sábado, 30 de maio de 2015

A magia de New Orleans

03/05/15



A vida é feita de escolhas. Eis uma das obviedades que todo mundo repete, e que são tão difíceis de pôr em prática (os reformistas da língua que me desculpem, mas tenho dificuldade de abrir mão dos acentos diferenciais). Eu mesma costumo sucumbir com facilidade à tentação de assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Ou, mais objetivamente, de achar que se eu me aplicar com seriedade, vou dar conta de fazer “tudo” naquele dia, ou naquele espaço de tempo. Esse é um tema candente para mim, por isso, fico voltando a ele. Me desculpem a repetição. Em Nova Orleans, mais uma vez, me pus à prova. Domingo (03/05) era o último dia de Jazz Fest. Os brasileiros do albergue estavam excitadíssimos, pois havia vários shows interessantes, ou “imperdíveis”. Visto que tinha apenas três dias na cidade e já havia gasto o primeiro no Festival, ou bem usava meu dia para conhecer Nova Orleans (algo com que sonhava desde muito jovem), ou bem ia aos shows imperdíveis do Jazz Fest. Para mim não foi um dilema simples, mas acabei me resolvendo pela cidade. E, o que é mais importante: tomada a decisão, não me senti frustrada com o que ia perder! Acho que realmente estou aprendendo a lidar com o fato de que não se pode ter tudo.
Foram dois dias maravilhosos passeando por Nova Orleans, e saí de lá inteiramente apaixonada pela Crescent City (é uma referência à forma de lua crescente que a cidade assumiu, em sua relação com o rio Mississipi). Conheci Nova Orleans da melhor maneira que se pode conhecer uma cidade, caminhando. Caminhando muito. Tomei o bondinho (street car) -- super charmoso -- apenas para me deslocar entre o meu albergue e o centro histórico. Fiz cinco tours guiados com o Free Tours by Foot e amei todos eles. Todos os guias eram muito bem preparados e em cada um deles aprendi fatos e detalhes interessantes do processo histórico-social que fez de Nova Orleans o que ela é hoje. Além de tours pelos bairros mais pitorescos da cidade, fiz três tours de natureza, digamos, exotérica: o Voodoo Tour, um Ghost Tour e um tour do cemitério mais antigo da cidade.
A primeira constatação importante é que Nova Orleans é bem mais do que a Bourbon Street. Aliás, qualquer rua paralela ou perpendicular à Bourbon St. é mais interessante do que a própria, visto que a concentração absurda de bares num trecho específico da Bourbon St., assim como o movimento excessivo de solteiros beberrões durante as noites faz dessa famosa rua um ambiente inteiramente turístico e bastante caricato. Minha rua preferida: Royal St., um charme, com suas muitas galerias de arte e bistrôs de pátios floridos e arejados.
Caminhar pelo French Quarter (um conjunto bastante extenso de quarteirões com casas históricas de arquitetura criole, bem típica) durante o dia é uma experiência inteiramente distinta, e bem mais interessante, tanto porque não existe a atmosfera de excesso e decadência que a noite da Bourbon St. traz, como porque à luz do dia é possível apreciar a belíssima arquitetura típica da cidade, e que, conforme aprendi nos meus tours, têm mais a ver com os espanhóis do que com os franceses. Nova Orleans foi sucessivamente ocupada por franceses, espanhóis, franceses, até ser vendida aos americanos por Napoleão, que precisava de dinheiro para bancar seus delírios militares (1803). Nesse meio tempo, a cidade foi devastada por dois grandes incêndios (século VXIII). E foi após o segundo deles, que a arquitetura típica da cidade floresceu, com seus amplos, charmosos e convidativos abalcoados, de inspiração espanhola. Os guias não mencionaram esse detalhe, mas imagino que as grades em ferro trabalhado sejam uma variação um pouco posterior, após a disseminação desse material na construção civil pelos ingleses, na segunda metade do XIX.
A história contada sobre Nova Orleans, nos tours que fiz, enfatiza muito a cultura creole, ou seja, híbrida, em que cada civilização ou povo deixou sua contribuição, incluindo, e com destaque, os africanos. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. Tal como no Caribe, também em Nova Orleans, pessoas, culturas e religiões se misturaram. O Voodoo, indevidamente sensacionalizado (e demonizado) por Hollywood, nada mais é que uma religião sincrética, prima-irmã do nosso Candomblé, inclusive com vários Orixás semelhantes, cuja origem se encontra no antigo Reino do Daomé.
O belíssimo parque Louis Armstrong foi construído exatamente no lugar onde os negros, escravos e libertos, se reuniam, aos domingos, para reverenciar seus Orixás (Congo’s square). Foi isso que aprendi no primeiro tour, feito no domingo de manhã. No Voodoo de Nova Orleans as principais figuras são as Queens (equivalentes às nossas Mães de Santo). Marie Laveau é a mais famosa delas. Trata-se de uma negra livre, que viveu da virada do século XVIII para o XIX, que era cabeleireira das mulheres ricas, e uma Mãe de Santo muitíssimo prestigiada, inclusive pela elite branca ou mestiça local. Sua morte mereceu matéria no New York Times, o que não é pouca coisa para a época. Segundo a guia, Marie Laveau era uma Queen que só realizava rituais para o bem das pessoas. Suas poções eram vendidas nas poucas farmácias da cidade, e quando ela morreu, teve seu lugar ocupado pela filha, que não tinha a mesma seriedade da mãe.
Hoje em dia, Marie Laveau meio que se incorporou ao panteão local, tornando-se, para os praticantes do Voodoo, o que são os Santos para os católicos. As pessoas lhe erguem pequenos altares e lhe fazem oferendas, em troca de favores solicitados. As oferendas giram em torno da temática profissional de Laveau: grampos, presilhas, elásticos e batons. No tour do cemitério (que só pode ser visitado com um guia profissional, registrado na Arquidiocese), visita-se o que se acredita ser o túmulo de Marie Laveau, e lá estão os grampos, elásticos e batons. Infelizmente, a Arquidiocese resolveu reformar o túmulo e apagou as marcas que as pessoas foram deixando no túmulo ao longo dos séculos (o que pareceu à guia, católica, um procedimento razoabilíssimo e muito necessário, me deu palpitações de desgosto e de tristeza). E agora, todos os dias, ao final do dia, os funcionários do cemitério passam recolhendo as dádivas deixadas pelos crentes (ou duvidosos, porque sempre tem a turma dos “vai que”). Fiquei ouvindo o relato da guia e imaginando como o suposto túmulo de Marie Laveau devia estar apinhado de objetos, assim como estava decorado com as marcas da fé e da devoção secular. Uma pena que a Igreja Católica, a quem pertence o cemitério, já não tenha a mesma tolerância que tinha o arcebispo da época de Marie Laveau. Ao que consta, a Queen ia à missa diariamente e era muito próxima ao arcebispo, junto a quem cuidou dos enfermos, quando uma epidemia de febre amarela assolou a cidade.
Enfim. Pelo menos Nova Orleans ainda tem um número considerável de praticantes de Voodoo. E a cidade parece ter orgulho desse passado mestiço, que, entre outras coisas, também está na origem do Jazz. Isso me remete, obviamente, ao Brasil. E a gente tende a amar o que bonito nos parece. Infelizmente, já não está de pé o bairro, justamente ao lado do cemitério, onde se concentravam os bordéis, e que se considera ser o berço do jazz. E que também fica bem perto do Congo’s Square.
Após o Voodoo Tour, me dirigi à orla do Mississipi. Contemplei uma vez mais esse rio triste, que só pode ser navegado por barcos grandes, capazes de resistir à força de sua poderosa correnteza. Esperei um enorme trem passar e fiquei pensando em como os trilhos e o apito do trem fazem parte da paisagem urbana de importantes cidades americanas. Gosto de trens. Acho que eles agradam a minha sensibilidade nostálgica. Antes de voltar à pousada, uma pausa no famoso Café du Monde, para provar os igualmente famosos beignets. São uma espécie de bolinhos de chuva com muito açúcar de confeiteiro polvilhado. Na definição americana: french donuts. Nada de muito especial, porém, não comê-los é como ir a Portugal e não provar um pastel de Belém. A fila na frente do Café dobra a esquina em certos horários.
Nesse domingo de sol, depois de andar muito e suar bastante, voltei pra pousada, tomei banho e saí de novo, pro meu Ghost Tour, à noite, obviamente. Venho descobrindo que os americanos têm uma obsessão com histórias de fantasmas. Todas as cidades que tenho visitado têm ghost tours. O de Nova Orleans é particularmente interessante, porque acontece no French Quarter, onde não apenas o cenário de casas centenárias é super propício, como as ruas são mal iluminadas (exceção feita à Bourbon St.). Além disso, com dois grandes incêndios, e todas as vicissitudes e as crueldades da escravidão, abundam almas penadas, que ainda vagam por esse mundo em busca de alívio para suas dores. Por sinal que uma das histórias mais tristes da noite foi de uma mulata que era amante de um homem branco da elite, que lhe prometeu casamento se ela passasse uma noite no telhado, nua. A moça assim o fez e morreu congelada. Segundo a guia, o homem passou a noite com os amigos jogando, e não acreditou que sua amante tivesse coragem de enfrentar o frio de dezembro.
Um parêntese para repassar o que aprendi. As amantes, naquele tempo, em Nova Orleans, eram oficiais. Havia uma espécie de instituição do concubinato para homens casados, inclusive. Contratos eram assinados entre o homem (casado) e a jovem amante (em geral, mulata), determinando que o interessado estabelecesse a amante em uma casa, com todo o luxo que seu dinheiro pudesse pagar, casa essa que ficava para a amante quando os dois terminassem o relacionamento. Ter amantes por contrato era, inclusive, um sinal de status. Toda essa farra acabou definitivamente após 1803, quando ocorreu a compra da Lousiana pelos Estados Unidos. Foi aí que as regras morais endureceram e se estabeleceu a segregação racial, com leis que passaram a evitar e criminalizar as relações entre as “raças”. Impossível não deixar de sentir um alívio por não termos tido segregação racial no Brasil. Por mais que os sociólogos e militantes da causa negra critiquem comentários como esse meu, é difícil não reconhecer que existe uma diferença significativa, com implicações e desdobramentos importantes, entre a segregação (estabelecida por lei) e a discriminação. Mas isso é assunto para longas discussões.
Jantei no Gumbo Shop, uma indicação da guia do Ghost Tour. Comi Gumbo com quiabo (okra) e Jambalaya. Ambos são especialidades da Lousiana. Nos pratos que comi, não havia nada de extraordinário. O Gumbo é um prato curioso, uma espécie de caldo espesso e escuro, que tem aparência de caldo de feijão, mas é feito com farinha de trigo e temperos (em princípio).
Após o jantar, caminhei até a Frenchmen St. Essa, sim, é uma rua onde vale a pena ir, para escutar a boa e autêntica música de Nova Orleans. Está mais distante, e embora haja turistas também, a Frenchmen St. é frequentada pelos locais. Pequenos bares se sucedem, uns ao lado dos outros, quase todos com música ao vivo. São ambientes intimistas, animados, pitorescos. Cheios de alma, de vida. Entrei no Spotted Cat, que me havia sido recomendado por Caroline. Como esses bares são pequenos, ficam muito cheios. Quatro jovens músicos tocavam um blues de altíssima qualidade. Pedi um drinque e fiquei me deliciando com a música. Após algum tempo, saí e continuei andando pela rua, parei em mais uns dois bares, ambos com conjuntos tocando ao vivo, e quando estava começando a fazer meu caminho de saída da Frenchmen St., ouvi um jazz maravilhoso passeando suas notas pelo ar. Me aproximei de uma esquina onde um número considerável de pessoas dançavam, animadíssimas, acompanhando com os movimentos do corpo, a música tocada por um conjunto de uns 8 ou 10 homens, todos negros, com seus instrumentos de sopro, basicamente. Uma cena emocionante e inesquecível. Voltei caminhando, com a alma leve e feliz, até a Canal St., onde tomei o bonde para o albergue. O dia havia sido intenso.   


sexta-feira, 22 de maio de 2015

O Nola Jazz Fest

02/05/15

Uma coisa boa dos albergues (hostels) é que há muitos espaços de socialização. Além do quarto compartilhado, albergues costumam ter varandas ou pátios, e lounges, onde as pessoas acabam se encontrando e entabulando conversas. O café da manhã, servido numa copa coletiva, é um momento particularmente propício para os encontros.  Acordo pelo meio da manhã, tomo meu banho e me dirijo à copa.  No Nola Jazz House, o café da manhã consiste basicamente de café, leite, aveia e massa para panquecas ou waffles, com nutella, geleia ou mel. Eu como um pãozinho que trouxe comigo. Ainda estou comendo quando chega um grupo de brasileiros, homens e uma moça, na faixa dos trinta. Alguns deles são de Itu, a cidade das coisas gigantes (lembro-me de uma viagem que fizemos para Itu, quando eu era bem pequenina, e de como fiquei super impressionada com os objetos enormes que eram a marca registrada da cidade, pelo menos naquela época). Sou convidada para ir com eles ao Jazz Fest. Me alegro em ter companhia.
Saímos no início da tarde e vamos a pé. Uns 30 minutos de uma agradável caminhada, por uma espécie de calçadão urbano, já que não há praia. Trata-se de um gramado, com pista de bicicleta, no meio de uma ampla avenida. Em determinado trecho, passamos a caminhar num gramado, ao lado de um canal, uma pequena orla urbanizada. Estamos nos aproximando do local do Jazz Fest. É uma vizinhança adorável. As casinhas de madeira, avarandadas, típicas de New Orleans. Parece ser uma área de classe média alta. Muitas pessoas caminham para o Jazz Fest, como nós. Há uma leveza e uma alegria no ar.
É um belo dia de sol e, na verdade, começa a fazer bastante calor. Passamos por uma linda pracinha, e uma rua cheia de restaurantes charmosos. Estamos bem perto do Jazz Fest e, agora, uma pequena multidão caminha conosco. As ruas se fazem pequenas e apertadas. Mulheres e crianças negras anunciam a venda de água, limonada e algumas guloseimas, isso a despeito de um cartaz que diz que vendedores ambulantes não são permitidos. A cena me chama a atenção. Sinto-me um pouco como no Brasil.
Chegamos à entrada e há uma longa fila para a compra de ingressos. Sou a única que não havia comprado antecipadamente. Digo à galera que entre, porque certamente devo ficar uma hora naquela fila. Um dos rapazes se oferece para vir me encontrar num determinado ponto, pra eu não me perder do grupo. Muito gentil. Eles entram e eu vou pra minha fila. O sol na cabeça incomoda um pouco. Mas a fila acaba andando rapidamente, pois há vários caixas e é tudo muito organizado.
O Nola Jazz Fest está em sua décima sétima edição e é um evento importante do calendário internacional de festivais de música. No albergue onde estou, várias pessoas vieram de diferentes lugares do mundo, só para esse festival. A estrutura é gigantesca. São 12 palcos, com programação das 11 da manhã ãs 7 da noite. Tem música para todos os gostos, e estrelas nacionais e de outros países se apresentam ao longo das duas semanas de programação. O espaço que abriga o Jazz Fest é um grande descampado, e ir do início ao final dele pode levar mais de meia hora.
Como tenho bastante tempo até a hora de encontrar Matias, vou dar uma espiada na tenda de Blues. Três mulheres fazem um show. Cantam muito bem, e a plateia está animadíssima. A tenda está lotada. Parte do público está de pé, dançando. As Divas encerram o show com God Bless America. Todos se levantam e cantam com elas. Fico emocionada.
Sigo para a tenda de Gospel Music, onde marquei o encontro com Matias. Estão preparando o palco para o próximo show. Enquanto isso, uma espécie de apresentadora, brinca com o público. Logo uma grande família sobe ao palco. Cantam músicas animadas. Os homens tocam instrumentos e as mulheres e crianças cantam. Não posso dizer que a música me emociona, mas gosto da experiência. Entre uma música e outra, a matriarca apresenta os vários componentes do grupo, que é formado por quatro gerações da mesma família.
Saio no meio do show para encontrar Matias, que aparece exatamente na hora marcada. Então, temos que atravessar uma multidão para chegar ao local onde está a galera paulista, bem perto do palco principal.
Começa o show de Jerry Lee Lewis, uma lenda do Rock and roll americano. É tido como um dos pioneiros do gênero, e seu instrumento é o piano. Um mar de gente se aglomera ao redor do palco, para ouvi-lo. Ele já é um senhor de 80 anos, não se sabe quanto tempo mais vai durar. Toca seu piano com um vigor, uma intensidade impressionantes. A plateia vibra.
A galerinha paulista é gente boa. Os rapazes são amigos de infância. As duas moças são esposas. Só J. não faz parte da turma. Também é de São Paulo, mas como eu, conheceu a galera no albergue. Ele trabalha na Bosh e está morando nos Estados Unidos. Os ituenses fumam uma maconha empurrada. Eles fazem amizade com um casal americano na faixa dos 50. Quando menos espero, estão todos na mari juana. Acho engraçado porque ninguém me oferece. Algo na minha linguagem corporal deve ter anunciado que não é a minha praia. Eu e Matias somos os únicos a não compartilhar os cigarros que circulam, de tempos em tempos.
Acaba o show de Jerry Lee Lewis e enquanto arrumam o palco, nos sentamos o chão. Faz um calor grande, e o sol castiga o cocoruto. Engraçado, porque são cinco horas da tarde e é nessa hora que o sol parece mais abrasador. A multidão, que já era grande, se multiplica. As imagens que passam no telão são impressionantes. Sou péssima nesse tipo de cálculo, mas deve ter pelo menos umas cem mil pessoas. O show de Elton John é animadíssimo. Sua performance vigorosa ao piano é impressionante. Como de costume, ele veste um terno brilhoso, extravagante. Está beeem gordinho. A cara parece inchada, e refeita em plásticas ou botox. Seu comportamento no palco denuncia um forte narcisismo.
Quando o show termina, estamos exaustos, com o sol, o calor, e tantas horas de pé. Esperamos um pouco para que a multidão diminua. Ainda assim, pegamos congestionamento de gente na saída. E quando alcançamos a rua, uma surpresa. Em praticamente todas as casas da vizinhança charmosa e claramente abastada, há uma festa rolando, com música e tudo. Em algumas delas, mesas com bebidas e comidas estão dispostas nas calçadas. Tudo parece uma festa só. As pessoas continuam animadíssimas, fazendo dessas simpáticas ruas do entorno, um adendo ao Jazz Fest. Muito interessante. Pena que eu não tenha mais energia para curtir essa farra. A galera de Itu fica, eu e J. voltamos caminhando. Paramos num restaurante pertinho do albergue e comemos uma deliciosa comida creole, com crawfish e camarões.

De volta ao albergue, só penso em tomar um banho e me deitar. Acabo encontrando Caroline, e conversamos um pouco. Quando estou pra me deitar, chegam os rapazes de Itu, inteiramente bêbados. Mas ainda conseguem contar que foram convidados a comer um churrasco e beber, numa das casas do entorno do Jazz Fest. A hospitalidade sulista é mesmo particular. Lembro-me do rapaz que me ajudou com meu computador, da primeira vez em que estive em New Orleans, a caminho de Baton Rouge: “Já ouviu falar na hospitalidade sulista? Nós levamos isso a sério”.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Dia 25: Da sabedoria de relaxar e gozar

30/4/15

“Relaxe e goze” é uma mal fadada frase em virtude de seu contexto originário. Porém, encerra uma sabedoria importante, se conseguimos extrapolar suas origens. A lição importante é que quando estamos impotentes diante de determinada situação, ao invés de ficarmos lutando em vão com os fatos, melhor é tentar tirar algum proveito deles. Quando isso é possível, claro.
Acordo cedo para me despedir de D., que teve de viajar ao Texas de forma imprevista. Nos abraçamos com emoção antes que ela entre em seu pequeno conversível. Agradeço muito a acolhida e tudo que ela me ensinou, e prometo ficar em contato. Eu e L. devemos partir na manhã seguinte. Deixaremos a chave em lugar estratégico do quintal.
Após a partida de D., me ponho a limpar o gramado em frente da casa, e o quintal, que estão cobertos de galhos e folhas, arrancados numa forte tempestade que atingiu alguns estados do Sul dos Estados Unidos, na última segunda-feira. A tempestade assustou mais do que causou estragos. Nenhuma vítima, nada de inundação. Alguns prejuízos materiais, e o susto. Bom, limpo a frente da casa e vou para o quintal, catar os galhos e terminar de replantar umas mudas. São minhas últimas tarefas na casa de D., ainda que ela tenha me dito que não precisava me preocupar. Temos um dia de sol e calor e quando termino minhas tarefas, estou com bastante sede. Abro a porta de trás, para entrar em casa, e, para minha enorme surpresa, percebo que está trancada. Dou a volta na casa e constato que a porta da frente também está trancada. O carro de L. não está. Ele saiu e me deixou do lado de fora!!!
 Minha primeira reação é de raiva e desespero. Por que raios esse menino foi trancar a porta de trás? Não viu que eu estava no quintal?!!! O que me desespera é que quando L. sai, não tem hora pra voltar. Quantas vezes o vi sair com sua espingarda no carro, para atirar em esquilos inocentes, e voltar tarde da noite? E se for esse o caso? O que vou fazer se ainda não é nem meio-dia, e não tenho nem sequer algum dinheiro comigo? Vou passar o dia inteiro com sede e com fome? E ainda por cima sem poder ir a canto nenhum, porque ele também pode voltar, e se eu não estiver em frente de casa, ele não saberá que estou trancada do lado de fora. Meu plano de passear em Baton Rouge, visitar o museu de artes plásticas e o Old Capitol, então, é vaca que foi pro brejo. Logo no meu último dia em Baton Rouge! Sinceramente.
Por uns bons 15 minutos me entrego a esses sentimentos de raiva e desespero. Me sinto impotente. Isso me irrita profundamente. Quanto mais penso na minha sede, na minha fome e no passeio que não poderei fazer, mais raiva sinto. Não consigo ver uma saída pra minha situação. Até que resolvo começar a rezar. Pego uma cadeira no quintal, coloco-a à sombra da grande árvore que há na frente da casa, sento e fico rezando. Peço a Deus serenidade. Aos poucos vou respirando mais devagar e serenando. É então que penso que posso beber a água da mangueira (estou com muuuuita sede), já que na casa bebemos água da torneira mesmo. Bebo água e volto pra minha cadeira. Me lembro dos tomates que há na horta, e que estão prontos para serem colhidos. Se L. demorar, já não precisarei mais passar fome. Então, penso em como matar o tempo, e me lembro de que meu plano era o de fazer ginástica antes de tomar banho para ir passear. Por que não fazer minha ginástica ali, no gramado, ao ar livre, em vez de trancada no meu quarto? Passo do pensamento à ação em poucos segundo. Enquanto faço meus exercícios, fico mentalizando e pedindo aos Anjos que tragam L. de volta pra casa logo. Quando estou terminando a segunda série, L. chega. Como já estou serena, com toda tranquilidade do mundo lhe peço que destranque a porta dos fundos. Ele se dá conta de que me deixou trancada e pede mil desculpas. Percebo que ele não fez por mal. De minha parte, prestei atenção à lição (que não é nova!). Não adianta se debater contra circunstâncias que somos incapazes de modificar. É preciso se adaptar a elas. E da melhor maneira.
Não sei se foi o remorso, mas L. se oferece para me levar pra passear no centro de Baton Rouge. Ótimo. Não precisarei andar 40 minutos até o ponto de ônibus, nem ficar esperando pelo busu. Como demonstrou Guimarães Rosas, quantas vezes o bem acaba resultando do mal. Vou ao museu de artes plásticas da Universidade (quinto andar do Shaw Center for the Arts). Basicamente, quero apreciar com calma as obras de Clementine Hunter. Na realidade, não há nada de muito especial na sua pintura, do ponto de vista estético. Porém, há uma riqueza no registro da vida nas antigas plantations de Cane River, e algo de cativante na simplicidade dos seus quadros.
Da exposição de Clementine Hunter, vou com L. ao Old Capitol. Andamos com passo apertado, porque está pertinho da hora de fechar. Esse edifício, erguido nos anos 30, por um importante governador da Lousiana, é o mais alto palácio de governo dos Estados Unidos, segundo dizem. O estilo é eclético e há um belo jardim em frente. Dentro, o hall é todo coberto de mármore, com predomínio de preto e vermelho. Há grandes painéis nas laterais e enormes lustres. A atmosfera é excessiva e pesada. Do lado direito, a House of Representatives. Do lado esquerdo, o Senate. Um senhor de bastante idade, se aproxima da gente e fornece informações sobre elementos da arquitetura da House of Representatives. A única coisa que me desperta interesse é saber que o material utilizado no teto, lindamente decorado, é feito do bagaço da cana. Muito curioso. Subimos à torre, o mais alto ponto de observação da cidade. Bela vista. Vê-se o Mississipi de um lado, com suas pontes, e um grande lago do outro. Deixamos o prédio e caminhamos pelos jardins e pelo parque nos fundos do palácio, próximo ao lago. Na sequência, caminhamos de volta à região mais central de Baton Rouge, perto do Old Capitol. Nos separamos. Sigo para a beira do Missisipi. Sento-me e fico olhando para o rio. Toco a água gelada. D. me explicou que o leito do Missisipi é todo acimentado. Olhando para o Mississipi, nesse momento, penso em como ele é um rio aprisionado. Não tem mais a liberdade de correr por onde lhe apetece. Não pode mudar seu curso. Talvez por isso tenha me parecido um rio triste.
Caminho até o Old Capitol. Visitei-o no domingo, com D. Hoje funciona como um museu do estado. Nas paredes do edifício em forma de pequeno castelo, as fotos de todos os governadores. Uma exposição virtual permite ao visitante informar-se sobre qualquer um deles. Muitas referências à Guerra Civil, que tantas marcas parece ter deixado nos sulistas. Nesse museu, aprende-se que a capital administrativa da Lousiana mudou várias vezes, ao longo do tempo. Em algumas ocasiões, esteve em Nova Orleans, e acabou se estabelecendo definitivamente em Baton Rouge. Aparentemente, desistiram de Nova Orleans porque os políticos tinham coisas demais com que se distrair na cidade do Jazz e do Mardi Gras.
A verdade é que Baton Rouge é uma cidade sem charme. Com poucas coisas interessantes para um turista. Seus museus são modestos, as coleções pouco significativas. A própria paisagem do Mississipi é sem graça. A área mais bonita da cidade é o enorme e arborizado campus da LSU.
Caminho mais um pouco e sento num banquinho de praça, em frente a um bar onde deve haver uma sessão de piano. Marquei o reencontro com L. ali. Enquanto espero por ele, observo o bar vizinho, onde um músico se prepara para começar seu show de happy hour. Começa a tocar seu violão. Duas universitárias, com micro shorts e barriga de fora se aproximam do músico e ficam fazendo bambolê. Uma delas tem uma cerveja na mão. A outra faz acrobacias com o bambolê. Ao lado, o pianista, de chapéu preto e piercing gigantesco na orelha, faz embaixadinhas com uma bola de tênis. A hostess do bar e o gerente, ambos bem jovens, se derretem um para o outro. Me divirto observando a cena.
L. chega. Desistimos de ir para o piano bar e voltamos para a beira do Mississipi para ver o pôr-do-sol. Nos deitamos na encosta de cimento, pertinho da água e ficamos observando o céu se enfeitar de alaranjados, vermelhos e amarelos. O pôr-do-sol é um belo espetáculo da natureza. Sempre. Por trás de nós, a lua já começa a subir. Está quase cheia. Enquanto isso, conversamos. L. diz que não andará mais armado (perdeu o emprego que D. havia conseguido pra ele, por portar uma arma), que aprendeu a lição. L. é um desses jovens que se acham agredidos na sua individualidade, ou inteligência (?) por seguir regras, quaisquer que sejam elas. Tento dizer-lhe que a sociedade seria bem pior sem regras do que é com elas. E que mais importante do que seguir as regras é fazer a coisa certa. Frequentemente, há uma coincidência entre ambas. De todo modo, fazer a coisa certa sempre nos levará a respeitar o espaço e os direitos alheios, além de garantir paz de espírito, que é das coisas mais preciosas que se pode almejar na vida.

Me despeço do céu e das estrelas de Baton Rouge. Um ciclo está prestes a se encerrar. Amanhã rumarei para Nova Orleans.

Cane River: um passeio pela história creole


 Os quadros de Clementine Hunter me levaram por caminhos surpreendentes.
Ao comentar com D. que havia visto os quadros dessa senhora negra, que trabalhou apanhando algodão em uma plantation, ao Norte da Lousiana, ela se animou para me levar a Cane River. Quase quatro horas de estrada separam Baton Rouge do Cane River Criole National Historical Park. Saímos cedo de casa. Por sorte, faz um belo dia de sol, porém, sem o calor escaldante que já cheguei a sentir na Lousiana. Quanto mais nos afastamos de Baton Rouge, mais rural e mais bonita vai ficando a paisagem. As áreas urbanas às margens das estradas americanas não costumam ter muito charme. Já as áreas rurais são belas, com muitas árvores ladeando as highways ou freeways.  D. já foi motorista de caminhão (aos 20 e poucos anos, na década de 70, baixinha como ela é!), e me fornece informações interessantes e úteis sobre as rodovias nos Estados Unidos. Eu dirijo o carro, porque D. dormiu pouco à noite.
Após algumas horas de highway, pegamos a saída para o parque nacional de Cane River, e caímos numa estradinha estreita e singela, de mão dupla, com campos de milho dos dois lados. Há buracos e remendos no asfalto. O cenário me faz pensar nas estradas nordestinas que cortam nossos canaviais. Seguimos por essa estradinha em busca da Melrose Plantation. Acabamos dando de cara com outra plantation, chamada Magnolia. A primeira coisa que avistamos são as casas dos escravos. São as primeiras habitações de escravos que vejo nos Estados Unidos, pois elas já não existem nas plantations que havia visitado antes. A Magnolia Plantation foi estabelecida em 1835. Alguns edifícios originais ainda estão de pé, incluindo esses casebres onde viviam escravos, e que se situam a poucos metros da casa-grande. Escavações arqueológicas encontraram várias ferramentas de trabalho, que se estão penduradas ou encostadas nas paredes de um enorme galpão, onde abelhas produzem um forte zunido. Aprendo que as edificações, naquela época, e nessa região, utilizavam a mesma tecnologia das nossas casas de taipa: barro socado entre tiras de madeira (bem mais grossas as deles, no entanto). As paredes eram, então, caiadas, para proteger o barro. Só que no Sul dos Estados Unidos, os edifícios mais importantes das plantations, como as casas-grandes, eram revestidos de madeira por fora. De madeira pintada também eram feitas as amplas e acolhedoras varandas. É o caso de uma das estruturas que se pode visitar na Magnolia Plantation, que servia de hospital para os escravos. Isso é novidade pra mim. Um hospital, dentro da plantation, para tratar dos escravos, que certamente adoeciam com frequência. Terá sido o pragmatismo americano que levou à existência de tal tipo de estrutura? É o que me pergunto.
Do hospital caminho pelo pasto até as casinhas dos escravos. São poucos metros, mas havia chovido, e o terreno está todo encharcado. Praguejo contra mim mesma por não ter vindo de tênis. Porém, por nada no mundo, vou deixar de entrar numa casinha dessas. Enfio a sapatilha na lama. A calça já está mesmo toda chapiscada. Em determinado ponto, desisto das sapatilhas, porque posso acabar escorregando. Me descalço e sigo caminhando pela lama, com o pé no chão. As casinhas são, curiosamente, feitas de tijolos de barro. Pedaços de cal e uma fina argamassa ainda podem ser vistos nas paredes descascadas, dentro e fora das casas. Dois pequenos cômodos são divididos por uma parede, com uma passagem estreita e baixa. Preciso abaixar-me para entrar no que seria um quarto. A única dessas casinhas em que se pode entrar tem um mobiliário que pretende reconstituir o ambiente da época. Difícil acreditar que a vida dos escravos fosse tal como se apresenta aos olhos do visitante, hoje. Mesa, cadeiras, armários, fogão, panelas, bacias, lamparinas se dispõe criando um ambiente doméstico demasiado aconchegante. Uma toalha de plástico xadrez e uma cadeira dos anos 60 acentuam minha impressão de uma composição bastante fake. Em todo caso, a edificação é original. Os telhados e persianas são novos, em alumínio, e imagino que tenham sido postos para proteger os edifícios das intempéries.
A casa-grande é que não é mais o prédio original, queimado pelo Exército da União, na guerra civil, que deixou sequelas profundas no Sul. Seja nos vários panfletos sobre as plantations, seja nas coleções e inscrições dos museus que visito na Lousiana, seja em minhas conversas com D., a Guerra Civil se me afigura como uma tema ainda quente e traumático para aos sulistas. A União queimou casas e plantações, mas há algo para além disso. D. com frequência fala do “Norte”, associando essa figura a conceitos como arrogância e preconceito. Confesso que a persistência e a presença viva dessa questão, quase dois séculos depois, me surpreende. Descubro que escravas negras jogaram um papel importante nessa Guerra, transmitindo ao Exército da União informações que escutavam nas conversas das casas-grandes, onde se realizavam reuniões e encontros dos comandantes do Exército Confederado.
Retomamos a estrada e seguimos ao longo do Cane River, originalmente chamado Red River, em virtude das fecundas terras vermelhas do seu entorno (certamente propícias à agricultura de plantation, tal como no caso do nosso massapê). A paisagem é fofa. Muitas árvores às margens do rio, algumas delas com suas folhas se debruçando sobre as águas. Aqui e acolá, uma casinha de madeira avarandada, típica do Sul. As curvas da estrada, que obedecem o curso do rio, conferem charme ainda maior ao passeio. Temos um belo dia de sol. D. resolve tirar o teto do carro, e eu experimento, pela primeira vez, a sensação gostosa de dirigir um conversível, com o vento balançando a cabeleira. Paramos junto ao um senhor negro, que corta galhos de uma árvore, e pedimos informações. Ele nos responde com enorme amabilidade. Tem no falar a forte musicalidade negra sulista, que me delicia.
A caminho de Melrose, paramos na igreja de Santo Agostinho. Uma igreja católica, em madeira branca, construída por um ex-escravo, que se tornou um rico negociante e fundou uma dinastia creole em Cane River. Nos fundos da igreja, um pequeno cemitério guarda os registros de nomes e efemérides dos primeiros paroquianos. As poucas fotos existentes revelam uma comunidade de mulatos claros. D. me explica que são os free people of color de Cane River. Uma comunidade forte, coesa e afortunada, dessa região do estado, que foi colonizada pelos franceses, originalmente, e pelos espanhóis, na sequência, só tendo sido incorporada pelos americanos com a compra do vasto território da Lousiana (Lousiana Purchase), em 1803. Tudo que se refere a esse passado de raízes francesas, espanholas e negras, tende a ser chamado de creole.
A Melrose Plantation é bonita, mas menos interessante. Também tem edifícios originais, incluindo a casa-grande, que escapou da sanha dos Unionistas, porém, se parece mais às outras plantations da Lousiana. Seu principal atrativo, na verdade, é a casinha onde morou e produziu, por muitos anos, Clementine Hunter, a pintora naïve a que me refiro no princípio deste registro. Os móveis e objetos da casa parecem ser efetivamente originais. Num dos cômodos, um envelhecido retrato de John Kennedy, no outro, um de Martin Luther King.
De Merolse, seguimos para Natchitoches, a sede do distrito histórico de Cane River. Trata-se da cidade mais antiga de toda a Lousiana Purchase, que era absolutamente enorme. Não sei se será exagero meu, mas olhando para um grande mapa dos Estados Unidos, incrustado no chão do passeio ao longo do rio, no centro de Natchitoches, fico com a impressão de que a Lousiana Purchase deve corresponder a um terço do atual território americano (terras contínuas). Segundo D., Natchitoches é a sede da cultura criole da Lousiana, que seria essencialmente mestiça. D. tem nítido orgulho dessa herança criole. A rua principal de Natchitoches se estende ao longo do rio, e é muito charmosa, com seus sobrados de enormes varandas no andar superior, a maioria em ferro trabalhado, colados uns aos outros. Os térreos desses sobrados viraram, quase todos, restaurantes ou lojinhas para vender artigos diversos aos turistas. Caminhamos à sombra dessas varandas, apreciando as velhas fachadas dos edifícios. Entramos numa loja de ferragens antiquíssima, onde se vende de tudo e mais alguma coisa. A loja pertence ao passado, com seus balcões de madeira e suas estantes de caixinhas, cheias de pregos e parafusos de todos os tamanhos e espessuras. Lembro-me muito de Francisco Dantas e Maria Lúcia. É um lugar que eles teriam adorado conhecer.
Almoçamos num pub, onde como um delicioso sanduíche de jacaré, à moda cajun. Também provo uma torta de carne (meat pie), que faz a fama de Natchitoches. Nada demais. Voltamos caminhando pela calçada do lado do rio, adornada com belas árvores e muitos bancos de ferro. O sol, ainda forte, incide sobre os bancos, onde ninguém está sentado. Mais abaixo, descendo as escadas, algumas pessoas aproveitam a orla à beira do rio, protegida pela sombra de algumas árvores. Há gente sentada no gramado. Crianças brincam sob os olhos atentos dos pais.
Passamos pela igreja anglicana, D. reencontra velhos amigos. Seguimos para uma volta de carro pelo campus da Universidade do Norte da Lousiana. É um campus sem muito charme. Porém, significa muito para D., que estudou ali. Ela vai me falando das coisas no campus, assim como da cidade de modo geral, com uma emoção de quem fala de tempos felizes.

Já são quase oito horas da noite e começa a escurecer. Nos encaminhamos para a saída da cidade. Recolocamos o teto do carro, eu reassumo o volante e dirijo todo o caminho de volta. D. vai bebendo cerveja ao meu lado. Vamos conversando sobre questões muito pessoais da vida dela. Sua solidão e a força que ela faz para manter-se de pé me impressionam e me comovem. O dia que passamos juntas foi especial, uma espécie de coroamento de um período curto e intenso de convivência e aprendizagem.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Sobre peras e maças


De modo geral, frustrações derivam de expectativas não preenchidas. Muito tempo atrás, quando comecei a escrever neste blog, acho que postei um texto sobre como a felicidade tem a ver com as expectativas que cada um estabelece com relação à própria vida. E é claro que se você deposita suas expectativas de felicidade em coisas difíceis de serem conquistadas, ou que dependem muito de outras pessoas, suas possibilidades de se sentir frustrado e infeliz são bem mais elevadas.
O fato é que o mesmo princípio vale para os nossos relacionamentos com as pessoas. E de todas as pessoas que podem nos frustrar, talvez sejam os nossos pais que detêm maior potencial de nos ferir. Eu me considero uma pessoa abençoada, porque tive e tenho uma relação bastante saudável com meus pais. Mas conheci um número considerável de pessoas que carregam dolorosas marcas em virtude de relações complicadas com seus pais. Inclusive, minha opinião de mera observadora do comportamento humano é a de que as marcas e dores mais profundas são produzidas nas pessoas exatamente por seus pais e mães, ainda que, com frequência, isso ocorra de modo involuntário.
Sei bem que alguns pais e mães produzem danos voluntariamente em seus filhos, e o mundo, infelizmente, está cheio de horríveis histórias de violência e de abandono de crianças por seus pais. Porém, quando não se trata de violência física, nem de feridas abertas deliberadamente, tento cultivar, na minha vida, um princípio que pode ajudar a lida com frustrações provocadas pelas pessoas que amamos mais profundamente. É um princípio simples e óbvio, que minha irmã, Nica, vive repetindo: não se pode pedir a uma jaqueira que dê mangas.
Nessa última semana, passei muito tempo na cozinha com D. Ela gosta de cozinhar à moda antiga, nada de comidas pré-fabricadas. Tenho aprendido muitas coisas com ela, e enquanto cozinhamos, entabulamos longas conversas. Numa dessas ocasiões, após ouvi-la falar com amargura da mãe pela enésima vez, eu lhe disse a frase de Verônica, adaptada ao contexto americano, obviamente: não se pode pedir a uma macieira que nos dê peras. Essa ideia simples, de que talvez sua mãe tenha lhe dado aquilo que tinha dentro de si, e que se não deu mais, se não conseguiu ser a mãe compreensiva, amorosa, carinhosa e liberal que D. gostaria de ter tido, talvez fosse por falta dessas características. D. ficou olhando pra mim, fixamente, por alguns segundos ou minutos. E me disse: Why someone did not tell me this before? Esse comentário, motivado pelo desejo de sentir menos amargura nessa mulher que fui aprendendo a admirar, surtiu um efeito surpreendente. D. parecia atônita e admirada. Ontem, me repetiu que tem pensado muito sobre nossa conversa e que está aprendendo a ver seu passado sob uma nova ótica.
Obviamente, não acho que todos os problemas e traumas de todas as pessoas possam ser resolvidas com esse princípio. Porém, por experiência própria, posso dizer que quando conseguimos reduzir nossas expectativas e, sobretudo, quando nos esforçamos para observar e entender quais frutos cada pessoa pode dar, dependendo dos recursos afetivos que tenha dentro se si, nossos relacionamentos com elas podem ficar mais leves, mais gratificantes e, às vezes, menos doloridos.