Para Haquira Osakabe
Alguns anos atrás ganhei de presente um CD de Virgínia
Rodrigues. Na capa, uma mulher imponente, corpulenta, a cabeleira formada por abundantes
tranças afro, vestido amarelo, sentada com pose de rainha. O disco, Nós, me revelou uma voz potente e ainda
mais impressionante que a fotografia. As canções me deram a impressão de um
lamento. O tom do disco é elegíaco, o ritmo das músicas parece propositadamente
arrastado, evoca uma temporalidade mítica, ou seria melhor dizer que remete o
ouvinte ao atemporal, ao eterno, ao sagrado.
Quando vi um cartaz anunciando o show de Virgínia Rodrigues
no Recife, no âmbito de uma homenagem a Moacir Santos pensei que era minha
oportunidade para ouvi-la ao vivo. Confesso: desconhecia a obra do artista
homenageado, pernambucano de Flores. Decidi ir principalmente por causa da
cantora e da participação de Naná Vasconcelos, embora a possibilidade de
ampliar meus conhecimentos sobre os talentos da nossa música popular também me
motivasse. Convenci minha amiga Dani e lá fomos nós. Chegamos em cima da hora,
mas ainda conseguimos ingresso na terceira frisa. Casa cheia, porém não,
lotada. Uma pena. Recifenses, não sabeis o que perdestes.
O que se viu no palco do Santa Isabel não foi um show, foi
uma bênção, uma cerimônia de unção.
Virgínia Rodrigues é hoje uma mulher distinta da foto que me era familiar. Menos
corpulenta e de cabeça raspada, vai ficando cada vez mais semelhante a uma
divindade. A careca realça os olhos grandes e o sorriso amplo. Sua simpatia é
absolutamente cativante. Espontânea, alegre, acolhedora, Virgínia parecia uma
Oxum no palco, movendo mãos, braços, pés e quadris numa dança que era não era
só do corpo, mas da alma. Sedutora. Hipnotizante. A voz, profunda, modulada em
graves e agudos, é a de uma Diva. Qualquer música saindo dos seus lábios
adquire a imponência e a gravidade de uma ária. Só que tem ao mesmo tempo uma
ternura e um calor de acalanto, efeito que nenhuma ópera é capaz de produzir.
Dividindo o palco com ela, o violonista Alex Mesquita e o celista
Iura Ranevisk foram perfeitos no acompanhamento da diva-deusa, sobrepuseram-se,
inclusive, às deficiências lamentáveis do sistema de som. Para completar o
ambiente mágico, o Erê Naná Vasconcelos foi brilhante. Cheio de artes e molecagens,
deu um toque especialíssimo ao show, com seus tambores, chocalhos e gongo. Noite
esplêndida. Noite sagrada. Pontos altos: Virgínia cantando Villa-Lobos,
comovida e comovente; e a revelação que foi Maracatu,
nação do amor, linda composição do homenageado, maestro Moacir Santos.
Lembrei-me de um título muito sugestivo de disco da potiguar Roberta Sá: Quando o canto é reza. Definição
perfeita para o show de
Virgínia-Naná-Moacir. Quem se deu ao trabalho de ir ao Santa Isabel nesta
última sexta-feira saiu de lá sentindo-se abençoado, a alma leve, acalentada,
afagada pelos orixás, e pelos deuses da música, da poesia, do belo, e do bem.