Os textos desta série foram tirados da “Introdução”
de Catimbó,
Cana Caiana e Xenhenhém, edição da
Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.
Feitiços de amor e de vida
O
terceiro e mais freqüente tema trabalhado por Ascenso Ferreira em seus poemas é
o amor. Os poemas de amor aparecem na poesia do pernambucano desde Catimbó, embora marquem particularmente
o livro Xenhenhém, onde são mais
numerosos. Além disso, os poemas que trazem o amor por tema em Catimbó e Cana caiana são distintos dos poemas de Xenhenhém. Nos dois primeiros livros, Ascenso trata da temática
amorosa de um modo descontraído e até engraçado, utilizando particularmente
motes da cultura popular nordestina para falar do amor. Aliás, poemas como
“Catimbó”, “Reisado”, “Bumba-Meu-Boi”, “Mandinga”, “A força da lua”, “Martelo”,
“A Formiga-de-Roça” e “Toré” têm títulos de certo modo enganosos, pois o leitor
insuspeitado não imagina que se tratam de poemas de amor, e não de registro
folclórico.
“Catimbó” é, na verdade, a expressão
poética de um feitiço de amor. Segundo os costumes populares, recorre-se ao
rito do catimbó para atrair a pessoa amada. Pois o poema de Ascenso é
justamente uma espécie de encantamento para atrair uma mulher. O feitiço
encontra a sua força na figura de Mestre Carlos, cujo poder se evoca (“— Porque
de Mestre Carlos é grande o poder!”). Aliás, o verso que evoca o poder de
Mestre Carlos, o “rei dos mestres”, que “reina no fogo”, “reina na água” e
“reina no ar”, introduz a estrofe em que se enuncia o encantamento ou feitiço
(“Pelas três marias... Pelos três reis magos... Pelo setestrelo.../Eu firmo essa
intenção,/bem no fundo do coração,/e o signo
de Salomão/ponho como selo...”). Note-se que todos os elementos mágicos
conjurados em favor do feitiço estão em itálico, o que lhes dá mais destaque.
Por sua vez, os números três e sete, tradicionalmente associados ao misterioso
e ao divino, reforçam o encantamento. A estrofe seguinte traz o objetivo a ser
alcançado, já enunciado desde a segunda estrofe: “E ela há de me amar.../Há de
me amar.../Há de me amar.../— Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o
luar!”
Os
dois últimos poemas de Cana caiana já
inauguram uma nova poética amorosa. Com “Teu poema” e “A chama” começa todo um
discurso sobre um amor torturado, culpado e conflituoso, que será marcante em Xenhenhém. Aspecto interessante a ser
notado é a irreverência do poeta, que tomou para título do seu terceiro livro
um regionalismo de conotação vulgar. A palavra “xenhenhém”, que dá nome aos
dois primeiros poemas do livro, para além de designar um tipo de dança próprio
de certas áreas do Nordeste, é sinônimo de genitália feminina. Sem dúvida isso
deriva, e ao mesmo tempo reitera, a carga de sensualidade e erotismo fortemente
associada aos poemas de amor de Ascenso nesse terceiro livro. Paralelamente, na
poética do autor, “xenhenhém” também é uma espécie de onomatopéia que compõe a
imagem de uma queixa permanente. Queixa da amada e lamento do poeta,
“xenhenhém” é a condensação, em imagem poética, de um amor violento, sensual,
conturbado e condenado, mas, ao final de tudo, sublime.
“Xenhenhém nº 1” é uma queixa de amor, mas
onde se percebe que a alegria do amor é maior que a dor. As duas estrofes pares
(o poema tem quatro estrofes) são antinômicas. A segunda reflete as delícias do
amor: “Xenhenhém... xenhenhém... xenhenhém.../— Coisa gostosa é a gente querer
bem!”. Enquanto a quarta reflete as suas dores: “Xenhenhém... xenhenhém...
xenhenhém.../— Coisa terrível é a gente querer bem!”. Por sua vez, em
“Xenhenhém nº 2”, a mulher amada é um alívio para o poeta, que sofre as dores
do mundo. O paradoxo é que o amor dela é um alento, mas ao mesmo tempo um
tormento, presença que é também ausência, motivo de dor e causa de felicidade
(“Em meio às minhas muitas dores/talvez maiores do que o mundo,/surges, às
vezes, um segundo,/cheia de pérfidos langores.”). O poema é nova queixa de amor
e ao mesmo tempo traz a imagem de uma situação indefinida (“Súbito, encontro a
casa oca./Não estás! — Meu Deus, que coisa louca,/só é na vida um xenhenhém!”).
Este é o primeiro soneto de Ascenso incluído em volume com poemas de “feição
modernista”. Entretanto, está em versos heptassílabos, ou seja, em redondilha
maior. Dá-se, assim, a conjugação entre a forma clássica do soneto e a
construção popular em redondilha maior.
Há
uma convergência entre o amor e o místico na poética de Ascenso, notável em
vários poemas. “Êxtase”, por exemplo, é poema curtíssimo, de quatro versos
longos, em que ocorre o uso de um registro místico para falar do amor como via
de transfiguração e modo de elevação do espírito. A amada é associada a um
universo semântico que mistura erotismo e sagrado: calma, langor, suavidade,
elevação, transfiguração. É no seio da amada que a alma do sujeito se desprende
das contingências do mundo para encontrar sua plenitude (“Emana do teu ser uma
tão grande calma,/um langor tão suave, expressivo, profundo,/que tenho a
sensação virgem de que minh’alma,/desgarrada de mim, anda solta no mundo.”).
Assim, na poética de Ascenso Ferreira, o amor carnal e o amor sublime
conjugam-se e pavimentam o caminho para a transcendência.
Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira
viveu intensamente. Foi homem de grandes paixões: o jogo, a comida, as duas
mulheres de sua vida, Stella Griz e Maria de Lourdes Medeiros, e sua filha,
Maria Luiza. Mas também foi homem dos amores cotidianos, daqueles de que se
tece a trama de uma vida plenamente vivida. Amava sua terra, sua gente. Adorava
o carnaval, a festa, a dança, a música e os brinquedos de rua, que freqüentou e
dos quais participou fielmente por anos a fio. E, sempre pontuando ou permeando
tudo, a poesia. Aliás, se é possível estabelecer um paralelo entre vida e
poesia, tão de gosto dos críticos e comentaristas de Ascenso, ele existe
precisamente na medida em que a poesia de Ascenso se alimenta da ternura e da
paixão de viver do poeta. A vida com suas cores, cheiros, sabores, vozes,
imagens inunda a poesia de Ascenso, enchendo seus poemas de alegria ou de dor.
A vida, presente nos poemas em toda a sua sensualidade, naquilo que deve ser
visto, saboreado, cheirado, sentido, se descortina aos olhos do leitor,
convidado pelo poeta a experimentar a
realidade e a fantasia, a viver o gozo da comunhão da carne e a dor da
desaparição ou da morte.
Para Ascenso, portanto, a poesia se
alimenta da vida. Não foi à toa, aliás, que no final da vida, doente, já
privado de suas comidas favoritas, e limitado em seus movimentos e atividades,
Ascenso quase deixou de escrever poemas e mal acompanhou a última edição de sua
obra poética, a primeira que levava um selo de editora prestigiada nacionalmente.
No entanto, a poesia de Ascenso também alimenta a vida, permite que ela se
transfigure e se renove. É no espaço da poesia que Ascenso salvaguarda mundos
sociais e universos culturais ameaçados de desaparecimento. Para o poeta
pernambucano, é através da palavra que o passado pode ser revivido e o futuro
pode ser inventado com múltiplas faces. É a poesia que permite a Ascenso tocar
as cordas da sensibilidade humana, delas tirando acordes de dor e de alegria, que
podem fazer sofrer, gozar, encarar paradoxos e limitações, e fantasiar. É
através da poesia que Ascenso constrói sua utopia de um mundo encantado, onde o
maior dos temores traveste-se do medo infantil da Cabra-Cabriola e do
Pai-do-Mato.
Infelizmente, esse grande poeta
permanece conhecido de poucos e ainda é visto por boa parte desses poucos como
poeta folclórico e pitoresco. É claro que não pretendi esgotar aqui – nem
alhures -- as possibilidades de interpretação de obra tão rica e cheia de
nuances. Porém, espero, sim, sugerir que Ascenso deixe de ser lido como poeta
regional, como poeta menor, ou simplesmente pitoresco. Que Ascenso não seja
apenas lido como curiosidade, mas que sua poesia possa ser usufruída como a
grande obra moderna que é.