03/11/15
Niquinha!!!!
Já estou a 20
quilômetros de Santiago! Se Deus permitir, amanhã chego lá!
Nem vou escrever muito
hoje, porque conheci Bia, uma carioca que está hospedada no mesmo albergue que
eu, e ficamos conversando até agora. Por aqui já são dez da noite e a galera já
tá se recolhendo. Estou em O Pedrozo, num albergue todo descolado, chamado Rem.
É uma espécie de amplo loft, embaixo, que está muito bem ambientado, com
cortinas de voal separando os espaços, abajures, tudo em tons de cinza, com uns
toques vermelhos. Em cima fica uma área comum, com uma pequena copa. Bem legal.
Só tem dois problemas: a área dos chuveiros não tem nenhuma divisória, é banho
coletivo mesmo (unissex, claro!) e é frio. Por sorte, tem várias camas vazias e
eu saí catando as mantas, pra não passar frio de noite.
No meu passinho de
formiga consegui vencer os vinte quilômetros de hoje, com mochila nas costas. O
pé reclamou um pouquinho no início, mas até que chegou bem. Caminhei com um
pouco de chuva, nas primeiras horas. Depois, estiou e ficou só o céu nublado. De
novo teve muitas subidas e descidas. Com a capa de chuva e o esforço adicional
das subidas senti um certo calor.
A paisagem foi muito
semelhante à de ontem. Muitas matas com árvores cobertas de musgo e hera,
pastos, pequenas plantações e hortas. Cruzei com umas vacas que vinham andando
pela estradinha enlameada da chuva e passei por um galinheiro com galinhas
supernutridas, de bela plumagem marrom. Em certo momento, vinha andando pela
estrada, rezando, quando noto muita uva esparramada pelo chão. À beira de um
bosque, aquilo me pareceu inusitado. Levantei a vista e vi uma parreira
carregada, que cresceu entre os galhos das árvores. Tão interessante! Ainda consegui
puxar um ramo da videira e colhi umas uvas para provar. Eram pequenas, negras e
docinhas.
De novo, passei por
vários lugarejos de três ou quatro casas, e por pequenos povoados, onde parei
para tomar um chá, comer uma bobagem, carimbar meu passaporte e descansar um
pouco os pés e as costas. Num dos lugarejos, uma casa tinha a parede externa
cheia de pequenos cartões coloridos, plastificados, com pensamentos e
reflexões. O primeiro deles dizia: filosofia grátis. Coisas do Caminho. E o que
a pessoa faz quando chega num povoado e vislumbra duas opções de café, à beira
da estrada: um mais requintado, com guarda-sol, na frente de uma pousada bem
arrumada, e o outro cheio de camisas coloridas penduradas no teto, paredes e
janelas cobertas de mensagens escritas em hidrocor por centenas de peregrinos,
e um rock’n roll de raiz, daquele dos primórdios, tocando num alto-falante
precariamente fixado na árvore defronte da casa? Claro que a pessoa para no
segundo! A Casa Verde, no povoado de Salceda, é mesmo um lugar pitoresco.
Estava cheia de peregrinos. Alguns, inclusive, dançando, embalados pela música
animada. Havia alegria no ar. Sentei-me em uma das mesas inteiramente cobertas
de mensagens rabiscadas por peregrinos, e tomei um chá enquanto observava o
ambiente e as pessoas. Um senhor de barba branca e turbante na cabeça
conversava animado com um grupo de peregrinos. A dona do bar parecia a mais
animada de todos. Sorria permanentemente e acompanhava a música com os
movimentos do corpo, enquanto atendia os fregueses. Adorei o lugar.
Já pertinho de O
Pedrouzo, passei por uns bosques de árvores muito altas, com troncos finos, já
meio pelados. Não eram pinheiros, mas também não soube identificar que árvores
seriam. Confesso que já estava com as costas bem cansadas nos quilômetros
finais. Dei graças a Deus quando cheguei e achei logo um bom albergue (dentro
daquela minha teoria de que albergue bom é albergue novo). Na verdade, estava
com outro albergue na cabeça (também novinho), porém, ele estava lotado, com um
grupo grande de estudantes que creio fossem alemães. Mas o Rem era duas casas
depois. Só fiquei um pouco triste porque quando pedi ao rapaz do primeiro
albergue uma sugestão de lugar, ele veio com uma conversa de que estavam todos
cheios, que alguns já tinham fechado, e que podia ligar pra ver se tinha vaga
numa pensão. Pensões costumam ser bem mais caras. Agradeci e recusei, porque
tinha visto o Rem de passagem. Quando cheguei aqui, tinha cama de sobra. Parece
que por conta de competição pelos peregrinos, o rapaz não quis me indicar seu
vizinho. Isso me entristeceu, e me lembrei dos comentários que venho escutando
sobre como o Caminho está se tornando mais turístico e comercial. Uma pena.
Espero que essa fase não dure muito.
Fui ao supermercado,
fiz umas comprinhas e preparei uma salada bem gostosa, que comi com o resto da tortilla de ontem. Estava comendo quando
chegou Bia, e começamos uma boa e longa conversa, que só parou quando começaram
a apagar as luzes das áreas comuns. Bia, como muitas pessoas, começou a me confortar
por eu ter tido problemas com o pé e ter levado tanto tempo para fazer o
Caminho. Eu lhe disse que fiz o Caminho no tempo certo. Levei o tempo necessário
para a minha viagem interior. E me sinto profundamente agradecida pelo luxo de
dispor de tanto tempo assim, pelo privilégio de poder andar devagar, desfrutando
de cada recanto, de cada paisagem, e, principalmente, de poder parar e me
conectar com os lugares e pessoas. Como sei que tudo de Deus é perfeito, tenho
a certeza de que chegarei a Santiago no tempo certo, nem um minuto antes, nem
um minuto depois.
E por hoje é só. Vou
dormir, pra ver se consigo sair mais cedo amanhã.
Beijos mil, Minha Irmã!
Léia
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