cidadezinha ao longo do Caminho, por pequena que seja, tem uma Igrejinha. Mesmo naquelas que apenas vislumbramos ao longe, sem atravessá-las, se pode avistar a torre graciosa de alguma Igreja. Saindo de Ventosa, o Caminho segue pelo meio das videiras. Em Ventosa, tentei ver algo chamado 1 Km de Arte, e só consegui observar duas obras: o muro de uma casinha perto da Igreja e um quadro que se encontrava postado junto a uma videira, poucos metros após a saída da cidade – o que não deixa de causar um efeito curioso.
A segunda parte da jornada de ontem foi um pouco cansativa, por causa do sol, que, como eu lhe disse, estava inclemente. Em compensação, a paisagem é bem bonita. Como eu já registrei, caminhei por entre vales e colinas, quase sempre em meio ao verde dos parreirais. Caminhando sozinha, fui rezando por todo mundo. Em certo momento, já perto de Nájera, ao pé de uma pontezinha que cruza um belo riacho, um senhor tocava gaita. Aos seus pés, uma cesta com pedrinhas esculpidas em forma de coração. E do outro lado da ponte, um coração de pedras estava desenhado no chão, como um mimo para os peregrinos. Achei tão delicado! Mais alguns quilômetros e cheguei a Nájera.
A entrada de Nájera, como no caso de muitas cidades que tenho cruzado, é bem feinha. Prédios de construção recente, sem nenhum charme, denunciam o inevitável processo de adensamento urbano. Cheguei às 14:30h e estava tudo fechado, para a siesta. Por sorte, ainda peguei um mercadinho de portas abertas e comprei alguns itens para fazer uma salada e poder almoçar no albergue. Nájera começa a ficar interessante quanto se chega a uma ponte que cruza o rio Najerilla. Do outro lado da ponte, à margem do rio, um belo e agradável parque se estende, com banquinhos e árvores. Também é ali que começa a parte antiga da cidade, com suas velhas casinhas ocres, suas ruas estreitas e suas Igrejas.
Em frente ao parque encontrei logo o albergue onde queria ficar. Tinha acabado de lotar. Só restava um quarto duplo, a 40 euros. Era muito pra mim. Desolada, porque o albergue parecia excelente, e eu vinha rezando pra encontrar lugar nele, saí andando à procura de outra opção. Não há muitos albergues em Nájera, mas há hotéis. Rodei e não achei nada que parecesse ter uma relação custo-benefíco mais razoável que o primeiro. Estava exausta a essa altura e decidi arriscar o quarto duplo, na esperança de que aparecesse alguma peregrina disposta a dividir a cama de casal comigo. Se não aparecesse ninguém, pensei, teria o luxo de uma noite de hotel, praticamente. Pelo menos poderia dormir bem tranquila, sem ninguém me acordando às seis da manhã. Voltei ao Puerta de Nájera, paguei os 40 euros, me instalei no meu quarto, tomei banho e desci para preparar meu almoço e matar minha fome.
Quando estava almoçando, pensava no meu quarto duplo e pedia a Deus: Só me mande alguém para dividir o quarto comigo, se for uma pessoa muito legal, ou por alguma boa razão, se não, vou aproveitar esse luxo como um merecido mimo. Estava nesse estado de espírito, quando chegou outra Daniella, uma moça holandesa que dormiu no mesmo dormitório que eu, em Viana. Ela estava naquele grande grupo que já mencionei, com o rapaz das Bermudas e vários jovens americanos. Bem, Daniella tinha vindo buscar uma caixa que ela havia despachado pro meu albergue. Ela se sentou ao meu lado, atarantada, e começou a despejar sua ansiedade. Não queria ficar no albergue municipal, onde estavam os outros, porque lhe pareceu precaríssimo. Além disso, já estava meio cansada da balbúrdia do grupo, e sentia que precisava caminhar um pouco sozinha, mas se sentia culpada de abandonar os amigos, feitos desde os primeiros dias de Caminho. Enquanto ela falava, meu coração me disse: é ela que vai partilhar o quarto com você. Então, eu lhe fiz a proposta. Daniella ficou meio surpresa e hesitou, presa ao sentimento de culpa por deixar os amigos. Mas após alguns instantes, ela me disse que topava, sim. Foi buscar sua bagagem e se instalou no quarto comigo. Como eu tinha comida sobrando, lhe ofereci o almoço. Ela ficou muito feliz. Se sentiu amparada, creio. E eu agradeci muito a Deus a possibilidade de ser o instrumento do auxílio de que ela estava precisando exatamente naquele momento. E, claaaro, também agradeci pelos vinte euros economizados!
O albergue Puerta de Nájera é uma gracinha. Todo novinho, um comedor e uma salinha de estar bem agradáveis. Banheiros limpos e organizados (até suporte para xampu e sabonete tem!). Pensei que seria bom seguir seu conselho de descansar um pouco minhas costas, e também meu joelho e meu pé, e decidi ficar ali mais uma noite. Além de tudo, a dona, Maitê, é um verdadeiro amor! Me tratou com tanto carinho. Perguntei se ela tinha uma cama disponível num dos quartos coletivos, para mais uma noite, e ela me disse que sim. E me sugeriu que aproveitasse o dia de descanso para visitar dois Mosteiros próximos, que são Patrimônio da Humanidade. Adorei a sugestão. Já era tarde da noite, mas eu ainda fiquei mais um pouquinho pelo comedor, escrevendo e conversando com uns argentinos muito simpáticos, como acho que lhe mencionei ontem. Logo após as dez da noite, horário do “toque de recolher” em muitos albergues, eu e Daniella fomos para o quarto. A noite de sono foi tranquila, mas ao contrário das minhas expectativas, acordei super cedo, com o barulho dos quartos vizinhos. Nos levantamos, cumpri todo meu ritual de organização, ofereci frutas e iogurte a Daniella. Comemos e fui com ela aos Correios, porque ela precisava localizar uma encomenda que lhe enviaram da Holanda, e ela não fala espanhol. Após resolvermos a vida dela, ela me convidou para um café. Tomei um leitinho quente com croissant e nos despedimos. Ela estava agradecidíssima, dizendo que eu tinha sido um anjo enviado por Deus. Eu lhe respondi que Deus sempre toma conta da gente, e que essa ajuda normalmente chega por meio de outras pessoas. Todos nós podemos ser “anjos” de Deus. É só a gente se disponibilizar para isso. Por sinal que na porta desse café encontrei a outra Daniella, que estava chegando em Nájera acompanhada de duas mulheres maduras, que pareciam estar “tomando conta” dela. Certamente são os anjos de que ela andava precisando.
Após me despedir da Daniella holandesa, fui visitar um Convento e um Mosteiro em Nájera mesmo, fiz um lanche no parque à beira do rio e no início da tarde peguei o ônibus que me trouxe até San Millán, onde vou visitar esses Patrimônios da Humanidade. Amanhã te conto os detalhes dessa aventura de hoje. Agora, tenho de ir pegar minhas entradas pros Monastérios.
Até breve, Niquinha!
Beijos mil,
Léia

 Obs: o sinal de internet ontem à noite estava péssimo, e hoje de manhã também, por isso, só tô conseguindo fazer essa postagem agora (23/09)