03/05/15
A
vida é feita de escolhas. Eis uma das obviedades que todo mundo repete, e que
são tão difíceis de pôr em prática (os reformistas da língua que me desculpem,
mas tenho dificuldade de abrir mão dos acentos diferenciais). Eu mesma costumo
sucumbir com facilidade à tentação de assobiar e chupar cana ao mesmo tempo.
Ou, mais objetivamente, de achar que se eu me aplicar com seriedade, vou dar
conta de fazer “tudo” naquele dia, ou naquele espaço de tempo. Esse é um tema
candente para mim, por isso, fico voltando a ele. Me desculpem a repetição. Em
Nova Orleans, mais uma vez, me pus à prova. Domingo (03/05) era o último dia de
Jazz Fest. Os brasileiros do albergue estavam excitadíssimos, pois havia vários
shows interessantes, ou “imperdíveis”. Visto que tinha apenas três dias na
cidade e já havia gasto o primeiro no Festival, ou bem usava meu dia para conhecer
Nova Orleans (algo com que sonhava desde muito jovem), ou bem ia aos shows
imperdíveis do Jazz Fest. Para mim não foi um dilema simples, mas acabei me
resolvendo pela cidade. E, o que é mais importante: tomada a decisão, não me senti
frustrada com o que ia perder! Acho que realmente estou aprendendo a lidar com
o fato de que não se pode ter tudo.
Foram
dois dias maravilhosos passeando por Nova Orleans, e saí de lá inteiramente
apaixonada pela Crescent City (é uma
referência à forma de lua crescente que a cidade assumiu, em sua relação com o
rio Mississipi). Conheci Nova Orleans da melhor maneira que se pode conhecer
uma cidade, caminhando. Caminhando muito. Tomei o bondinho (street car) -- super charmoso -- apenas
para me deslocar entre o meu albergue e o centro histórico. Fiz cinco tours guiados com o Free Tours by Foot e amei todos eles. Todos os guias eram muito bem
preparados e em cada um deles aprendi fatos e detalhes interessantes do
processo histórico-social que fez de Nova Orleans o que ela é hoje. Além de tours pelos bairros mais pitorescos da
cidade, fiz três tours de natureza,
digamos, exotérica: o Voodoo Tour, um
Ghost Tour e um tour do cemitério mais antigo da cidade.
A
primeira constatação importante é que Nova Orleans é bem mais do que a Bourbon
Street. Aliás, qualquer rua paralela ou perpendicular à Bourbon St. é mais
interessante do que a própria, visto que a concentração absurda de bares num
trecho específico da Bourbon St., assim como o movimento excessivo de solteiros
beberrões durante as noites faz dessa famosa rua um ambiente inteiramente turístico
e bastante caricato. Minha rua preferida: Royal St., um charme, com suas muitas
galerias de arte e bistrôs de pátios floridos e arejados.
Caminhar
pelo French Quarter (um conjunto bastante extenso de quarteirões com casas
históricas de arquitetura criole, bem
típica) durante o dia é uma experiência inteiramente distinta, e bem mais
interessante, tanto porque não existe a atmosfera de excesso e decadência que a
noite da Bourbon St. traz, como porque à luz do dia é possível apreciar a
belíssima arquitetura típica da cidade, e que, conforme aprendi nos meus tours, têm mais a ver com os espanhóis
do que com os franceses. Nova Orleans foi sucessivamente ocupada por franceses,
espanhóis, franceses, até ser vendida aos americanos por Napoleão, que
precisava de dinheiro para bancar seus delírios militares (1803). Nesse meio
tempo, a cidade foi devastada por dois grandes incêndios (século VXIII). E foi
após o segundo deles, que a arquitetura típica da cidade floresceu, com seus
amplos, charmosos e convidativos abalcoados, de inspiração espanhola. Os guias
não mencionaram esse detalhe, mas imagino que as grades em ferro trabalhado
sejam uma variação um pouco posterior, após a disseminação desse material na construção
civil pelos ingleses, na segunda metade do XIX.
A
história contada sobre Nova Orleans, nos tours
que fiz, enfatiza muito a cultura creole,
ou seja, híbrida, em que cada civilização ou povo deixou sua contribuição,
incluindo, e com destaque, os africanos. Qualquer semelhança com o Brasil não é
mera coincidência. Tal como no Caribe, também em Nova Orleans, pessoas,
culturas e religiões se misturaram. O Voodoo, indevidamente sensacionalizado (e
demonizado) por Hollywood, nada mais é que uma religião sincrética, prima-irmã
do nosso Candomblé, inclusive com vários Orixás semelhantes, cuja origem se
encontra no antigo Reino do Daomé.
O
belíssimo parque Louis Armstrong foi construído exatamente no lugar onde os
negros, escravos e libertos, se reuniam, aos domingos, para reverenciar seus Orixás
(Congo’s square). Foi isso que
aprendi no primeiro tour, feito no
domingo de manhã. No Voodoo de Nova Orleans as principais figuras são as Queens (equivalentes às nossas Mães de
Santo). Marie Laveau é a mais famosa delas. Trata-se de uma negra livre, que
viveu da virada do século XVIII para o XIX, que era cabeleireira das mulheres
ricas, e uma Mãe de Santo muitíssimo prestigiada, inclusive pela elite branca
ou mestiça local. Sua morte mereceu matéria no New York Times, o que não é pouca coisa para a época. Segundo a
guia, Marie Laveau era uma Queen que só
realizava rituais para o bem das pessoas. Suas poções eram vendidas nas poucas
farmácias da cidade, e quando ela morreu, teve seu lugar ocupado pela filha,
que não tinha a mesma seriedade da mãe.
Hoje
em dia, Marie Laveau meio que se incorporou ao panteão local, tornando-se, para
os praticantes do Voodoo, o que são os Santos para os católicos. As pessoas lhe
erguem pequenos altares e lhe fazem oferendas, em troca de favores solicitados.
As oferendas giram em torno da temática profissional de Laveau: grampos,
presilhas, elásticos e batons. No tour
do cemitério (que só pode ser visitado com um guia profissional, registrado na
Arquidiocese), visita-se o que se acredita ser o túmulo de Marie Laveau, e lá
estão os grampos, elásticos e batons. Infelizmente, a Arquidiocese resolveu
reformar o túmulo e apagou as marcas que as pessoas foram deixando no túmulo ao
longo dos séculos (o que pareceu à guia, católica, um procedimento
razoabilíssimo e muito necessário, me deu palpitações de desgosto e de
tristeza). E agora, todos os dias, ao final do dia, os funcionários do
cemitério passam recolhendo as dádivas deixadas pelos crentes (ou duvidosos,
porque sempre tem a turma dos “vai que”). Fiquei ouvindo o relato da guia e
imaginando como o suposto túmulo de Marie Laveau devia estar apinhado de
objetos, assim como estava decorado com as marcas da fé e da devoção secular.
Uma pena que a Igreja Católica, a quem pertence o cemitério, já não tenha a
mesma tolerância que tinha o arcebispo da época de Marie Laveau. Ao que consta,
a Queen ia à missa diariamente e era
muito próxima ao arcebispo, junto a quem cuidou dos enfermos, quando uma
epidemia de febre amarela assolou a cidade.
Enfim.
Pelo menos Nova Orleans ainda tem um número considerável de praticantes de
Voodoo. E a cidade parece ter orgulho desse passado mestiço, que, entre outras
coisas, também está na origem do Jazz. Isso me remete, obviamente, ao Brasil. E
a gente tende a amar o que bonito nos parece. Infelizmente, já não está de pé o
bairro, justamente ao lado do cemitério, onde se concentravam os bordéis, e que
se considera ser o berço do jazz. E que também fica bem perto do Congo’s Square.
Após
o Voodoo Tour, me dirigi à orla do
Mississipi. Contemplei uma vez mais esse rio triste, que só pode ser navegado
por barcos grandes, capazes de resistir à força de sua poderosa correnteza.
Esperei um enorme trem passar e fiquei pensando em como os trilhos e o apito do
trem fazem parte da paisagem urbana de importantes cidades americanas. Gosto de
trens. Acho que eles agradam a minha sensibilidade nostálgica. Antes de voltar
à pousada, uma pausa no famoso Café du
Monde, para provar os igualmente famosos beignets. São uma espécie de bolinhos de chuva com muito açúcar de
confeiteiro polvilhado. Na definição americana: french donuts. Nada de muito especial, porém, não comê-los é como
ir a Portugal e não provar um pastel de Belém. A fila na frente do Café dobra a
esquina em certos horários.
Nesse
domingo de sol, depois de andar muito e suar bastante, voltei pra pousada,
tomei banho e saí de novo, pro meu Ghost
Tour, à noite, obviamente. Venho descobrindo que os americanos têm uma
obsessão com histórias de fantasmas. Todas as cidades que tenho visitado têm ghost tours. O de Nova Orleans é
particularmente interessante, porque acontece no French Quarter, onde não apenas
o cenário de casas centenárias é super propício, como as ruas são mal
iluminadas (exceção feita à Bourbon St.). Além disso, com dois grandes
incêndios, e todas as vicissitudes e as crueldades da escravidão, abundam almas
penadas, que ainda vagam por esse mundo em busca de alívio para suas dores. Por
sinal que uma das histórias mais tristes da noite foi de uma mulata que era
amante de um homem branco da elite, que lhe prometeu casamento se ela passasse
uma noite no telhado, nua. A moça assim o fez e morreu congelada. Segundo a
guia, o homem passou a noite com os amigos jogando, e não acreditou que sua
amante tivesse coragem de enfrentar o frio de dezembro.
Um
parêntese para repassar o que aprendi. As amantes, naquele tempo, em Nova
Orleans, eram oficiais. Havia uma espécie de instituição do concubinato para
homens casados, inclusive. Contratos eram assinados entre o homem (casado) e a
jovem amante (em geral, mulata), determinando que o interessado estabelecesse a
amante em uma casa, com todo o luxo que seu dinheiro pudesse pagar, casa essa
que ficava para a amante quando os dois terminassem o relacionamento. Ter
amantes por contrato era, inclusive, um sinal de status. Toda essa farra acabou
definitivamente após 1803, quando ocorreu a compra da Lousiana pelos Estados
Unidos. Foi aí que as regras morais endureceram e se estabeleceu a segregação
racial, com leis que passaram a evitar e criminalizar as relações entre as “raças”.
Impossível não deixar de sentir um alívio por não termos tido segregação racial
no Brasil. Por mais que os sociólogos e militantes da causa negra critiquem
comentários como esse meu, é difícil não reconhecer que existe uma diferença
significativa, com implicações e desdobramentos importantes, entre a segregação
(estabelecida por lei) e a discriminação. Mas isso é assunto para longas
discussões.
Jantei
no Gumbo Shop, uma indicação da guia do Ghost
Tour. Comi Gumbo com quiabo (okra) e Jambalaya. Ambos são especialidades da
Lousiana. Nos pratos que comi, não havia nada de extraordinário. O Gumbo é um
prato curioso, uma espécie de caldo espesso e escuro, que tem aparência de
caldo de feijão, mas é feito com farinha de trigo e temperos (em princípio).
Após
o jantar, caminhei até a Frenchmen St. Essa, sim, é uma rua onde vale a pena
ir, para escutar a boa e autêntica música de Nova Orleans. Está mais distante,
e embora haja turistas também, a Frenchmen St. é frequentada pelos locais.
Pequenos bares se sucedem, uns ao lado dos outros, quase todos com música ao
vivo. São ambientes intimistas, animados, pitorescos. Cheios de alma, de vida.
Entrei no Spotted Cat, que me havia sido recomendado por Caroline. Como esses
bares são pequenos, ficam muito cheios. Quatro jovens músicos tocavam um blues
de altíssima qualidade. Pedi um drinque e fiquei me deliciando com a música. Após
algum tempo, saí e continuei andando pela rua, parei em mais uns dois bares,
ambos com conjuntos tocando ao vivo, e quando estava começando a fazer meu
caminho de saída da Frenchmen St., ouvi um jazz maravilhoso passeando suas
notas pelo ar. Me aproximei de uma esquina onde um número considerável de
pessoas dançavam, animadíssimas, acompanhando com os movimentos do corpo, a
música tocada por um conjunto de uns 8 ou 10 homens, todos negros, com seus
instrumentos de sopro, basicamente. Uma cena emocionante e inesquecível. Voltei
caminhando, com a alma leve e feliz, até a Canal St., onde tomei o bonde para o
albergue. O dia havia sido intenso.