sábado, 31 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 42


31/10/15

Boa Noite, Minha Irmã Amada!
Dizem que a Galícia é a terra das bruxas e da chuva. De chuva eu posso falar e confirmar. Desde que passei pelo marco de pedra que anuncia aos viajantes o início do território galego, quase uma semana atrás, que chove. Ontem foi o único dia em que não choveu. Mesmo assim, só consegui vislumbrar o azul do céu logo no início da caminhada. Rapidamente o céu ficou nublado e assim permaneceu até de tardinha.
Estou adorando é escutar o galego e ler as placas em galego. É uma língua tão interessante e graciosa. Parece uma mistura de espanhol arcaico e português, só que com muito “x”. Em todo lugar que a gente usa o som de “j”, em galego é “x”. Por exemplo, igreja é igrexa. Eu já tinha notado isso nas duas vezes em que estive em Santiago, no curso de verão de Berkeley. Desde essa época, que eu elaborei a hipótese de que nossas expressões tão nordestinas vixe e oxente vem do galego. Devem ser corruptelas de Virxen (Virgem) e Ô, xente (gente). Nada comprovado, claro. Só elocubração minha. Mas não parece razoável? Alguma galegada deve ter ido bater no Nordeste, em tempos coloniais e nos deixou isso de herança.
Ontem até acordei cedo. Só que fiquei enrolada com a secagem de uma roupa que eu tinha posto pra lavar, junto com Érica, na noite anterior. Nós pusemos a roupa muito tarde e a lavagem parou no meio. O albergue deve ter um sistema de timing das máquinas. Daí, de manhã a roupa estava encharcada, porque a máquina não centrifugou. Resultado, tive de ficar esperando a roupa secar de manhã, e acabei gastando bem mais, pois foi necessário adicionar moedas para que a roupa secasse efetivamente. Érica não quis perder a companhia de Luís e foi embora com a roupa molhada mesmo.
Enquanto a roupa terminava de secar, aproveitei para dar uma volta em Portomarín, porque como eu cheguei de noite, não vi nada. A cidade é bem pequena. E cheia de charme. A rua principal é quase toda formada por edifícios brancos, de janelas verdes e detalhes em pedra, com grandes arcos embaixo. E na praça principal, uma Igreja curiosíssima. A fachada frontal dela lembra mais uma torre de castelo, quadrada. Imagine uma grande torre quadrangular, de pedra, com uma rosácea no meio, no alto, e uma portada em forma de arco arredondado, com folhagens, seres míticos e figuras sacras esculpidas na pedra. Deve ser um raro exemplar da arquitetura românica. Se não fossem as portadas e capitéis (tem uma na lateral), e uma nave arredondada por detrás, a pessoa podia pensar que era uma torre de fortaleza, ou parte de um antigo castelo.
Minha volta na pequena Portomarín deve ter durado uns quinze minutos. Voltei ao albergue pelo outro lado, passando por um parque na beira da encosta, com bela vista para o rio. Foi quando me dei conta de que ao pé da enorme ponte de concreto tem uma pontezinha baixinha, de arcos de pedra. Deve ser centenária. Recolhi minha roupa e comecei minha caminhada. Cruzei a ponte altíssima e logo entrei por uma mata fechada. Havia outros peregrinos caminhando à minha frente. Um deles não calava a boca. Eu chega estava com pena dos companheiros. Ele falava em inglês, com um sotaque que me pareceu brasileiro. A criatura, ainda por cima, falava super alto. Resolvi parar um pouco, pra dar uma distância deles e poder rezar com tranquilidade. Estava eu esperando eles se afastarem, quando vejo um enorme galho caindo no chão, alguns passos à minha frente. Ouviu-se o estrondo da queda. O galho se fez em pedaços. O homem que falava demais e os outros estavam alguns passos à frente do galho. Com o barulho, eles deram um pulo e se voltaram para trás. Sorrimos uns para os outros, acho que todos agradecidos por ninguém ter se ferido. Foi apenas uma questão de segundos.
A mata fechada não durou muito. Logo cheguei ao cume da colina que estava subindo e a partir dali, passei a caminhar ao lado ou pelo meio de bosques de pinheiros. Outra paisagem. Muito bonita também. Os bosques de pinheiros são mais abertos. A gente pode ver para além deles. Também caminhei ao lado de pastos, e por certo tempo andei junto a uma rodovia. De novo, muitas macieiras carregadas de maças bem vermelhinhas. Nos pontos mais altos, sem árvores, dava para apreciar a linha do horizonte. Vislumbrei a cadeia montanhosa que cruzei um dia desses. Aliás, essa sensação, de vislumbrar no horizonte distante as montanhas que você já cruzou, é muito, muito gratificante.
Passei por alguns lugarejos de poucas casas, por várias propriedades rurais, e por uma enorme fábrica abandonada. Em várias das casas desses lugarejos da Galícia, há uma estrutura curiosíssima, que funciona como silo, para armazenagem de grãos (milho, parece). Esses silos têm todo o aspecto de um jazigo de cemitério, são casinhas compridas e estreitas, com uma cruz acima. Só que estão como que atrepados, assentados sobre bases de madeira ou cimento para ficaram distantes do chão e evitarem visitantes indesejáveis, conforme tinha me explicado Paulo.
Ontem foi mais um dia de caminhada lenta. Muitos altos e baixos, e eu ainda estou ficando muito cansada com o peso da mochila. Já tinha decidido que eu não iria até a próxima cidade de maior porte. Então, parei em Eirexe, onde tem um albergue municipal bem simplesinho. A questão é que indaguei por lá e confirmei que os dois albergues existentes antes de Palas de Rei já estão fechados. O jeito foi ficar em Eirexe. Colchões e travesseiros tinham toda pinta de serem velhos como a Mãe do Sarampo. Fiquei morrendo de medo de ter bicho de cama, mas não tinha solução. O jeito era pernoitar por ali mesmo. Aliás, deixa eu te dizer que tem uma razão pragmática também pra eu voltar a levar minha mochila, que é o fato de muitos albergues já começarem a fechar nessa altura do ano.
Tomei meu banho (de novo chuveiros sem porta) e fui para o bar de frente, pegar o sinal da internet, pra poder falar com vocês. Estava por lá, usando o zap zap, quando chegaram Kevin e Dominique, dois senhores que eu havia conhecido na entrada de Eirexe. Kevin é americano e Dominique é francês. Eu nem pretendia jantar, mas acabei ficando com eles, tomamos vinho, eu comi uma salada e tivemos uma conversa agradabilíssima. Falamos sobre política internacional e viagens. Dominique deixou o emprego e vive, já há alguns anos, de se voluntariar em países da África e da Ásia. Em dezembro ele irá para Calcutá, trabalhar com as Irmãs de Madre Teresa. Claro que eu adorei os relatos deles! E ele me deu uma excelente de um Ashram de Yoga no Sul da Índia.
Contra todos os indícios, consegui dormir bem no albergue de Eirexe. MariPaz, a hospitalera, ligou o aquecedor e o quarto ficou bem agradável. A única coisa é que fui dormir impressionada com essa história dos bichos. Aliás, estou até agora. Estou o tempo todo com a sensação de alguma coceira, ou de algum bichinho caminhando em mim. Mas é mais minha mente mesmo. Não tem nenhuma nova picada. Enfim, dormi bem. Acordamos todos tarde (só tem um quarto no albergue de Eirexe) e quando saí do lugarejo (que deve ter umas cinco ou seis casas), já era mais de nove. Desde domingo passado que mudou a hora na Espanha. Acabou o horário de verão, então, atrasamos os relógios uma hora. Isso significa que às oito horas já tem luz. Eu poderia passar a caminhar mais cedo. Ainda não consegui essa façanha.
Comecei a andar com uma chuva fininha, embora o céu não estivesse todo encoberto. Pelo contrário, havia vários clarões azuis entre as nuvens. Desde ontem que ver o azul do céu tem me dado imensa satisfação. Andava meio cansada de tanto céu cinzento e tanta chuva. Decidi andar pouco hoje, não só para descansar um pouco o corpo desses últimos dias de caminhada com a mochila, mas para acertar meu roteiro com dormidas em cidades de maior porte, de modo que eu tenha mais opções de hospedagem. Assim, caminhei apenas oito quilômetros hoje. Cheguei cedo a Palas de Rei. A cidade não tem nenhum charme. Nem mesmo a Igreja de Santo Tirso é interessante. Diz que é do século XII, mas não conserva nada dessa época. Entrei, rezei, acendi uma vela pro Sagrado Coração de Jesus e conversei um pouco com um senhorzinho que estava tomando conta da Igreja, e que é uma fofidade, e com um peregrino italiano. O senhorzinho nos disse algo tão singelo e bonito: o sorriso é uma língua universal, dispensa tradução. E, realmente, quantas vezes a gente se comunica, no Caminho, apenas com um Buen Camino e um sorriso?!
Depois da Igreja, fui fazer compras num supermercado. Foi o tempo que deu uma hora e me dirigi ao albergue que me tinha sido muitíssimo recomendado por Norma e Tom. Realmente, o Albergue San Marcos é excelente! Todo novinho, transado, colorido. Estou adorando. Fiz uma boa salada para o almoço e passei a tarde de pernas pro ar, descansando, meditando e escrevendo minhas derradeiras cartas de perdão (pelo momento!). Já lanchei e estou pronta para dormir. Roupa de cama nova, cobertor limpo e macio. Beliches amplas, com altura suficiente pra pessoa se sentar sem topar com a cabeça em cima. Um luxo, rs, rs, rs. O pé está me incomodando menos, viu?! E está menos inchado. A bursite também está melhor hoje. E, se Deus quiser, daqui a quatro dias estarei chegando a Santiago!
Por ora é isso, Niquinha.
Cuide-se!
Beijos mil,

Léia

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 41


29/10/15

Boa Noite, Niquinha!
Escrevo de Portomarín, uma cidadezinha bem simpática, situada no alto de uma colina. Ao pé da colina há um grande rio. Pontes altíssimas ligam Portomarín a uma estrada principal, e ao Caminho de Santiago. Hoje foi meu 40º dia de caminhada! E daqui até Santiago são apenas 93 kms! Nem acredito que me faltam menos de cem para chegar.
Cheguei particularmente cansada a Portomarín. Esperava caminhar 17 kms e acabei tendo de caminhar 22 kms, porque um albergue onde eu havia pensado em parar, no meio do caminho, era muito ruim, e ou outro estava fechado. Não tive escolha a não ser continuar caminhando até Portomarín. Foi a primeira vez que cheguei ao meu destino à noite, já sem nenhuma luz natural. Ainda por cima, a chuva resolveu engrossar justo quando eu estava na entrada da cidade. Cruzei essa ponte bem alta com muita chuva e um vento forte e frio.
Mas deixa eu voltar para o dia de ontem. Eu tinha dormido em Samos, né. Dormi super bem, na exclusividade do meu quarto. E acaba que saí de Samos muito tarde, praticamente meio-dia. É que eu fiz um acordo com Papai do Céu, quando estava abraçando o cipestre. Ele vai cuidar do meu pé, e eu vou voltar a carregar minha mochila. Então, passei a manhã separando as coisas que eu podia despachar pra Santiago. Fui até o posto dos Correios, preparei uma caixa com 5 kgs de coisas que não me são essenciais nessa reta final e despachei pro Correio de Santiago. Achei o preço bem razoável. Paguei 13 euros e eles ficam com a caixa por até quinze dias. Depois de despachar minhas coisas, voltei pra pousada Victoria para pegar minha mochila. Tomei café no bar da pousada, enquanto conversava com José, o atendente, uma figura!
Choveu o dia todo, uma chuva fina e constante. A caminhada a partir de Samos é um pouco dura porque tem um longo trecho, de mais de 10 quilômetros, sem nem uma paradinha, nem um café, nada além de muro pra pessoa se encostar. Além disso, o caminho é cheio de altos e baixos. Claro que senti muito o peso da mochila. A musculatura das costas reclamou bastante. Fui andando devagar, parando de vez em quando pra me encostar numa muretinha e descansar. Cruzei uns cinco lugarejos, com pouco mais que uma Igrejinha e cinco casas. Interessante que desde que entrei na Galícia, que essas pequenas Igrejinhas têm quase sempre um cemitério em volta. Os túmulos não ficam apenas por detrás, mas em volta das Igrejas (todas de pedra). Passei também por dentro de belíssimas matas, com suas altas árvores, cobertas de musgo e trepadeiras.
Finalmente, cheguei a uma Taberna, já de volta ao Caminho (lembra que eu peguei um caminho alternativo, para conhecer Samos?!). Fiquei tão feliz de poder sentar e descansar no quentinho! Aproveitei e tomei um caldo gallego. Nessa taberna, conheci um canadense, Paul, e uma australiana (não gravei o nome dela).  Eles me convidaram para sentar com eles e ficamos conversando. Eram muito simpáticos, mas meio esquisitos. Não sei bem o quê, mas havia algo de fora do lugar com eles. Não eram um casal, estavam apenas caminhando juntos. Os dois devem ter aí pelos 45, 50 anos. A australiana foi tirar uma foto de um rapaz que estava sentado ao balcão. Depois, puxou papo com ele. Quando ela voltou à mesa, me explicou que gosta de tirar fotos das pessoas sem que elas percebam. Alguns minutos depois, olha só que maluquice, ela se aborreceu porque achou que o rapaz estava tirando fotos dela, com o celular, sem pedir permissão! É cada uma. O rapaz é paquistanês, e está tentando a vida na Espanha. Ele ficou mostrando o celular e dizendo que ela podia verificar, que ele não tinha tirado foto nenhuma. E eu no meio dessa confusão, de tradutora, porque ele não falava inglês direito, nem ela, espanhol. Sei não. Achei que foi maluquice dela.
Paul, o canadense, pareceu-me um pouco mais normal. Ele estava me falando de como está cansado de conhecer pessoas no Caminho, se apegar a elas, e vê-las partir. Me disse que tem muita dificuldade de lidar com a perda das pessoas a quem quer bem. Eu ainda tentei dizer que o bonito do Caminho é que tem sempre mais pessoas chegando, pra enriquecer a sua vida, mas nem insisti muito na ideia, pois, como te disse, não me senti à vontade com essa dupla. Tanto que terminado meu caldo, tomei logo meu rumo.
Caminhando devagar, cheguei a Sarria já de tardinha. Sarria é uma cidade de porte médio, com uma periferia mais moderna, e um bonito passeio ao longo do rio (malecón). O acesso ao centro histórico se dá por meio de uma escadaria. Há muitos albergues na rua principal. Escolhi um que tem várias obras de arte sacra no hall de entrada. Deixei minhas coisas e fui dar uma volta rápida na cidade (o centro histórico é mínimo), aproveitando o restinho de luz, e o fato de que a chuva tinha dado uma trégua. Em Sarria há as ruínas da torre de um antigo castelo (sec. XIII), porém, a gente só vê de longe, porque fica numa propriedade privada. E vi, por fora, a Igreja do Salvador, uma gracinha de prédio, do sec. XIII, em pedra branca, de cantaria, arco ogival e capitéis com figuras míticas. Já te disse mil vezes que adoro a simplicidade dessas construções românicas.  
No albergue O Obradoiro, encontrei uma senhorinha mineira, Lêda. Ficamos conversando enquanto ela preparava seu jantar. Ela até me convidou para comer com ela, mas eu tinha tomado o meu caldo gallego já tarde e estava sem fome. Só tomei um chá e comi um pedaço da Torta de Santiago, uma torta típica, de amêndoas, que eu tinha comprado na taberna do caldo. Ah! Sabe que em Samos eu comprei umas paçoquinhas de amêndoa, chamadas polvorón, que mamãe e Quel iriam adorar! São muito gostosas.
Lêda me contou que estava caminhando com um brasileiro que teve problemas sérios com picadas desses insetos de camas. E no nosso albergue tinha um francês com uma ferida grande, infeccionada, também por causa desses bichinhos. Até então eu tinha tido a sorte de escapar deles. Pois qual não foi minha surpresa agora de noite quando cheguei em Portomarín e vi algumas picadas no meu braço e nas minhas costas. Tem bem direitinho o “caminho” que é típico desses bedbugs. Eu não sei se é pulga ou percevejo, o fato é que pus pomada de cortisona e comecei a tomar anti-inflamatório, porque coincidência ou não, tive algum tipo de reação alérgica (de pele). Apareceram umas placas vermelhas nos meus braços, na minha cintura e no meu tornozelo. Também estou sentindo alguma coceira nas picadas, mas com a pomada de cortisona deu uma aliviada. É torcer pra essas picadas não evoluírem como as que eu tenho visto em outros peregrinos. Tudo indica que foi no Obradoiro que esses insetos me picaram.
A verdade é que dormi direitinho no Obradoiro (só vim descobrir essas picadas agora de noite). E isso apesar dos gritos de um coreano, que deve ter tido algum pesadelo durante a noite. Tomei café com Lêda, que tinha comprado ovos e leite. Eu cozinhei umas maçãzinhas verdes que tinha apanhado pela estrada (com leite e mel), misturei com nozes, e nós também fervemos o leite com umas castanhas que Lêda tinha apanhado pelo chão. Tomamos um lauto café da manhã e iniciamos a caminhada juntas.
Na saída de Sarria, demos uma espiada no Mosteiro de Santa Maria Madaglena (que do século XIII parece conservar apenas o portal da fachada exterior), cruzamos uma bonita ponte de arcos de pedra, e seguimos andando pelo meio de uma mata. Lêda é dessas senhorinhas super ágeis (ela deve ter uns setenta e poucos anos) e falantes. O tempo que caminhamos juntas ela falou sem parar. Eu só fazia concordar. Sempre tenho a sensação de que os mineiros conversam como se estivessem contando histórias. E adoro esse jeitinho deles prosearem. Como Lêda estava andando bem mais rápido que eu, em dado momento, ela disparou na frente, e eu continuei no meu passo de formiguinha.
Logo após Sarria, tem um povoado chamado Barbadelo, onde há uma Igreja do século XII, a Igreja de Santiago. Esta estava aberta e tinha o carimbo pra credencial. Além do belo portal românico, gostei muito do retábulo principal, em madeira pintada, num tipo de representação quase naïf. Além disso, no nicho central tem uma graciosa imagem de Cristo Rei, e eu adoro ver altares com essa representação. Acho que o Cristo Ressuscitado é muito mais inspirador do que Ele na Cruz.
Entre Barbadelo e Portomarín, passei, novamente, por vários lugarejos de três ou quatro casas (não sei como é isso, não...), e, às vezes, uma Igrejinha de pedra, com ares românicos. De resto, foram matas, intercaladas por campos de pastagem, e uma ou outra plantação. No meio de uma das matas, tinha um trio pedindo doação para uma peregrinação a Roma. Puseram uma mesinha com umas bananas, e tinham até carimbo (sello) para a credencial. Adoro andar por essas matas, porque elas sempre me dão uma sensação de paz e de conexão com a natureza. Os campos de pastagem também são bonitos, estão bem verdinhos e, nos trechos que atravessei hoje, são separados uns dos outros por muros de pedra baixinhos. Tão lindos! Parecem bem antigos e estão cobertos de musgo. Ao pé deles, muitíssimas macieiras, algumas dão maças pequeninas e verdes, outras estão carregadas de maças tão vermelhas que beiram a cor de vinho. Encontrei vacas andando pelas ruas de algum lugarejo, ovelhas pastando, pastoreadas por seus cães. Aliás, aqui na Galícia tenho visto muito pastor alemão. Alguns, inclusive, andando solitários pelas estradas. Todos parecem muito dóceis.
Mesmo com esses pequenos lugarejos, o trajeto de hoje tinha alguns cafés pelo meio, e sempre que encontrava um, parava para descansar um pouco as costas. Obviamente, minha musculatura ainda está se acostumando ao peso da mochila. A notícia boa é que nesses dois dias, só senti dor muscular. Nada de inflamação, como eu tive lá atrás, no início do Caminho. No pequeno povoado de Persucallo, encontrei um senhorzinho, careca, gordinho e com apenas uns dois dentes na boca, que me deu umas nozes e me pediu para rezar por ele quando chegasse a Santiago. Já perto de Portomarín, num café-loja de um ex-hippie, parei para comer um sanduíche de chouriço e reencontrei a dupla esquisita (o canadense e a australiana). Conversamos rapidinho e retomei a estrada, pois estava ficando tarde.
Você já sabe como se deu minha chegada a Portomarín. Vim para um albergue bem bonzinho, chamado O Mirador. Fica abaixo de um bar-restaurante que parece ser bem frequentado pelos locais. É tudo novinho, o que, para mim, já é grande vantagem. Estou no quarto com uma mexicana, Érica, e um português, Luís, que é um amor! Luís já fez o Caminho trocentas vezes, e faz parte da Associação do Caminho de Santiago. Me deu algumas dicas, me sugeriu um albergue em Santiago, me ofereceu remédios. Um gracinha! Érica também foi um amor. Eles subiram para jantar, porém eu fiquei no quarto, pois ainda estou cheia com o sanduíche, que era enorme. Tô pondo gelo no pé. Até aqui o pé tá respondendo direitinho ao peso da mochila. Minha bursite no quadril (você sabe que é meio crônica) é que está reclamando um pouco. Nada demais, porém. Sabe que eu às vezes fico meio abusada comigo mesmo por ficar lhe relatando tantas queixas. Já pensei até em nem falar mais nada das minhas dores. Só que achei que você podia acabar ficando mais preocupada. Enfim, não quero parecer uma velha queixosa e enganjenta. No geral, estou muito bem. Estou, sobretudo, muito feliz e agradecida por essa jornada! Em bem pertinho de chegar!
Beijos mil, Minha Irmã!

Léia

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 40


27/10/15

Boa noite, Niquinha!
Hoje lhe escrevo de Samos, um lugarejo situado num pequeno vale, no meio das montanhas. A origem e o coração do lugar são um enorme Mosteiro, cujas origens remontam ao século VI. É o mais antigo Mosteiro do Caminho de Santiago, ainda em atividade. Uma estrada importante corta a pequena Samos e passa bem ao lado do Mosteiro. Ainda assim, é um lugar que transmite muita Paz.
A noite passada, no albergue municipal de O Cebreiro foi razoável. Não senti frio, mas tinha muita gente roncando e ressonando, e eu dormi num beliche superior, colado no de Flávio. Então, tive muito cuidado para fazer o mínimo de ruído me virando na cama (e eu me viro muito). Acordei cedinho, sem despertador, e fiquei esperando a galera começar a se movimentar, pra descer da cama e ir ao banheiro, que fica no andar debaixo e estava, obviamente, muito frio.
O tempo estava péssimo quando deixei o albergue. Muito nublado, muito frio e chovendo. Fui até o hotel principal deixar minha mochila e combinei com Paulo, Karine e Flávio que os encontraria na primeira parada, para tomarmos café da manhã. Segundo Paulo, tinha um café “logo ali embaixo”. Com a neblina e a chuva, acaba que me enganei na saída de O Cebreiro. Não vi as setinhas amarelas e ia descendo margeando a estrada, quando me veio a sensação de que eu estava indo pelo caminho errado. Tinha andado menos de um quilômetro e resolvi voltar pra cidade, para verificar. Foi minha sorte, porque eu tinha descido uma ladeirinha, quando deveria ter subido e passado novamente em frente ao albergue. Reencontrei minhas setinhas e caminhei três quilômetros, em meio à neblina, até chegar em Liñares, onde estava o tal café. A galera brasileira estava toda lá. Tomei meu café com pão fresquíssimo, chegando da padaria, e voltamos pra chuva e pro vento gelado.
A descida até Triacastela, nosso destino do dia, é cheia de altos e baixos. Portanto, apesar da chuva, suamos a camisa. Subimos dois altos bem caprichados, o Alto de São Roque e o Alto do Poio. Até aí, a chuva foi ficando cada vez mais intensa, ao passo que a neblina se foi dissipando. Felizmente, não molhei os pés, porque estava de calça impermeável. Minhas botas só ficaram um pouco úmidas. Só os cumes das montanhas mais altas permaneciam cobertos pela névoa. Entre os dois Altos, passamos pelo vilarejo de Hospital da Condessa, completamente vazio. Não encontramos uma alma sequer pelas ruas. Paramos na fonte local para que o meu trio de companheiros abastecesse suas garrafinhas de água.
Em Fonfría paramos num restaurantezinho já conhecido de Paulo. A dona o reconheceu imediatamente e fez a maior festa. Tem até retrato dele pregado num muralzinho. Ali tomamos um caldo gallego, uma sopinha de batatas, couves, feijão branco e um tipo de toucinho. Eu achei muito gostosa. E veio mesmo a calhar, pra esquentar o corpo. Tomamos um copinho de vinho também. Quando saímos pra retomar a estrada, a chuva tinha parado! Uma alegria. A caminhada se tornou bem mais agradável e pudemos aproveitar a vista linda das encostas verdinhas, com gado pastando, ou da mata densa, colorida do outono, a depender do trecho. Aqui e acolá, pelos campos, antigos cilos de pedra e palha. Ainda cruzamos dois pequenos povoados, com suas casinhas de pedra e telhados de ardósia, e suas ruas desertas (é incrível como muitas cidadezinhas do Caminho dão a sensação de abandono e despovoamento), até começarmos a descida mais acentuada, para Triacastela.
A montanha tem uma coisa interessante. Quando você chega a algum ponto mais elevado, você vê seu destino bem na sua frente. Só que você faz tanta curva, sobe e desce, que sempre demora mais do que pensava para chegar no lugar que parecia tão pertinho de você. A entrada para Triacastela é linda. A gente caminha pelo meio de uma mata bem fechada, com árvores lindas, cheinhas de musgo. Junto a uma encosta, para proteger os barrancos, certamente, um velho e extenso muro de pedras simplesmente sobrepostas. Aqui na Galícia, nesses trechos de mata, se vê muito esses muros, com toda pinta de serem seculares, cobertos de musgos, de hera, e que não têm nenhum tipo de “cola”. As pedras estão simplesmente encaixadas, e aquele negócio resiste ao tempo e às intempéries. Não canso de me admirar com eles.
Agradeci muito a companhia de Paulo, Karine e Flávio. Paulo é muito divertido, como eu te disse. Ontem foi minha caminhada mais longa desde que essa tendinite se manifestou. E não foi fácil, com tanta subida e descida. A companhia deles fez uma grande diferença e me deu ânimo para enfrentar a distância. Paulo foi contando histórias do Caminho e fazendo reflexões muito interessantes. Ele é um homem de grande sensibilidade. Ele falou duas coisas que me ficaram na cabeça. Uma é que existe o Caminho físico, com seus quilômetros, e o Caminho mágico, uma via espiritual, que guarda e acumula a energia das criaturas que ao longo dos séculos usaram esse percurso como via de crescimento e de encontro com Deus. O primeiro Caminho é o que todo mundo faz. O segundo Caminho só alguns conseguem acessar, de vez em quando, ao longo da caminhada.
A segunda coisa que Paulo disse, contando a história de uma peregrina que ele conheceu, é que o Caminho (o mágico) tem a ver com o fim do EU. E esse processo passa pela experiência dos albergues, onde não tem a minha cama, o meu quarto, o meu banheiro, o meu chuveiro, as minhas coisas. É a expressão concreta da experiência mais sutil da alma, que precisa descobrir que ela é parte do Universo, da Criação. Lembrei-me de que as filosofias Zen falam muito que a separação, a ideia de Indivíduo é uma ilusão a ser superada no processo de crescimento espiritual, pois somos todos a expressão de uma mesma Unidade, que é Deus. O egoísmo encontrará seu fim quando entendermos que somos todos Um.
Bom, chegamos a Triacastela de tardinha, bastante cansados. Ficamos no Albergue Xacobeo (Jacobeo). Um lugar todo novinho, recém reformado pelo jeito, e com uma boa cozinha. Paulo é o cozinheiro oficial da brasileirada. Perguntamos à hospitalera se podíamos dormir todos em camas debaixo, e ela, muuuuito gentil, acabou “abrindo” um novo quarto só para nós. Uma das vantagens de caminhar em outubro é que já não tem tanta gente, os albergues raramente estão cheios, então, dá para ter esses luxos, e, inclusive, pegar a manta das outras camas de empréstimo, para dormir mais quentinha, he, he, he.
Após o banho bem quentinho (o banheiro era unissex, mas com portas nos chuveiros!), fomos ao supermercado e compramos uns enlatados. Paulo fez um risoto de frutos do mar, com esses enlatados, que ficou simplesmente divino. Eu nem gosto de jantar, mas comi horrores. Também fiz minha saladinha básica de tomates, claro. E tomamos um bom vinho do Bierzo. Depois de comer tanto, ficamos conversando um bocado, para fazer a digestão.
Dormi muito bem no quarto quentinho e com camas confortáveis, sem ronco, só o barulhinho gostoso da chuva no telhado. E fui dormir com a sensação de que conseguirei chegar a Santiago! Desde que me apareceu essa tendinite que eu vinha meio receosa de que isso comprometesse minha chegada. E vinha rezando muito, pedindo a Deus a Graça de me permitir entrar em Santiago com meus próprios pés. Ontem, não sei porquê, me veio muito forte a sensação de que vai dar tudo certo. Fui dormir feliz e agradecida.
Apesar da boa dormida, acordei cedo e fui para as mesas do refeitório, para escrever um pouco e colocar meus relatos em dia. Quando todos levantaram, preparamos o café da manhã, comemos e retomamos a estrada. Meus queridos companheiros tomaram o rumo de Sarria, e eu tomei o rumo de Samos, porque queria muito conhecer o Mosteiro (nesse ponto, há duas alternativas para seguir o Caminho). Posso lhe dizer, Niquinha, que mesmo apreciando demais a companhia dos três, me despedi sem nenhum peso no coração. Ao contrário, meus sentimentos eram de Alegria e Gratidão, pelo muito que pude compartilhar com eles. Acho que estou aprendendo, rs, rs, rs. Trocamos números de zap zap, para ficarmos em contato, claro, mas a verdade é que eles devem chegar a Santiago uns três dias antes de mim, pois pretendo fazer etapas mais curtas, de quinze quilômetros, em lugar de vinte, para não abusar do meu pé.
A caminhada até Samos foi curta e belíssima. Andei o tempo todo junto ao rio Oribio, de águas céleres e mais revoltas do que vinha observando nos rios que acompanhei ao longo do Caminho. Isso significa que o barulho das águas é mais intenso, e a gente sente uma energia mais forte vindo dele. Fui margeando uma estrada apenas na parte inicial. Caminhei a maior parte do tempo numa estradinha pelo meio de uma mata fechada, muito linda. O chão já está todo coberto de folhas. Muitíssimas castanhas pelo chão. Até colhi algumas, para ver se cozinho em algum albergue e provo do leite com castanhas de que Jus me falou. Vi pouquíssimos peregrinos caminhando para Samos. Cruzei alguns arruados, passei por Igrejinhas de pedra com cemitérios ao lado, e nas curvas finais, já quase chegando ao meu destino, peguei uma chuvarada forte. Ainda bem que a chuva foi rápida, porque se continuasse por muito tempo, com aquela intensidade, capaz que eu me molhasse toda, pois não tinha posto a calça impermeável.
As subidas e descidas de hoje foram mais suaves, e quando menos esperei, após uma curva da estrada, cheguei a uma clareira, num alto, e pude ver o imenso Mosteiro de Samos mais abaixo, no pequeno vale. Uma bela vista. Ainda andei um bocadinho pelas curvas da estrada de Samos até avistar as primeiras casinhas. Mais à frente, bem juntinho do rio, está a imponente edificação, construída nos séculos XVI e XVII (não há mais nada de remanescente do prédio que existiu ali nos séculos anteriores). O Mosteiro é cercado por um belo jardim e por um pomar. As macieiras estão carregadas de frutos vermelhos. No rio, patinhos nadavam tranquilamente. Cruzei a pontezinha sobre o rio e fui procurar o albergue para onde tinha mandado minha mochila. Descobri que esse albergue fecha às terças. A mochila estava numa pousada ao lado. Consegui negociar um preço razoável num quarto individual (sem banheiro) e resolvi ficar por ali mesmo. Estava com medo de o albergue do Mosteiro ser muito frio. Samos é muito pequenininha. Logo, há poucas opções de hospedagem.
Deixei minhas coisas no quarto e fui logo visitar o Mosteiro, com medo que fechasse pra siesta. Acabei tendo uma visita guiada só pra mim. A moça, Mónica, tinha uma certa formalidade que se encontra em alguns espanhóis, mas foi muito gentil. O Mosteiro é ocupado há séculos pelos monges beneditinos. Ele é tão grande assim porque tem dois enormes claustros contíguos. Um do século XVI e outro do século XVII. No pátio interno do primeiro, há uma linda fonte de traçado gótico, muito curiosa. A fonte é bem alta e seu destaque são as compridas Nereidas que sustentam o topo. Adoro ver essas referências pagãs nos monumentos religiosos. Creio que me dão a sensação de uma saudável convivência de realidades humanas distintas.
A Igreja do Mosteiro tem enormes arcos arredondados e uma grande abóbada sobre o cruzeiro central. Os altares laterais são de um Barroco tardio, mais interessante, e o altar principal já é o que eles chamam aqui na Espanha, de renascentista (é o pós Barroco), com linhas mais retas e mais colorido (mármores e pinturas). Esse estilo renascentista raramente me agrada. A nave da Igreja é muito ampla. Numa das reformas, eles removeram o coro de madeira, que virou moda aí pelo século XVII, e que acaba comprometendo a percepção de espaço de quem entra nas grandes Igrejas góticas ou românicas. O Mosteiro de Samos sofreu um grande incêndio na década de 1950, e muita coisa teve de ser reconstruída. Ainda assim, a visita é interessante. Os claustros superiores viraram hospedaria e as paredes estão cobertas por pinturas contemporâneas, que contam a vida de São Bento. O efeito é curioso. Apenas uma parte do Mosteiro está reservada aos menos de 10 religiosos que vivem ali nos dias atuais. Ah! Aprendi que teve um Padre Feijó importante na história dos beneditinos. Um filósofo Ilustrado, que conseguiu espanar um pouco da poeira de dogmatismo e conservadorismo que foi se acumulando com o tempo, na Ordem de São Bento.
Após deixar o convento, fui conhecer a Capela do Cipestre. Uma casinha de pedra, que dizem ser do século IX. Em todo caso, diz a crença que se o peregrino abraçar o cipestre, chegará a Santiago sem problemas nos pés. Com chuva e tudo, cuidei logo de dar meu abraço bem apertado no cipestre solitário, que cresceu bem rente à parede da capelinha.
Feitas as visitas obrigatórias, vim pro albergue, tomei meu banho quentinho, massageei meus pés, fiz um lanche, tirei um cochilo e me pus a escrever. É muito bom poder ter esse luxo, uma vez que outra, de dormir uma noite sozinha, numa cama de verdade, se enxugar com toalha de verdade... Mas o que mais me agrada, realmente, é a possibilidade de estar num ambiente silencioso, onde posso me concentrar, escrever, meditar, dormir e acordar na hora em que desejo. Na verdade, cada coisa tem o seu encanto e a sua função. A convivência nos albergues também tem sido preciosa, em muitos aspectos.
A pousada é exatamente em frente ao Mosteiro. Daqui fico escutando os sinos tocarem a cada meia hora pelo menos. O quarto está bem aquecido, e a noite certamente será deliciosa.
Mais oito dias e, se Deus quiser, chegarei a Santiago!
Beijo grande, Minha Irmã,

Léia

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 39


25/10/15

Oi, Nica!
Hoje foi dia de vencer o grande desafio dessa última etapa do Caminho Francês: a subida dO Cebreiro. A certa altura dessa subida, numa curva de estrada, no meio da mata, há uma espécie de refúgio. Ali, vi uma plaquinha pintada, com essa frase: A felicidade não é destino. A felicidade é a atitude com que se encara a vida. O problema com frases do gênero é que muitas vezes elas soam com algo fácil de dizer e difícil de concretizar na vida real. Especialmente difícil quando se está imerso em alguma situação grave, e que gere muita dor. Eu sei disso, porém, tendo a acreditar cada vez mais que são nossas reações diante dos fatos que definem nosso estado de espírito. Quanto mais resistimos aos fatos, mais sofremos com eles. A felicidade, ou talvez seja melhor dizer, a paz de espírito decorre da entrega e da aceitação da realidade. E com isso não quero dizer nem que seja fácil se sintonizar nesse estado de paz, nem que se deva assumir uma postura acomodada e meramente passiva diante da vida. É muito mais a ideia de ajustar nossas expectativas às nossas circunstâncias, e de reconhecer os limites da nossa vontade. Enfim. Fiquei com essa frase na cabeça ao longo o dia, meditando sobre ela.
Mas, voltando ao começo do dia, acaba que não dormi bem no albergue de Vega de Valcarce porque senti um pouco de frio. A manta que eles me deram (1 euro, por sinal), era muito fininha. Não deu pra nada. Acordei de noite e pus mais roupa, pra me aquecer. Tomei café da manhã no albergue mesmo, na companhia dos hospitaleros, Jus e Lalo (o dono). Eles me fizeram um suco de laranja que estava divino! Segundo Jus, o inverno é que é a época das laranjas. E, realmente, tenho tomado sucos de laranja que parecem um mel de tão docinhos. Enquanto comíamos, rolou uma conversa curiosa sobre altos impostos, corrupção e falta de interesse dos políticos em investir num sistema de educação pública realmente efetivo.... Qualquer semelhança será mera coincidência?! Confesso que estou impressionada com a similaridade entre as queixas que tenho escutado dos europeus e as nossas próprias.
Bom, já eram umas dez da manhã quando tomei meu rumo. O dia estava ensolarado, com algumas poucas nuvens no céu. Pude ver as ruínas do castelo com maior nitidez. Na saída do povoado, avistei uma lojinha com rosários coloridos pendurados no enquadramento da janela. Parei e comprei um crucifixo feito à mão. O autor das peças é um colombiano radicado na Espanha. Um velho hippie, de barba comprida e toda branca. Ficamos conversando um pouco. Engraçado que quase todos os hispano-falantes que tenho encontrado acham que eu sou argentina, por causa do meu sotaque falando espanhol. Não sei onde raios fui pegar esse sotaque. Mas ainda bem que não implico com a Argentina, porque outro compatriota nosso já estaria P da vida. Esse colombiano ficou tirando onda comigo.
A primeira parte da caminhada do dia ainda foi no vale, basicamente numa estradinha vicinal toda coberta por árvores, muitas castanheiras, claro. Também tenho passado por macieiras carregadinhas. Algumas dão umas maças vermelhas, lindas, daquelas da estória da Branca de Neve. Outras são macieiras silvestres, e dão umas maças pequeninas e esverdeadas. As macieiras da Branca de Neve normalmente estão em propriedades privadas. Já as silvestres, muitas vezes, crescem na beira da estrada e dá pra você colher uma ou outra maçã. São gostozinhas.
Cruzei o pequeno povoado de Ruitelan, ao pé de um enorme viaduto. Sua Igrejinha estava aberta. Entrei, rezei e estampei minha credencial. A Igrejinha tem uma pia batismal de pedra, com toda cara de ter alguns bons séculos de existência. O último povoado antes do início da subida dO Cebreiro chama-se Herrerías. É um povoado charmoso, que se estende ao longo do sopé de uma montanha. Tem uma pequena ponte de pedra, de um só arco, ogival. Parei num café, comprei uma pera, usei o banheiro e tomei fôlego para a subida de quase 700 metros, que todos dizem ser desafiadora.
A paisagem dessa subida é lindíssima. A gente vai por uma estradinha de terra, em meio a uma mata virgem, cheia de árvores cobertas de musgos e trepadeiras. E nessa época do ano, então, já se vê toda a paleta do Outono. E quando a gente vai chegando mais alto, que se acabam as matas, acho que a paisagem é ainda mais deslumbrante, porque se avistam todas as montanhas ao redor, com os vales pelo meio, as encostas das colinas, ora verdes, ora cobertas de árvores de todas as cores, ora cobertas por um tapete de samambaias vermelhas, alaranjadas e amarelas.
Foi ainda na mata que encontrei o refúgio que mencionei a princípio: El Buho de Atenea. Alguém pintou uns banquinhos e pôs umas plaquinhas simpáticas numa clareira bem convidativa, bem no topo de uma subidinha. Aproveitei para descansar e meditar um pouco. É tão boa essa sensação de estar no meio da natureza, ouvindo só os barulhos da mata, respirando o cheiro da terra e das folhas, ainda úmidas da chuva da véspera... De vez em quando passava algum peregrino. Mas eu fiquei lá, sentadinha, concentrada em mim mesma, procurando me sintonizar com Deus por meio da sua Criação. Depois de uma meia hora, me levantei e segui por essa estradinha até chegar a um minúsculo povoado chamado La Faba. Dei logo de cara com um bar que estava cheio de peregrinos. Tratava-se, na realidade, de um bar-pousada, bem alternativo: El Refugio. Vi uns crepes com cara boa e resolvi almoçar. Comi um crepe de húmus, com tempero indiano, delicioso! A atendente era brasileira. Estava fazendo o Caminho com o namorado, eles se encantaram com o lugar e resolveram ficar, trabalhando como voluntários. Enquanto comia, fiquei conversando com uma americana de Miami, Karen. Acabei comendo metade do crepe dela também, porque ela fez redução de estômago e só consegue comer pouco.
A essa altura o tempo estava começando a mudar. O céu ficou nublado e com cara de chuva. Retomei a caminhada, na esperança de chegar a O Cebreiro antes da chuva cair. Dei uma paradinha a poucos metros do bar onde havia comido. Nisso passaram por mim três peregrinos. Um senhor e uma jovem negros e um rapaz branco. Negros sempre chamam a minha atenção no Caminho porque são muito raros. Fiquei pensando se seriam de algum país africano. O rapaz branco falou algo comigo em inglês. Nos desejamos Buen Camino. Eles seguiram à frente e eu fui logo atrás. Daqui a uns minutos eles param e eu escuto um “Ôxe!”. Falei logo, vocês são pernambucanos? Tio e sobrinha, Paulo e Karine, são do Recife. O rapaz, Flávio, é paulista, de mãe pernambucana (Sertânia). Estão caminhando juntos há várias semanas. Paulo meio que adotou Flávio. Integrei-me ao grupo e venci, com eles, a parte mais inclinada dO Cebreiro. Na realidade, achei que o povo faz um pantim muito grande. Não é uma subida tão dura. Nada que se compare aos Pirineus. Agora, a vista, como eu já disse, é magnífica! A gente só via montanhas e vales no horizonte. Aqui e acolá a luz do sol atravessava as nuvens e iluminava algum pedacinho de vale. Realmente belo.
Antes de chegar a O Cebreiro, um grande marco de pedra assinala o início das Terras de Galícia! Deixamos para trás o extenso Reino de León y Castilla, e adentramos a derradeira das regiões do Caminho de Santiago. Paulo, que está fazendo o Caminho pela quarta vez, começou a nos contar que a Galícia abrigou muitas “bruxas” e “bruxos” nos tempos da Inquisição, porque como era uma região mais remota, muitos perseguidos da Inquisição vieram se esconder por ali. Além disso, a Galícia tem um forte passado Celta.
Paulo é uma figura! Uma simpatia, uma alegria, uma espontaneidade contagiantes. E adorei encontrar meus conterrâneos, voltar a escutar nosso sotaque tão gostoso! Karine e Flávio também são uns amores. Me senti muito à vontade com eles, desde o primeiro instante. Paulo me falou muito sobre como era o Caminho até 2011. Ele diz que nos últimos 4 anos aumentou demais o fluxo de peregrinos, que o Caminho virou moda e está um pouco descaracterizado. Muita gente vindo fazer mais turismo, ou pela folia, ou pelo mero desafio físico, mais do que com uma motivação espiritual ou existencial (ainda bem que encontrei essa galera mais no iniciozinho da minha caminhada, depois passei a encontrar muita gente que está em busca de crescer moral e espiritualmente, que está num processo de revisão da própria vida). O problema, segundo Paulo, é que isso vem gerando mudanças na atitude dos hospitaleros e da própria população. Ele contou que nas primeiras vezes em que fez o Caminho, quando passava pelos povoadozinhos, os moradores mandavam bilhetinhos pra Santiago, pediam pros peregrinos rezarem por eles, e tratavam os peregrinos como pessoas muito especiais. Realmente, não é exatamente isso que a gente sente. Muitos locais me desejam Buen Camino quando eu passo pelos povoados (e encontro alguém na rua!), mas há muitos também que não te dão a menor bola. Enfim, como tudo na vida, o Caminho também há de ser cíclico. Em uns anos a moda passa e o espírito do Caminho ficará.
Na subida dO Cebreiro vimos uns peregrinos a cavalo. Tem uma pequena empresa que vende o serviço só nessa etapa de subida e descida dO Cebreiro. Peregrinos fazendo o Caminho a cavalo, de verdade, só vi um casal até aqui, bem lá no início. A grande maioria vai a pé mesmo, e tem uma proporção razoável de ciclistas. Essas são as três formas reconhecidas de peregrinagem.
Um enorme muro de pedra denuncia a chegada a O Cebreiro, que está no cume de um monte, a 1.300 metros de altitude. Fizemos a parte final da subida com muito vento (gelado!) e alguma chuva. O Cebreiro é uma cidade toda de pedra. Absolutamente todas as casas, e a Igreja de Santa María A Real, são de pedra. O Cebreiro tem um ar bem turístico. Há algumas boas pousadas rurais, algumas lojinhas de souvenires, restaurantes onde toca constantemente música celta. Aliás, a gente já entrou na cidade ouvindo música celta no ar. Como a Igreja fica bem na entrada, paramos logo para fazer nossas orações e conhecer o edifício, de arquitetura pré-românica (séc. IX). Por fora, a Igreja é toda de pedra, conforme mencionei. Dentro, ela tem as paredes caiadas, e grandes arcos de pedra, arredondados, separando a nave principal das laterais. No altar principal, apenas um grande e belo Crucifixo, do século XII. O arco do acesso a uma das naves laterais tem forma de ogiva. Bíblias em várias línguas estão expostas num armário de vidro. Em destaque, na nave da esquerda, o túmulo de Do Elias Valiña, que foi o religioso responsável pela invenção das flechas amarelas para marcar o Caminho de Santiago. Observando que muitos peregrinos se perdiam, Don Elias juntou um grupo de estudantes e começou a sinalizar o Caminho com as inconfundíveis setas amarelas.
Após a visita à Igreja, peguei minha mochila no principal hotel da cidade e fui com meus novos companheiros para o albergue municipal. No caminho, já deu para vermos toda a pequena cidade, que ainda preserva umas duas casinhas arredondadas, de pedra, com telhado de palha. O albergue municipal é bem simplizinho, mas estava com aquecimento ligado, o que, pra mim, é a glória. O detalhe pitoresco é que os chuveiros não têm porta (os banheiros de homens e mulheres são separados! Coisa que não se verifica em todos os albergues). Me senti de volta aos meus tempos de estudante. Acho que a última vez em que tomei banho em chuveiro quase coletivo foi quando fui ao Congresso da UNE! Mas a água estava quentinha, e isso é também o mais importante. Paulo e Karine me apresentaram a um outro grupo de brasileiros que também estavam no albergue.
O banho teve de ser corrido porque chegamos a O Cebreiro pouco antes das cinco da tarde, e tinha missa às seis. Como era domingo, corri pra chegar a tempo da missa. Cheguei à Igreja basicamente na hora em que o Padre estava subindo ao altar. As duas leituras, o Salmo e a Oração da Comunidade foram todas feitas por peregrinos, em diferentes línguas: italiano, francês, inglês e espanhol. Achei muito legal. Ao final a missa, o Padre nos deu a Bênção do Peregrino. A brasileirada estava quase toda na missa.
Já fazia muito frio quando saímos a Igreja. Passei num mercado, comprei umas besteiras e voltei pro albergue. Não estava nem um pouco a fim de sair e novo, naquele frio, para comer. Sem falar que as ruas de O Cebreiro são calçadas com seixos, ou seja, um piso totalmente irregular. Sem as botas, é sofrido pro meu pé caminhar nesse tipo de superfície. Então, enquanto a galera saía pra caçar onde comer, eu fui pro refeitório e já estava me instalando para começar a comer e te escrever, pra te atualizar das novidades, quando chegou Nacho, um espanhol que foi adotado pelos brasileiros. Dividi minha ceia com Nacho, que tinha ganho uma tortilla e tivemos uma conversa bela e inspiradora.
Nacho (nome de batismo, Inacio) ficou desempregado no ano passado e começou a fazer bicos. Por complcaçõoes familiares, resolveu aceitar um convite para trabalhar como voluntário num mosteiro Zen, na Itália. Depois de alguns meses nesse lugar, resolveu partir. E aí começou a fazer o Caminho de Santiago a partir de Roma! Detalhe: sem um tostão no bolso. Ele veio andando dependendo exclusivamente da Providência Divina. Procurava os mosteiros e paróquias, pedia abrigo e comida. E em algumas ocasiões, em cidadezinhas onde as Igrejas estão fechadas e o padre só aparece em domingo ou Dia Santo, ficou dependendo dos Homens de Boa Vontade. Ele me contou cada situação miraculosa, em que ele pensava que ia ter de dormir ao relento, e, de repente, aparecia uma criatura para abrigá-lo e alimentá-lo. Ele espera chegar a Santiago desse jeito. E está quase. Nesse meio tempo, ele parou umas duas vezes porque foi convidado para trabalhar como hospitalero voluntário, em albergues do Caminho.
Eu fiquei impressionada! Essa conversa foi um grande aprendizado para mim. Eu sempre me considerei uma pessoa de muita fé, e, no entanto, não sei se teria tamanho desprendimento. Lançar-se na estrada inteiramente entregue à Providência Divina requer uma coragem, uma entrega Total! Admirável.
Ao mesmo tempo, tem algo de muito triste nessa história, que revela um drama de muitos espanhóis e italianos que tenho encontrado. As crises nesses países jogaram as pessoas num cenário sombrio, marcado pela falta de perspectivas, pelo pessimismo, pela desesperança. Eis uma questão delicada e complexa.
Pois foi essa a aventura do dia, Minha Irmã! Mais uma etapa vencida. O pé resistiu bem à subida dO Cebreiro. São mais 10 dias até Santiago, considerando etapas mais curtas, para poupar o pé. Pedindo a Deus a Graça de chegar.
Beijocas, Nica,


Léia   

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 38


24/10/15

Niquinha, Querida,
Deixei Villafranca del Bierzo com um sentimento de profunda gratidão, aos meus anfitriões, claro, mas principalmente a Deus. Mercê me levou até a porta e nos despedimos com lágrimas nos olhos. Marta, a senhora responsável pela limpeza, também se despediu de mim com muito carinho. O dia estava nublado e como estava com cara de chuva, pus minha calça impermeável e o casaco. Mais à frente, acabei por tirá-los, porque não choveu e essas roupas impermeáveis esquentam demais. Comecei caminhando à beira de uma estrada vicinal. A certa altura, virando-me para trás, pude ver Villafranca encravadinha em meio às colinas. Muito linda essa cidadezinha!
Caminhei o dia todo num vale, passando entre as encostas das montanhas, praticamente o dia todo margeando o rio Pereje. Acho que já te disse que adoro caminhar acompanhando o curso dos rios, porque sempre dá pra gente escutar o barulhinho bom das águas correndo. Nessa etapa do Caminho, o rio foi meu contraponto feliz e inspirador ao movimento das rodovias. De fato, andei o dia todo ao pé de alguma estrada, às vezes junto a uma grande rodovia, às vezes à beira de uma estrada de menor porte. Por cima de alguns povoados, avistei altíssimos viadutos, cruzando os vales, conectando as colinas. Felizmente, em certos trechos da estradinha vicinal ao longo da qual caminhava, as árvores, muito altas, quase se tocavam acima, formando bonitas alamedas. Tenho a impressão de que a vegetação está cada vez mais amarela e laranja. E o chão começa a ficar coberto de folhas secas, em tons de marrom. Aliás, caminhei contemplando a queda das folhas, que mesmo ao vento suave, de desprendem dos galhos e caem delicadamente no chão. É bonito de ver e de ouvir também! Quando o vento é suave, as folhas produzem um delicado barulho ao se soltarem dos galhos e fazerem sua lenta aterrissagem no chão. Passei por muitíssimas castanheiras, e vi gente colhendo castanhas pelo chão.
Atravessei quatro pequenos povoados (Pereje, Trabadelo, La Portela de Valcarce e Ambasmesta), cada qual com sua Igrejinha de pedra, de torre única, vazada. Pude entrar na Igreja de São Pedro, em Ambasmestas, e rezar um pouco. Fico sempre feliz quando as Igrejas estão abertas e eu posso entrar e orar. Essa é uma Igrejinha bem simples, e bela na sua simplicidade. No topo do retábulo do altar, dedicado a São Pedro, um Cristo crucificado, com um sol e uma lua pintados de cada lado. Essa é, aliás, uma constante dos retábulos espanhóis, o sol e a lua, um de cada lado da Cruz. Acho muito interessante.
Vega de Valcarce, o povoado que era o meu destino do dia, é uma cidadezinha até charmosa, situada num vale todo cercado de colinas. No alto de uma delas, as ruínas de um antigo castelo (sec. IX) observam a cidade. À entrada, passei por hortas cheias de belas couves, e jerimuns absolutamente imensos. A Igrejinha de Veja, também de pedra, porém com uma torre de quatro paredes, não tem muita graça. Parece ser um prédio de construção mais recente. Certamente fruto de alguma reforma importante. Hospedei-me num albergue chamado El Paso. Mais um albergue novinho em folha, instalado num velho casarão reformado. Nada semelhante ao Leo, claro. El Paso é um albergue com cara de albergue. Mas muito bonzinho. Havia pouca gente. Além de mim e de um casal de americanos, havia apenas um grupo de coreanos, que falavam pouquíssimo inglês. Diga-se de passagem que tem me surpreendido a quantidade de coreanos que estão fazendo o Caminho.
A hospitalera, María Jesús (Jus), foi muito solícita. Providenciou água quente para o meu pé e cuidou da lavagem da minha roupa. Enquanto punha o pé na água quente (por causa do calinho de sangue), comi uma boa salada. Os coreanos estavam todos na cozinha e prepararam uma lauta refeição. Também cozinharam uma panela grande de castanhas, que certamente apanharam pela estrada. Jus mostrou a eles como se abriam as castanhas e ficou me contando que essa região tem muitíssimas castanheiras que foram plantadas pelos romanos! Parte dessa área do Norte da Espanha foi ocupada pelos romanos (daí porque há as ruínas em Burgos, em León...), e as castanhas foram ali introduzidas porque podem ser conservadas durante todo o ano, e têm muita sustança. Jus disse que os camponeses, de manhã, antes de subirem para os montes, para trabalhar, cozinhavam as castanhas com leite, e que aquilo lhes quedava no estômago por muitas horas. Diz ela que também é uma boa comida para os peregrinos. Vou ver se provo.
E assim passou-se mais um dia, Niquinha. O pé parece ter reagido bem à retomada da caminhada. Pelo menos não inchou mais. Se continuar assim até Santiago, me dou por satisfeita.
Beijos mil, Minha Irmã,

Léia

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 37


23/10/15

Minha Amada Irmã!
Como é possível transformar a dor em Amor???!!!
Imagine um casarão antigo, com pelo menos 300 anos de existência. Algumas paredes de pedra, outras caiadas, enormes vigas de madeira sustentando o teto, pé direito altíssimo, enormes janelas e um charmoso abalcoado dando para uma rua estreita, cheinho de flores. Volte no tempo e pense que um próspero comerciante, Don Leo, pai de duas filhas, há muitas décadas comprou essa casa de alguma família que outrora tivera muito dinheiro. Nesse casarão, viu as filhas crescerem, e uma delas apaixonar-se por um filho de camponeses, rapaz inteligente e talentoso. Nas aulas de violão, junto à cozinha, nasceu o namoro, que terminou em casamento. Mercê e Pepe tiveram, por sua vez, três filhas: Conche, María e Ángela. As filhas cresceram, tomaram seu destino, abandonando a pequena cidade encravada nas montanhas do Bierzo, e o casarão ficou vazio e grande demais para o casal de comerciantes, que se mudaram para uma casa menor e mais moderna. As três irmãs são amigas inseparáveis. Estudam, vivem na cidade grande, namoram, curtem a vida. Conche, a primogênita, vive um romance de conto de fadas com um jovem advogado. Fazem planos de casar-se. E vai que a vida, que parecia seguir um curso tranquilo, surpreende a todos. Um câncer lhe colhe a vida na flor da idade. Após alguns anos de luta contra a doença, a Jovem com semblante de Anjo e olhar doce, parte para uma outra jornada. A família fica desnorteada. A dor é profunda e quase devastadora. É custoso para cada qual retornar aos afazeres cotidianos, retomar os fios partidos das próprias vidas. Até que Pepe e Mercê têm uma ideia. Que tal reformar o casarão abandonado e convertê-lo num albergue para os peregrinos de Santiago? A velha casa, que parecia morta, ressurge, cheia de encanto e de luz. As filhas voltam de Madri. Retornam ao Lar, para recriá-lo. O Albergue na casa do velho Don Leo se torna muito mais que um lugar de hospedagem, é refúgio. É casa de acolhida e amparo. Muito mais que o conforto das instalações de um hotel, no casarão premiado pela reforma primorosa, o peregrino encontra ali o que há de mais precioso pelo Caminho: o milagre do Amor. O fogo da lareirinha da sala de estar, permanentemente aceso, é a metáfora perfeita do Carinho, da Atenção Amorosa e vigilante que Mercê, Pepe, María e Ângela dispensam aos peregrinos que têm a sorte de ali pernoitarem. Conche também está presente. É inspiração permanente para essa família que soube se reinventar por meio da Entrega, da Doação, do Amor.
Imagine, Minha Irmã, como me senti feliz e amparada nesses dois dias e meio em que estive nessa linda Casa. Fui tratada com o desvelo e o carinho com que papai, mamãe, você e Quel me teriam tratado. Me punham sentada em frente à lareira, mantinham o fogo aceso, me traziam balde com água quente para pôr os pés, me traziam gelo, me serviam café e chá (sem me cobrar nada por isso, apesar de eles terem um bar para esses serviços). Ángela fez um jantar para mim. Assou batatas, chouriços e castanhas na lareira. Pôs a mesa e comemos, eu, ela e María, na quinta-feira à noite. Além disso, depois que Miguel foi embora, me deixaram sozinha no quarto, por duas noites. Foi como se eu tivesse pagado por um quarto privado. Estive inteiramente à vontade. E Pepe ligou o aquecedor do quarto para ter certeza de que eu dormiria no quentinho. Enfim, foi um mimo de Deus, como gosta de dizer Tia Regina. E dos mais caprichados!
Na quarta à noite (21/10), conheci um jovem mexicano extremamente doce e alegre. Ele trabalha num escritório de empresa, mas é um pintor bastante talentoso. E você sabe como eu sou chata pra pintura contemporânea. Ficamos conversando até tarde, eu, ele, Miguel, María e Mercê. Estávamos tentando convencê-lo a investir no que realmente o apaixona, que é a pintura. Mário me fez pensar muito em quantas pessoas estão presas a uma zona de conforto, enquanto deixam o tempo da vida passar e levar embora a oportunidade de fazerem aquilo que realmente as realiza e enche seus corações de Alegria.
Repousei durante toda a manhã da quinta, na saleta com a lareira, sendo tratada como um princesa. Fiquei conversando com uma australiana que ficou 13 dias parada, em Logroño, por causa de uma tendinite braba. Deixe-me logo dizer que ao contrário de mim, que estou cuidando do pé desde os primeiros sintomas de tendinite, ela foi esticando a corda e minimizando os sintomas, até que não pôde mais caminhar. Ao menos ela parecia bem consciente e conformada. Entendeu que estava pagando o preço do orgulho e da arrogância, porque se recusou a refazer seus planos, a diminuir o ritmo da marcha, a reconhecer os próprios limites. Até que não teve mais opção. Agora, ela está retomando a caminhada aos poucos.
Miguel me convidou para almoçar. Acho que foi para retribuir o almoço que eu tinha feito na véspera, quando chegamos a Vilafranca. Fomos a um restaurante na Plaza Mayor, chamado Casino. Comida muito gostosa. Comi uns ovos mexidos com chouriço e maçã que estavam uma delícia, e uma carninha guisada de tempero bem caseiro. Após o almoço, ele foi ao Albergue buscar sua mochila para pegar o ônibus de volta para León. Miguel também está com uma tendinite, e como tinha pouco tempo para fazer o Caminho, decidiu voltar para casa. Ele estava fazendo a etapa entre León e Santiago. Eu descobri, aqui, que muita gente faz o Caminho por etapas, normalmente pela questão do tempo. Miguel estava triste de abandonar essa etapa do Caminho. Diz ele que existe a depressão pós-Caminho, que é para eu me preparar. Acabei pegando o ônibus com ele, porque queria voltar a Fuentes Nuevas, antes de Ponferrada, para procurar pela rua que tem o nome do pai de Carlos, marido da minha amiga Chrissy. Eu tinha passado por Fuentes Nuevas na caminhada até Pieros, só que não lembrava que era ali o povoado dos antepassados de Carlos. Como queria muito tirar uma foto diante da placa da rua, e ainda estava ali pertinho, resolvi dar um pulo lá. Me despedi de Miguel, desci do ônibus e me dirigi a um bar em frente à parada. A moça não conhecia a rua, mas foi gentilíssima e procurou no google maps pra mim. Facilmente cheguei à ruazinha, que é justo por trás da velha Igrejinha da cidade.
Tirei minhas fotos, fiz o caminho de volta para a rua principal, peguei meu ônibus de volta e quando desci em Villafranca del Bierzo e estava andando de volta para o albergue, uma peregrina que estava chegando à cidade me parou para pedir informações. Era uma brasileira, Susi. Estávamos caminhando para nossos albergues, quando passamos pela Colegiata. A porta estava aberta e decidimos entrar. Essa Igreja é um enorme edifício de pedra, de arcos arredondados no interior e imensas colunas de sustentação. Não tinha nenhuma placa explicativa, mas tive a impressão de uma mistura de estilos, porque ela tem alguns poucos arcos ogivais e nervuras tipicamente góticas no teto (que é trabalhado com seixos!), mas o restante do edifício parece românico. Não é uma Igreja especialmente bonita. É mais impressionante pelo tamanho. O altar principal certamente é de data bem mais recente, em mármore colorido. Não me agradou muito. No entanto, há alguns altares laterais de um barroco tardio. Um deles tem uma representação no centro que só tinha visto uma vez na vida (aqui no Caminho), com Deus Pai segurando Jesus na Cruz. Essa é uma imagem que me comove.   
Bom, após a visita à Colegiata, me despedi de Susi e voltei ao Albergue Leo. Lá estava uma massagista que também faz Reiki. Fazia dias que eu estava com a ideia de que devia fazer uma sessão de Reike. O problema é que já era tarde e ela ainda tinha duas pessoas para atender. Ela mora a 40 kms e se dispôs a vir no dia seguinte só para me atender. Detalhe, ela não cobra a sessão de Reike. Se a pessoa quiser, faz uma doação. Fiquei muito sensibilizada com o gesto de Mabel, que é o nome dela. Quando Mabel terminou suas massagens, Ângela preparou o jantar a que já me referi. Fui dormir feliz.
Nessa sexta-feira acordei tardíssimo. Já eram quase oito e meia quando me levantei! E passei o dia quase todo de pernas pro ar. Pus muito gelo. Fiz meditação. Almocei no albergue mesmo. Tinha sobrado um pouco da pasta que fiz a quarta e uns tomates. Preparei uma salada deliciosa, com castanhas da véspera, kiwi e aspargos. Enquanto comia, na salinha da lareira, bati um bom papo com Pepe! Ele é mais reservado que as mulheres da casa, mas conversamos animadamente. Pepe me contou muitas coisas sobre a região do Bierzo, falou sobre os tempos da Guerra Civil, da chegada da luz elétrica e da água encanada aos povoados do Norte da Espanha. Foi uma conversa muito instrutiva. No final da tarde, Mabel apareceu e fiz minha sessão de Reike. Foi a primeira vez em que fiz Reike e me impressionou muito como a gente consegue sentir a energia se movimentando no organismo, e os pontos de tensão. Adorei. E acho que me fez muito bem. Quando estava terminando a massagem, Susi, a brasileira da véspera, chegou para uma visita de surpresa. Foi ótimo, porque ela fez uma massagem com Mabel e me senti mais confortável, porque pelo menos fez a viagem de Mabel ”render” algo mais. Enquanto Susi fazia sua massagem, fui tomar meu banho.
Então, saímos, eu e Susi, para encontrar um casal amigo dela, um iraniano e uma austríaca, que trabalharam muitos anos para o FMI. Só que quando passamos pela Colegiata, ia começar uma missa. Eu e Susi resolvemos assistir à missa. Foi muito especial, porque a missa foi celebrada no secular coro esculpido em madeira (imagino que deve ser do século XVII, em estilo hispano-flamenco). A missa estava cheia com a população local, por conta do falecimento de uma senhorinha. Sentamos na parte superior do coro. E eu aproveitei para usar a misericórdia do meu banco, para poupar o calcanhar enquanto estava de pé. Após a missa, fomos jantar com Christina e Aziz no Casino (que eu recomendei). Na verdade, eles jantaram e eu só acompanhei no vinho, porque ainda tinha o resto da minha deliciosa salada me esperando no albergue. A conversa foi muito interessante. Conversamos sobre política internacional, e sobre o Brasil. Me dei conta de que ainda preciso aprimorar a arte do silêncio. Quando o assunto é Brasil, ainda tenho dificuldade de calar e ouvir.
E assim terminaram meus deliciosos dias em Villafranca del Bierzo, que me acolheu com uma magia que nunca esquecerei.
Saudades, Niquinha! Fica com Deus.
Beijos mil,

Léia

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 36


21/10/15

Boa Tarde, Nica!
Estou te escrevendo de uma cidadezinha mimosa, chamada Villafranca del Bierzo. Neste exato momento, estou sentada numa poltrona em frente a uma lareira, numa salinha de estar de uma casa centenária, que pertenceu aos pais de Dona Mercedez. Essa senhora é um amor de criatura. Decidiu transformar o velho casarão em um albergue para que as filhas voltassem a morar perto dela. O casarão foi todo reformado e mais parece um hotel do que um albergue. Do ponto de vista de conforto, sem dúvida, foi o melhor albergue em que fiquei hospedada até aqui. Porque além do ambiente requintado, Dona Mercedez e as filhas, Ángela e María, estão me tratando com uma atenção e um carinho que me fazem sentir em casa! Eles me trouxeram uma bacia com água quente e sal, para o pé da bolha, e gelo para o tornozelo inflamado (a tendinite).
Villafranca del Bierzo é uma jóia de vilarejo, instalada em meio às montanhas, à beira de um rio. A paisagem é bela e a cidade está muito bem cuidada. As torres das suas três ou quatro Igrejas se destacam contra a silhueta das montanhas. Amei. Resolvi ficar aqui por pelo menos duas noites, para dar um descanso ao meu calcanhar.
Deixa eu voltar para o dia de ontem. Eu tinha dormido em Ponferrada. Foi uma boa noite de sono no albergue Alea. São raros os albergues em que se dorme com lençóis limpos. Geralmente os albergues não trocam a roupa de cama. Só dão uma esticadinha. Por isso que todo mundo anda com seu saquinho de dormir. Eu, além do saco de dormir, uso lençol e fronha descartáveis. Até aqui, só fiquei em três albergues com lençóis limpinhos: o Albergue Verde, o Alea e esse em que estou agora, o Leo. E posso te dizer que é uma delícia dormir numa cama com lençol limpinho! Mais uma dessas coisas corriqueiras de que a gente não se dá conta da importância que têm na vida cotidiana.
Além de dormir bem, tomei um farto café da manhã no albergue. No Alea, reencontrei um casal americano que havia conhecido em León, e conheci um jovem capixaba, Rafael. O trio me lembrou meu período de caminhada com Norma e Tom. Rafael foi meio adotado por Teresa e o esposo. Estão caminhando juntos. Hoje, encontrei-os novamente nas ruas de Villafranca del Bierzo. É uma sensação tão boa quando a gente reencontra alguém que viu três, quatro, ou vários dias antes, em algum ponto do Caminho!
Ah! Na noite anterior, Teresa estava numa conversa animadíssima com Svetlana, uma jovem alemã que eu tinha conhecido em Acebo (o hotel-albergue). As duas conversavam sobre sistemas de saúde pública, diferenças entre Europa e Estados Unidos, sobre a dívida da Grécia e as questões de fronteira e Imigração. Ouvi toda a conversa sem dar nem um pitaco! Fiquei tão feliz comigo mesma. Estou fazendo o propósito de ouvir mais e falar menos. Uns meses atrás, não tinha qualquer possibilidade de eu ouvir uma conversa dessas – ainda mais que elas me incluíam no papo, com os olhares – e não emitir firmes opiniões a respeito. Pois ontem, por incrível que pareça, fiquei só escutando, aprendendo e matutando. Quando a gente não entra na discussão, a escuta é diferente, o aprendizado é outro. Não deixa de ser um exercício de humildade. Pois ando empenhada nele.
Bem, ontem fez um belo dia de sol! Nem parecia que tinha chovido tanto na véspera. Comecei minha caminhada contente e agradecida pelo céu azul, salpicado por uns fiapos de nuvens. Do albergue à saída de Ponferrada fui passando pelos pontos de interesse histórico. A cidade tem um grande castelo dos Cavaleiros Templários. É um edifício impressionante, até pelo porte. Ainda estava fechado e achei que não valia à pena esperar que abrisse. Fiquei observando e notei que o castelo sofreu intervenções e reformas recentes e não muito criteriosas. Vê-lo por fora me pareceu de bom tamanho. Me lembrei muito de Tomar, em Portugal, que também é um castelo Templário, e me pareceu mais autêntico, justamente por não estar inteiro e perfeito, deixando evidentes as marcas do tempo e da história.
Ponferrada não é uma cidade particularmente bonita, a não ser pela paisagem montanhosa em volta, e pelo portentoso castelo. A Basílica de la Virgen de La Encina tem uma alta torre de pedra, sem muito charme. Diz que é do século XVI, mas me pareceu mais um edifício modificado por intervenções recentes. O que mais me encantou nessa Igreja foi um Cristo crucificado de traços simples e longilíneos, bem característicos de uma arte sacra ainda medieval. A Basílica fica numa dessas praças quadrangulares. Parei para tomar um café num bar cujo dono era uma simpatia. Saí um pouco do Caminho para ir ver a Torre del Reloj (sec XVI), sob a qual está um arco que dá acesso à praça onde se encontra o prédio do Ayuntamiento. Essa praça estava cheia de estudantes que saíam de algum colégio. Nada muito especial, contudo. Retomei o Caminho e depois que deixei para trás o centro histórico (cruzando um belo rio, onde se viam as montanhas do entorno espelhadas na água), andei ainda muito tempo dentro da área urbana de Ponferrada, fiz compras num supermercado, e finalmente cheguei a uma alameda arborizada, que me levou a um povoado periférico, chamado Compostilla. Atravessei uma vizinhança bem bonita, com muitas árvores e belas casas, várias delas com placa de Vende-se. Lembrei que um dia desses algum peregrino americano comentava que toda a Espanha parecia estar à venda. De fato, esse é um sinal evidente da crise que ainda afeta os espanhóis. Em Compostilla, a Igreja de Santa María me chamou a atenção porque nas paredes internas há umas pinturas que parecem reproduzir figuras do Panteón, de León (lembra?).
Toda a caminhada de ontem foi bem bonita. O céu se pôs inteiramente azul, sem uma nuvem no céu. Caminhei por entre hortas e campos arborizados, sempre com uma cadeia de montanhas à minha frente, na linha do horizonte. Muitas árvores estão inteiramente amarelas, e o contraste com o azul intenso do céu, realmente é muito bonito. Cruzei dois pequenos povoados, Columbrianos e Fuentes Nuevas (o pai de Carlos, marido de Chrissy, é desse povoadozinho). Por sinal que parei num banquinho de Fuentes Nuevas para fazer um lanche. Todas as cidades da etapa de hoje eram pertinho umas das outras. Pouco mais à frente cheguei a uma cidade chamada Camponayara. Cidade mesmo, com certo porte, e sem nenhum encanto.
Depois de Camponayara a paisagem ficou ainda mais linda. Comecei a atravessar uma zona de vinhedos, chamada El Bierzo. Com o outono, as parreiras estão super coloridas: verde claro, amarelas, laranjas e vermelhas. Como é uma área montanhosa, elas sobem pelas colinas. Esse trecho do Caminho me encantou, com as parreiras coloridas, as árvores vestidas de amarelo, às vezes formando alamedas, que ensobreavam a estrada, dando um alívio do sol, que estava bem quente, e comprida silhueta das montanhas ao lado ou à minha frente.
Assim foi até chegar a Cacabelos, que é uma gracinha de povoado. Adorei o ambiente, as ruas estreitas, com casinhas antigas, com varandas de madeira sustentadas por pilastras certamente seculares. Algumas delas parecem atingir um equilíbrio improvável, dando a impressão de que a qualquer momento vão desabar. Outras dessas varandas estão cheinhas de flores coloridas ou trepadeiras. Um lindo gramado, pontuado de árvores, se estende ao longo do rio que corta a cidade. Muito fofa a cidadezinha. Amei. É um desses lugares em que eu teria ficado, caso estivesse carregando minha mochila.
Infelizmente, tive de seguir adiante, porque tinha mandado minha mochila para a próxima localidade. Pieros fica a menos de quatro quilômetros de Cacabelos, porém, me custou uma eternidade para chegar, pois meus dois pés estavam me incomodando. Um deles com a tendinite, o outro com uma bolha que cresceu ao lado da antiga. Pieros, meu destino, é um povoado de nada. Lá tem a tal pousada que Mincho me havia recomendado, El Serbol y La Luna. Estava particularmente interessada nas massagens de que falava o panfletinho. Pensei também que seria uma atmosfera semelhante à do Albergue Verde. Resulta que não era tão agradável pela falta de espaço mesmo. A energia da galera era bem legal, porém, o albergue é meio apertadinho. De todo modo, valeu demais. O jantar, vegetariano, estava uma delícia. E como o albergue é pequeno, éramos poucos peregrinos. Logo, a hora da comida foi uma grande confraternização. Havia alemães, australianos, franceses, belgas, um holandês e uma americana. Como ouvi uma peregrina dizendo certa vez: O Caminho é mais internacional que as Nações Unidas.
No jantar conheci uma francesa, Hélène, que está fazendo o Caminho pela segunda vez. Da primeira vez, ela fez o Caminho em agradecimento, porque teve um problema sério nos joelhos e chegou a ficar numa cadeira de rodas. Quando ela me contou isso, meu coração se aqueceu. Eu disse a ela que também estou fazendo o Caminho em agradecimento por uma Graça que tenho certeza de fé de que receberei! E será até 15 de janeiro.
Bati muito papo com um senhor holandês, Harm, e a moça americana, que é enfermeira! Ela foi um anjo que Deus mandou para me ajudar. O calcanhar direito, da bolha, tinha voltado a me incomodar (e muito) durante a caminhada do dia. O problema é que se formou outro abcesso, mas no lado mais externo do calcanhar, numa área que ficava super sem jeito pra eu furar ou fazer qualquer coisa. Laura cuidou do calcanhar pra mim. Furou, tirou todo o líquido (estava meio escuro, como se tivesse feito um calo de sangue), mandou eu colocar o pé na água quente com sal, e, hoje de manhã, ela não só colocou uma pomada antibiótica como me deu o tubo de pomada! E me recomendou que protegesse bem o calcanhar para a caminhada.
Bom, dormi bem aquecida, portanto, tive uma boa noite de sono. Tomei um bom café da manhã e retomei minha caminhada, mas para fazer apenas 6 kms. Atendendo aos seus conselhos, Minha Irmã, decidi ir apenas até Villafranca del Bierzo, para não exigir muito do tornozelo, e avaliar a necessidade de repousar um dia nessa cidade.
Hoje fez mais um belo dia de sol e céu espelhado, deslumbrante de azul. Porém, fez um pouco mais de frio. A paisagem entre Pieros e Villafranca del Bierzo é ainda mais linda! Caminhei subindo, portanto, fui adentrando pelas montanhas, cobertas de parreirais com o colorido que descrevi acima. Tão lindas as encostas coloridas de amarelo, laranja e vermelho, com as montanhas ao fundo! Ao longe, eu podia ver que os vales ao pé das montanhas estavam encobertos por uma tênue névoa. Às vezes os parreirais cediam lugar à vegetação agreste, com árvores e arbustos igualmente tingidos pela paleta de cores do outono. Passarinhos faziam uma grande algazarra. Pena que em meio à paisagem bucólica houvesse, em alguns trechos, grandes torres de energia elétrica. Cruzei apenas o pequeno e gracioso vilarejo de Valtuille de Arriba, e antes que eu pudesse me cansar, avistei a cidade de Villafranca del Bierzo encravada entre as montanhas. De longe já podia vislumbrar suas várias torres de Igreja. À entrada da cidade, parei num banquinho para comer umas frutas que tinha apanhado pela beira da estrada (as macieiras estão carregadas) e um membrillo, uma fruta estranha, que parece uma pera por fora, mas é mais dura e azedinha. As árvores de membrillo estão carregadas e as há em abundância nesse trecho do Caminho. Emanam um perfume adocicado que estava me deixando curiosíssima. No albergue de Pieros, me deram um de presente.
Estava eu sentada num banquinho, comendo minhas frutas, quando chegou Miguel, um espanhol que havia dormido no mesmo quarto que eu, em Ponferrada. Ele tem um desses aplicativos do Caminho e estava verificando as informações dos albergues. Eu havia mando minha mochila para La Piedra, mas me convenci de que o Leo era uma melhor opção. Dito e feito. De cara fiquei encantada com o albergue Leo. A casa, antiga, tem uma fachada charmosíssima, branquinha, com varandas de madeira e flores. A madeira do teto é aparente (grossas vigas que denunciam os muitos anos de idade). Nos registramos e fomos buscar minha mochila no outro albergue.
Ângela, uma das filhas de Dona Mercedez, nos colocou no que ela considera o quarto mais bonito do albergue, onde dormia sua mãe. Uma gracinha! Tenho estado a tarde toda descansando, de pé pra cima. Havia passado no mercado e fiz uma massa com cogumelos, e uma salada, para o almoço. Miguel comeu comigo, na cozinha do albergue. E agora estou aqui, nesse bem bom. Amanhã há de ser a mesma coisa. E aí veremos como respondem os pés.
Por ora é isso, Niquinha. Como diz o Zé Simão, agora, só amanhã.
Beijos mil!

Léia