31/10/15
Boa Noite, Minha Irmã
Amada!
Dizem que a Galícia é
a terra das bruxas e da chuva. De chuva eu posso falar e confirmar. Desde que passei
pelo marco de pedra que anuncia aos viajantes o início do território galego,
quase uma semana atrás, que chove. Ontem foi o único dia em que não choveu.
Mesmo assim, só consegui vislumbrar o azul do céu logo no início da caminhada.
Rapidamente o céu ficou nublado e assim permaneceu até de tardinha.
Estou adorando é
escutar o galego e ler as placas em galego. É uma língua tão interessante e
graciosa. Parece uma mistura de espanhol arcaico e português, só que com muito
“x”. Em todo lugar que a gente usa o som de “j”, em galego é “x”. Por exemplo, igreja é igrexa. Eu já tinha notado isso nas duas vezes em que estive em
Santiago, no curso de verão de Berkeley. Desde essa época, que eu elaborei a
hipótese de que nossas expressões tão nordestinas vixe e oxente vem do
galego. Devem ser corruptelas de Virxen
(Virgem) e Ô, xente (gente). Nada
comprovado, claro. Só elocubração minha. Mas não parece razoável? Alguma
galegada deve ter ido bater no Nordeste, em tempos coloniais e nos deixou isso
de herança.
Ontem até acordei
cedo. Só que fiquei enrolada com a secagem de uma roupa que eu tinha posto pra
lavar, junto com Érica, na noite anterior. Nós pusemos a roupa muito tarde e a
lavagem parou no meio. O albergue deve ter um sistema de timing das máquinas.
Daí, de manhã a roupa estava encharcada, porque a máquina não centrifugou.
Resultado, tive de ficar esperando a roupa secar de manhã, e acabei gastando
bem mais, pois foi necessário adicionar moedas para que a roupa secasse
efetivamente. Érica não quis perder a companhia de Luís e foi embora com a
roupa molhada mesmo.
Enquanto a roupa
terminava de secar, aproveitei para dar uma volta em Portomarín, porque como eu
cheguei de noite, não vi nada. A cidade é bem pequena. E cheia de charme. A rua
principal é quase toda formada por edifícios brancos, de janelas verdes e detalhes
em pedra, com grandes arcos embaixo. E na praça principal, uma Igreja
curiosíssima. A fachada frontal dela lembra mais uma torre de castelo,
quadrada. Imagine uma grande torre quadrangular, de pedra, com uma rosácea no meio,
no alto, e uma portada em forma de arco arredondado, com folhagens, seres
míticos e figuras sacras esculpidas na pedra. Deve ser um raro exemplar da
arquitetura românica. Se não fossem as portadas e capitéis (tem uma na
lateral), e uma nave arredondada por detrás, a pessoa podia pensar que era uma
torre de fortaleza, ou parte de um antigo castelo.
Minha volta na pequena
Portomarín deve ter durado uns quinze minutos. Voltei ao albergue pelo outro
lado, passando por um parque na beira da encosta, com bela vista para o rio.
Foi quando me dei conta de que ao pé da enorme ponte de concreto tem uma
pontezinha baixinha, de arcos de pedra. Deve ser centenária. Recolhi minha
roupa e comecei minha caminhada. Cruzei a ponte altíssima e logo entrei por uma
mata fechada. Havia outros peregrinos caminhando à minha frente. Um deles não
calava a boca. Eu chega estava com pena dos companheiros. Ele falava em inglês,
com um sotaque que me pareceu brasileiro. A criatura, ainda por cima, falava
super alto. Resolvi parar um pouco, pra dar uma distância deles e poder rezar
com tranquilidade. Estava eu esperando eles se afastarem, quando vejo um enorme
galho caindo no chão, alguns passos à minha frente. Ouviu-se o estrondo da
queda. O galho se fez em pedaços. O homem que falava demais e os outros estavam
alguns passos à frente do galho. Com o barulho, eles deram um pulo e se
voltaram para trás. Sorrimos uns para os outros, acho que todos agradecidos por
ninguém ter se ferido. Foi apenas uma questão de segundos.
A mata fechada não
durou muito. Logo cheguei ao cume da colina que estava subindo e a partir dali,
passei a caminhar ao lado ou pelo meio de bosques de pinheiros. Outra paisagem.
Muito bonita também. Os bosques de pinheiros são mais abertos. A gente pode ver
para além deles. Também caminhei ao lado de pastos, e por certo tempo andei
junto a uma rodovia. De novo, muitas macieiras carregadas de maças bem vermelhinhas.
Nos pontos mais altos, sem árvores, dava para apreciar a linha do horizonte.
Vislumbrei a cadeia montanhosa que cruzei um dia desses. Aliás, essa sensação,
de vislumbrar no horizonte distante as montanhas que você já cruzou, é muito,
muito gratificante.
Passei por alguns lugarejos
de poucas casas, por várias propriedades rurais, e por uma enorme fábrica
abandonada. Em várias das casas desses lugarejos da Galícia, há uma estrutura
curiosíssima, que funciona como silo, para armazenagem de grãos (milho,
parece). Esses silos têm todo o aspecto de um jazigo de cemitério, são casinhas
compridas e estreitas, com uma cruz acima. Só que estão como que atrepados, assentados sobre bases de
madeira ou cimento para ficaram distantes do chão e evitarem visitantes
indesejáveis, conforme tinha me explicado Paulo.
Ontem foi mais um dia
de caminhada lenta. Muitos altos e baixos, e eu ainda estou ficando muito
cansada com o peso da mochila. Já tinha decidido que eu não iria até a próxima
cidade de maior porte. Então, parei em Eirexe, onde tem um albergue municipal
bem simplesinho. A questão é que indaguei por lá e confirmei que os dois
albergues existentes antes de Palas de Rei já estão fechados. O jeito foi ficar
em Eirexe. Colchões e travesseiros tinham toda pinta de serem velhos como a Mãe
do Sarampo. Fiquei morrendo de medo de ter bicho de cama, mas não tinha
solução. O jeito era pernoitar por ali mesmo. Aliás, deixa eu te dizer que tem
uma razão pragmática também pra eu voltar a levar minha mochila, que é o fato
de muitos albergues já começarem a fechar nessa altura do ano.
Tomei meu banho (de
novo chuveiros sem porta) e fui para o bar de frente, pegar o sinal da internet,
pra poder falar com vocês. Estava por lá, usando o zap zap, quando chegaram
Kevin e Dominique, dois senhores que eu havia conhecido na entrada de Eirexe.
Kevin é americano e Dominique é francês. Eu nem pretendia jantar, mas acabei
ficando com eles, tomamos vinho, eu comi uma salada e tivemos uma conversa
agradabilíssima. Falamos sobre política internacional e viagens. Dominique
deixou o emprego e vive, já há alguns anos, de se voluntariar em países da
África e da Ásia. Em dezembro ele irá para Calcutá, trabalhar com as Irmãs de
Madre Teresa. Claro que eu adorei os relatos deles! E ele me deu uma excelente
de um Ashram de Yoga no Sul da Índia.
Contra todos os
indícios, consegui dormir bem no albergue de Eirexe. MariPaz, a hospitalera,
ligou o aquecedor e o quarto ficou bem agradável. A única coisa é que fui
dormir impressionada com essa história dos bichos. Aliás, estou até agora.
Estou o tempo todo com a sensação de alguma coceira, ou de algum bichinho
caminhando em mim. Mas é mais minha mente mesmo. Não tem nenhuma nova picada.
Enfim, dormi bem. Acordamos todos tarde (só tem um quarto no albergue de
Eirexe) e quando saí do lugarejo (que deve ter umas cinco ou seis casas), já
era mais de nove. Desde domingo passado que mudou a hora na Espanha. Acabou o horário
de verão, então, atrasamos os relógios uma hora. Isso significa que às oito
horas já tem luz. Eu poderia passar a caminhar mais cedo. Ainda não consegui
essa façanha.
Comecei a andar com
uma chuva fininha, embora o céu não estivesse todo encoberto. Pelo contrário,
havia vários clarões azuis entre as nuvens. Desde ontem que ver o azul do céu
tem me dado imensa satisfação. Andava meio cansada de tanto céu cinzento e
tanta chuva. Decidi andar pouco hoje, não só para descansar um pouco o corpo
desses últimos dias de caminhada com a mochila, mas para acertar meu roteiro
com dormidas em cidades de maior porte, de modo que eu tenha mais opções de
hospedagem. Assim, caminhei apenas oito quilômetros hoje. Cheguei cedo a Palas
de Rei. A cidade não tem nenhum charme. Nem mesmo a Igreja de Santo Tirso é
interessante. Diz que é do século XII, mas não conserva nada dessa época.
Entrei, rezei, acendi uma vela pro Sagrado Coração de Jesus e conversei um
pouco com um senhorzinho que estava tomando conta da Igreja, e que é uma
fofidade, e com um peregrino italiano. O senhorzinho nos disse algo tão singelo
e bonito: o sorriso é uma língua
universal, dispensa tradução. E, realmente, quantas vezes a gente se
comunica, no Caminho, apenas com um Buen
Camino e um sorriso?!
Depois da Igreja, fui
fazer compras num supermercado. Foi o tempo que deu uma hora e me dirigi ao
albergue que me tinha sido muitíssimo recomendado por Norma e Tom. Realmente, o
Albergue San Marcos é excelente! Todo novinho, transado, colorido. Estou
adorando. Fiz uma boa salada para o almoço e passei a tarde de pernas pro ar,
descansando, meditando e escrevendo minhas derradeiras cartas de perdão (pelo
momento!). Já lanchei e estou pronta para dormir. Roupa de cama nova, cobertor
limpo e macio. Beliches amplas, com altura suficiente pra pessoa se sentar sem
topar com a cabeça em cima. Um luxo, rs, rs, rs. O pé está me incomodando menos,
viu?! E está menos inchado. A bursite também está melhor hoje. E, se Deus
quiser, daqui a quatro dias estarei chegando a Santiago!
Por ora é isso,
Niquinha.
Cuide-se!
Beijos mil,
Léia