sábado, 31 de março de 2012

A propósito de um belo romance: Traduzindo Hannah


Resolvi que meu primeiro texto sobre literatura deveria ser sobre uma obra cujas repercussões na minha vida têm sido concretas, profundas, duradouras. Falarei, então, do meu encantamento com o romance Traduzindo Hannah, de Ronaldo Wrobel. Trata-se de um livro que, sem referências, eu dificilmente adquiriria numa livraria. No entanto, ao assistir a uma mesa na Fliporto de 2010, fiquei muito impressionada com o jeito despretensioso do autor, sentado no palco, ao lado de Contardo Calligaris. Foram sobretudo a simplicidade e a ternura de Ronaldo que me deixaram curiosa para lê-lo. Eu sei que a grande literatura tem a ver principalmente com o manejo da palavra, mas estou convicta de uma outra coisa: não há grandes autores sem um olhar sofisticado sobre a condição humana, seja ele generoso ou pessimista. Intuí isso em Ronaldo. De fato, Traduzindo Hannah exibe o talento para o labor sobre a palavra, e conta com um olhar atento e sofisticado sobre o humano. Cheguei ao final do livro tomada de uma profunda comoção.
Traduzindo Hannah tem muitas qualidades. A recomposição histórica primorosa, o enredo fascinante e surpreendente, personagens densas e verossímeis, inclusive na sua implausibilidade, como é o caso de Hannah. Mas, de tudo, o que mais me encantou foi a voz narrativa, muito refinada. Em certo momento do livro, confesso, pensei haver uma irregularidade no texto. Tive a impressão de que a narrativa havia começado mais frouxa e estava ganhando densidade, de que a tessitura do texto ia ficando mais sofisticada e o olhar do narrador também se enriquecia com reflexões mais complexas sobre a condição humana. Achei, então, que essa irregularidade era uma fragilidade do livro. Mas quando cheguei ao final, me dei conta de que esse adensamento do texto -- tanto em termos de conteúdo, como de forma -- é absolutamente coerente com a voz narrativa construída pelo autor. O amadurecimento do texto vai de par com o amadurecimento de Max, personagem a quem a voz narrativa está mais colada, conforme se descobre no final. Isso se pensarmos em uma das "camadas" dessa complexa narração. Porque também imaginei que o provável narrador da história de Max, pelas hesitações que ele mesmo revela, haveria de ir ganhando confiança em seus próprios personagens, deixando-se convencer por eles, à medida em que tentava recriar a narrativa “ouvida” de terceiros.
Enfim, não quero ficar tentando dissecar o romance, porque tenho horror às teorias e análises literárias que roubam aos textos seus encantos e seus mistérios. Mas, para finalizar, não posso deixar de mencionar a mais importante das camadas dessa voz narrativa envolvente, e que só consigo associar ao autor. Refiro-me à concepção de mundo subjacente ao livro. Refiro-me ao olhar generoso e nobre a partir do qual o romance se constrói. Dentre todas as belezas contidas em Traduzindo Hannah é, sem dúvida, a compaixão pelo homem a que mais me toca. E não uso "compaixão" num sentido corriqueiro e banal, como sinônimo de “pena”, refiro-me a um dos mais incríveis dons humanos: nossa capacidade de sentirmos com os outros, de nos irmanarmos com as pessoas mais diferentes de nós mesmos; nossa capacidade de amarmos nossos semelhantes nas suas grandezas e nas suas maiores e mais difíceis imperfeições, compreendendo que todos nós podemos transitar entre o gesto mais sublime e o mais abjeto; nossa capacidade para o amor gratuito, que se esgota no ato de dar-se. Ao pensar sobre essa dimensão de Traduzindo Hannah, me lembrei de um poema de João Cabral que sugere a vista do Recife a partir da janela de um avião que decola; o olhar do eu lírico faz o movimento inverso ao do avião, sai das alturas para enxergar planos cada vez menores, até chegar ao verdadeiro objeto da poesia, e, claro, da literatura: o homem, com seus sofrimentos. Eis o gesto fundamental deste romance, que tanto me comoveu.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Diário de viagem: Manaus, parte 4


Manaus, 29 de janeiro

Finalmente vejo o céu azul sobre a cúpula do Teatro Amazonas. Como a luz faz uma incrível diferença no mundo! O sol torna tudo mais bonito e mais vivo. Foi como se o dia amanhecesse sorrindo.
Depois de trabalhar a manhã inteira no quarto do hotel, dei um pulo numa livraria próxima, que é também editora, Valer. Muitos livros de autores locais. Conheci um poeta, Tenório Telles. Só pra variar, manauara gentilíssimo. Fez-me uma seleção de livros e escreveu-me duas dedicatórias muito ternas. Levei várias de suas indicações. Saí de lá correndo, para encontrar as meninas, que me esperavam para o almoço. No carro mesmo já fui folheando e lendo os livros dos poetas amazonenses. Realmente, Thiago de Mello é o melhor de todos! Um poeta extraordinário. A fama é justíssima. Preciso confessar minha relutância com ele. Sua poesia mais conhecida tem um certo ranço ideológico, creio, e ninguém pode mais com o “Estatuto do Homem. Belo”, mas repetido à exaustão. Para mim, ficou igual ao Bolero de Ravel ou à Primavera, de Vivaldi. A banalização lhes roubou a possibilidade de encantamento. Agora começo a vislumbrar um outro Thiago de Mello.
Almoçamos num restaurante de comida regional, muito fino. Provei, finalmente, o famoso matrinxã, tido como o peixe mais nobre da culinária local. Recheado com a farofa de bolinhas, típica daqui. Simplesmente delicioso! Come-se mesmo muito bem em Manaus. Já vou ganhando os quilinhos de que estava precisada. Depois do almoço fomos andando até o Reservatório do Mocó. O vigilante, uma gracinha de velhinho, nos deixou entrar. Pudemos contemplar a estrutura interna de ferro, obra de engenharia inglesa. A caixa d’água continua funcionando. Comporta mais de 3 milhões de metros cúbicos de água. Tem uma escadinha de ferro, finíssima, toda vazada e muito, muito alta. Através dos degraus se enxerga o céu. Deve dar uma vertigem danada lá do alto. Bem que tentamos, mas o vigilante não nos deixou subir. De repente, o céu começou a desfazer-se em água. Voltamos pra casa debaixo de chuva torrencial.
À noite, quando saímos pra jantar, já não chovia. Uma brisa fresca provocou-me frio! Frio nas ruas de Manaus! E não fui só eu a sentir frio. Vivi estava de casaco. Ordinariamente sente-se muito frio em Manaus, pois onde se chega as pessoas estão com os ares condicionados em temperaturas siberianas. Na rua é que é surpreendente. Segundo soube, entre agosto e novembro o calor chega aos quarenta e poucos graus. Sem vento. O comentário é que nem o diabo aguenta.
No caminho da soparia, há uma esquina que é point de prostituição de travestis. Passamos no meio deles, ontem e hoje. Cumprimentei-os com um “boa noite”, nas duas ocasiões. Hoje, um deles, impressionado com o fato de eu me dirigir a eles, comentou: “Mulher fina a gente conhece de longe”. Entristece-me pensar que um gesto tão óbvio e simples, de mero respeito por um igual, tenha tanto valor precisamente porque eles devem viver um cotidiano de desprezo e invisibilidade.
Havia espetáculo no Teatro Amazonas. Lá estavam as infames luzinhas azuis piscando....

segunda-feira, 26 de março de 2012

Mulheres do século XXI: independentes e frustradas


Uma constatação se impõe aos olhos de qualquer observador mais atento: nós, mulheres do século XXI, independentes e bem sucedidas, aqui estamos, frustradas, insatisfeitas e solitárias (às vezes mesmo quando estamos em uma relação). Já há, inclusive, explicações sociológicas e psicológicas disponíveis sobre tal fenômeno. No entanto, a verdade nua e crua é que entender as causas da infelicidade feminina não têm surtido nenhum efeito prático. Tudo bem: as mulheres vivenciam duplas ou triplas jornadas, estão mais estressadas, têm mais infartos, sofrem mais de câncer e de depressão que suas avós e bisavós. Vivem frustradas porque seus papéis sociais sofreram uma verdadeira Revolução Francesa e os homens não acompanharam essas mudanças. Resultado, impossível encontrar um homem que atenda às novas expectativas femininas. Onde achar o homem decidido, inteligente, generoso, companheiro, bom pai, parceiro de madrugadas entre fraldas e mamadeiras, assim como de forno e pia de cozinha, bem sucedido, sensível e que, ainda por cima, tenha uma boa pegada e seja fiel, isto é, crítico e refratário aos valores machistas de seus pais (e heterossexual!). Em lugar nenhum! Obviamente. Quer dizer, apenas nos seus sonhos. Na vida real, se você encontrar um homem determinado, inteligente, generoso e com boa pegada, considere-se a feliz ganhadora da Mega Sena da Virada. Usufrua seu prêmio e seja feliz. É claro que a sua combinação ganhadora pode ser outra. O fato é que precisamos eleger, da longa lista de atributos DESEJADOS, aqueles realmente essenciais, ou viveremos eternamente frustradas e solitárias, pois essas exigências todas são obviamente inalcançáveis, e de quebra ainda assustam os homens. Já repararam que as mulheres solteiras, entre 30 e 40, são em boa parte dos casos as inteligentes, independentes e bem-sucedidas? Se você é feliz como solteira inveterada, ótimo. Mas se seu desejo é encontrar um companheiro para despender com você o tempo da vida, talvez não seja má ideia revisitar alguns valores e modos de ser de nossas mães e avós. Me pergunto com frequência se elas não tinham um pouco mais de savoir vivre que nós, personas femininas do mundo globalizado.

sábado, 24 de março de 2012

A Era de Narciso e a liberdade da cultura


Duas cenas contemporâneas. Semana passada fiquei sabendo de uma moça que correu para uma clínica de imagem ao observar ligeira reentrância numa de suas nádegas. Só sossegaria depois de o radiologista assinar, com firma reconhecida em cartório, um diagnóstico negativo de celulite. Poucos anos atrás, minha irmã me surpreendeu ao telefone com a informação de que uma amiga em comum, mulher linda, magra e malhada, havia feito uma lipoaspiração. Como assim???!!! Onde estavam essas gorduras sobrando que eu nunca havia visto? Ah! Eram uns pneuzinhos impossíveis de se eliminar na malhação. Diante do meu juízo sobre a insensatez de tal procedimento cirúrgico, ouvi uma resposta categórica: Se ela não se sentia bem com o seu corpo, tinha todo o direito! Claro que tinha. A questão não é de direito à felicidade, mas de concepção a esse respeito: o que leva uma mulher bonita, assediadíssima, magra (sob qualquer ponto de vista), a não se sentir bem com um 1cm de pneuzinho na altura do quadril???!!! Eu sou a louca ou está todo mundo enlouquecendo? Ainda desconheço a resposta para tal pergunta. Às vezes tenho a sensação de que sou eu a figura fora do lugar.
A reportagem de capa da Veja desta última semana (As leis da atração) parece confirmar: a desajustada sou eu. A busca da beleza e da perfeição nos parceiros amorosos faz parte do processo de evolução, é um mecanismo da seleção natural, logo, estão explicados e justificados os dois exemplos relatados acima: instinto de fêmea para garantir a conquista do melhor reprodutor possível. Pela mesma lógica, nada existe de errado com os casais que proliferam na camada A da nossa sociedade: homens de 70 anos ou mais, donos de gordas contas bancárias, com mulheres de no máximo 30, corpos esculturais, aperfeiçoados em horas diárias de labuta muscular, e feições indiscutivelmente belas, cabelos lisos, sedosos, brilhantes. Muito pelo contrário. Ambos, homens e mulheres, seguem apenas uma espécie de pragmatismo evolucionário, ou evolutivo.
Tudo bem. A herança genética tem um peso inegável no comportamento humano. Todavia, ainda sou dos antropólogos que reputam um peso maior à cultura que à biologia. Valores, de qualquer espécie ou em qualquer domínio, são culturalmente construídos. As próprias noções de beleza e perfeição são mutáveis, seja no tempo, seja no espaço. Em lugar de naturalizarmos esse culto a um certo padrão de beleza (cinturas finas, coxas grossas, bundas arrebitadas, peitos fartos, cabelos lisos e compridos, no caso das mulheres, e músculos salientes, barriga tanquinho, ombros largos, estatura elevada, no caso dos homens), gostaria de chamar a atenção para o fato de que há características atitudinais tão ou mais importantes no mercado das relações amorosas. Ainda me remetendo à reportagem da Veja, noto que nos casos desviantes em relação ao padrão biológico mais propício à seleção natural, apontados pela própria revista, são atitudes e posturas os elementos buscados e valorizados pelas parceiras – com destaque para duas das maiores lideranças políticas mundiais, os presidentes Obama e Sarkosy. E aí, sim, acho que adentramos um terreno menos pantanoso. Homens que oferecem a sensação de segurança são mais sedutores. Ok. Estou cada vez mais convencida disso. Atente-se, porém, que homens baixinhos, magros e feios também podem transmitir essa sensação. Quanto às mulheres, não seriam justamente qualidades de cuidadoras as mais atraentes, quando se pensa em relacionamento, e não apenas na atividade sexual? As feministas que me perdoem a franqueza.
Em todo caso, me parece que em cultura, tudo que não é pode vir a ser e vice-versa. Se a natureza nos puxa para um lado, a cultura pode nos levar para outras direções. Se a natureza nos leva a valorizar a aparência, a cultura nos permite apreciarmos a essência. Eis um tipo de liberdade que só a espécie humana tem.

quinta-feira, 22 de março de 2012

A presidente Dilma e o silêncio dos bons


Todos nós, cidadãos brasileiros que acompanhamos o bailado trôpego e indecente da política nacional, estamos com a respiração em suspenso. A presidente Dilma resolveu enfrentar os maus parlamentares, os péssimos políticos e os partidos de aluguel. Note-se bem que tomo o cuidado de não dizer: a presidente decidiu “peitar o Congresso”. Muito pelo contrário, nossa presidente finalmente atua como Chefe da Nação, age em benefício das nossas instituições democráticas, logo, também do Parlamento.
Todavia, embora em nosso íntimo nos alegremos com a coragem e a razoabilidade da troca de lideranças nas duas Casas do Congresso, e com a firmeza da recusa em fazer dos ministérios repasto, à boca pequena comentamos a temeridade de seus atos, como se o mais adequado fosse mesmo ficar refém da chantagem de um punhado de abutres, que há tempos se alimentam do Estado brasileiro, reduzido à carniça pelas práticas cotidianas e generalizadas de aparelhamento da máquina burocrática, desvio de recursos, promiscuidade com interesses privados.
Já não somos inocentes: as velhas raposas do “alto clero” parlamentar e os caciques da “base aliada” não darão descanso à presidente. Usarão de todos os meios, legítimos e ilegítimos, para dobrá-la. Querem-na curvada aos seus pés. Deram mostras evidentes disso nas “derrotas” impostas ontem ao Governo. Temos clareza quanto à força desses maus políticos e eis porque o suspense e a apreensão. A presidente Dilma nos aponta com uma luz no fim do tenebroso túnel em que se converteu a política brasileira. Os corações da plebe enchem-se de esperança por alguns instantes. Porém, logo a história recente nos joga baldes de água fria e nos pede prudência. Nessa luta, a presidente é o lado mais fraco. Malgrado o desejo de milhões de cidadãos de que ela triunfe, é ela o Davi. Só que sem deus para apoiá-la. Olho para ela e enxergo apenas sua determinação como arma. Até o ex-presidente Lula, amigo dos defenestrados, me dá a impressão de posicionar-se do lado de Golias.
A frase mais famosa de Martin Luther King talvez seja aquela em que ele proclama sua preocupação com o silêncio dos bons. Este me parece ser um momento crucial para o Brasil, em que o silêncio dos bons pode nos ser fatal. É o momento em que cabe aos Justos se pronunciarem, independentemente de sua cor partidária. Eu mesma não votei na presidente Dilma. Mas dou a ela todo o meu apoio nessa cruzada por níveis mínimos de decência, moralidade e republicanismo em nossa vida pretensamente democrática. Muito me alegraria ver os bons parlamentares do Congresso Nacional, os bons políticos deste país mobilizando-se para dar à presidente o apoio e a força de que ela muito carece. O mesmo se pode dizer de cada um de nós. Onde estaremos durante esse embate? Até quando permaneceremos calados?