sábado, 17 de novembro de 2012

Fliporto: LUXO cultural

Olinda recebe, neste feriado, a oitava edição da Fliporto. Lembrei-me da comoção experimentada ao final do evento, no ano passado, que reproduzo abaixo. Lamento que não haja gente saindo pelo ladrão, disputando cada um dos lugares disponíveis. A Fliporto ainda é pérola jogada aos poucos. Mas a cada ano, vejo com  alegria, que a Fliporto fica melhor, mais organizada e mais forte. Quem tiver olhos para ver, veja, quem tiver ouvidos para ouvir, ouça...


"Domingo, 13 de novembro de 2011. Brasil, Pernambuco, Olinda, Praça do Carmo. Vinte e sete tendas se espalham pelo amplo espaço, acomodadas entre os coretos, balanços, pontes e vitórias-régias. São quase cinco da tarde. Saio da enorme tenda principal, um auditório confortável, climatizado, erguido do nada para acomodar umas novecentas pessoas. Raimundo Carrero, maltratado por um AVC, há pouco deixou o palco onde se fez gigante e comoveu a platéia, tal como Edson Nery da Fonseca, na véspera, recitando-nos “Evocação do Recife”. No trajeto para a tenda da Feira do Livro, situada no outro extremo da praça, assusto-me com o volume de gente. Cruzo com pais, mães, filhos, jovens de diferentes tribos que circulam num movimento incessante. Todas as tendas estão lotadas. Numa delas se prepara um prato cujo perfume parece promissor, noutra se recitam poemas, noutra se canta o hino de Pernambuco, noutra se representam histórias para crianças hipnotizadas, noutra se ensina a plantar baobás. Aqui um garçom vende livros “servidos” numa bandeja, ali um cantador anuncia sua obra do alto de uma lata, mais adiante uma carrocinha cheia de trecos serve de cenário a um teatro mambembe. Creio escutar um frevo. Na Feira do Livro os stands estão cheios. Por todos os lados há muitas, muitas, muitas crianças. Algumas pedindo aos pais que lhes comprassem livros! Nada de jogos eletrônicos, nem de bonecas vestindo a última moda, mas livros.

Durante quatro dias essas cenas se repetiram em Olinda, que se fez luminosa de dia e de noite. A lua parecia querer ser cúmplice dessa festa do livro, da palavra, da arte, da vida. Prateou as ladeiras da cidade e despertou as vitórias-régias, cujas flores se abriam inteiramente pelas noites, oferecendo-nos a visão rara e sedutora de sua alvura. Durante quatro dias, autores consagrados e jovens promissores dividiram os palcos das várias tendas dessa grande Festa Literária, que democraticamente reuniu poetas, romancistas, ensaístas, jornalistas, estudiosos, cineastas, de distintas nacionalidades e naturalidades. Além dos talentos de Pernambuco, veio gente da Palestina, de Israel, da Espanha, França, Portugal, Índia, Inglaterra, Venezuela, Angola, Líbano, Paquistão, Áustria... veio gente das Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Bahia, de todo lugar. A sétima edição da Fliporto não foi apenas uma viagem ao Oriente, mas um “lugar” de encontros, uma encruzilhada, um ponto de confluência e de reflexão sobre orientes e ocidentes, sobre a força do livro. Foi também uma homenagem genuína ao Mestre Gilberto Freyre – nada de presente de grego. Algumas mesas foram mais comportadas, outras foram acaloradíssimas, algumas foram comoventes, outras, divertidas. Teve até uma linda mulher árabe, que seduziu e apaixonou a platéia, com sua fúria. E coroando tudo, a sabedoria de Gandhi, na forte interpretação de João Signorelli.

A Fliporto não foi apenas um sucesso. Foi comovente. Essa festa das letras e do livro é dos mais importantes legados que Pernambuco tem recebido nos últimos tempos, pois sua importância não está apenas nas palestras e pessoas que por ali passaram (e deixaram saudades!). Sua importância está no futuro. A Fliporto plantou baobás e germinou pequenos leitores. Plantou esperança e germinou um amanhã mais alvissareiro. Não posso deixar de render aqui meu tributo aos idealizadores e realizadores desse evento: Antonio Campos e Eduardo Côrtes. Minhas homenagens também aos curadores das programações, na pessoa de Mário Hélio. Meu agradecimento, como cidadã, a esses empreendedores da cultura e a toda a equipe que pôs a mão na massa e conseguiu fazer de um evento para 80 mil pessoas, numa praça de Olinda, uma festa literária de altíssimo nível. Aos que não foram ao Carmo, faço uma convocação: não percam, nos anos vindouros, a oportunidade de participar desse acontecimento. É puro luxo!"

domingo, 8 de julho de 2012

Flip: memórias de uma primeira vez (4/4)


Domingo, 05/07/2009

O dia amanhece com sol e um relativo calorzinho! Dou graças a Deus. Dessa vez, chegamos ao centro já perto do meio-dia. Todos se dirigem ao café, à margem do Perequê-Açu. Eu me separo do grupo e vou assistir à palestra do historiador Simon Schama. Muito performático. O que mais chama a atenção é sua dificuldade em manter-se preso à cadeira. Em certo momento, inclusive, não se contém e sai saltitando pelo palco. As perguntas da mediadora são demasiado longas, e levam a respostas necessariamente incompletas. Fico com a sensação de uma reedição do batido discurso fundacional americano. O ponto mais interessante da conversa é a defesa da história narrativa. Logo depois, conversando com Mário Hélio, ele observa que tanto a História como o Jornalismo estão realizando um movimento de volta às suas origens, o que muito os aproxima da Literatura. Eu complemento lembrando que Gilberto Freyre já defendia todas essas ideias e gestos, que, tantas vezes, de modo muito menos consequente, são proclamados como o coração da chamada pós-modernidade. Ainda na década de 20 Gilberto falava de como se deve estudar a história tocando em nervos, num esforço por reconstituir não os fatos, mas a sensibilidade dos tempos idos. Ele argumentava que o historiador precisa preencher com a intuição e com a imaginação, as lacunas necessariamente existentes entre os dados disponíveis. Fico pensando que ao ver um desses abalcoados meio mouriscos, de Paraty, Gilberto imediatamente imaginaria que histórias ele guarda. Quem seriam as sinhás ali postadas, furtivamente, a trocar sinais de leques e lenços, com mancebos enamorados, suas angústias, desejos, frustrações...
Depois de Schama, vou reencontrar a trupe pernambucana na Rua Fresca (nome delicioso!), ao pé da marina. Caminhamos por ali. Entramos na igreja de Nossa Senhora das Dores. Toda branquinha e pequenina. Dá um charme especial à paisagem. Mas o melhor da visita é uma doce senhora, negra, que revela aos visitantes da igreja como esta se destinava apenas às mulheres brancas. Seus antepassados, comenta compenetrada, não podiam atravessar o pórtico. A igreja reabrira no dia anterior, e ela, sua nova guardiã, comemorava o sucesso de público: quase 300 visitantes logo no primeiro dia! Onde outros veriam alienação, eu vi apenas ternura e um orgulho feliz, de quem ocupa uma posição interdita aos seus semelhantes, em um passado nem tão distante assim. Seguimos o passeio pela marina, até a casa do Príncipe. Dobramos à direita e ficamos apreciando os detalhes da arquitetura colonial. Ao contrário de Olinda, as casas não têm as tribeiras, que em Pernambuco identificavam os senhores mais abastados.
Almoçamos em um charmoso restaurante, perto da praça da Matriz. Aliás, charme é o que sobra a tudo em Paraty. A comida é divina. A melhor que comemos até então. Novamente o extraordinário palmito assado. No meio do almoço, adentra o restaurante um arlequim multicolorido. Altíssimo, e tão magro quanto alto. Lembra mais um Dom Quixote. Recita poemas e passa a sacola. Perfeita consonância com o ambiente da Flip.
Caminhamos mais um pouco, à espera da mesa que reunirá Edson Nery da Fonseca e Zuenir Ventura. A contemplação dos passantes parece dar razão à tese de Sophia de Melo Brayner. Muitas esbeltas solitárias. Todas as gordinhas acompanhadas. Regressamos ao café da tenda principal. Enquanto esperamos, visito com calma a exposição de fotos dos lugares amados e cantados por Bandeira, ao lado da Tenda dos Autores. Lindas fotos do Recife de princípios do XIX. O casario esguio da rua da Aurora. As velhas pontes, em estruturas rústicas, hoje substituídas por construções mais charmosas.
Nos posicionamos em longa fila e conseguimos bons lugares. O evento começa com quinze minutos de atraso, coisa rara na Flip, onde tudo, até então, fôra muito pontual. Edson Nery, afligido pela artrose, adentra o palco apoiado em Zuenir Ventura. A conversa gira em torno de Manoel Bandeira, homenageado do ano. Edson e Zuenir evocam lembranças dos contatos pessoais com o poeta. Entremeiam-se poemas declamados pelo pernambucano, cuja memória, aos 86 anos, é espantosa – para dizer o mínimo. Uma terna conversa de amigos, poder-se-ia dizer. Edson revela segredos de poemas de Bandeira. A mesa termina com uma inigualável declamação de “Evocação do Recife”, por Edson Nery. O auditório aplaude de pé. Edson sai, mais uma vez apoiado em Zuenir. A humildade, quase reverência, que emana dos gestos e da postura do jornalista carioca confere a esse momento da Flip uma beleza toda especial. O gigante Zuenir se apequena, apenas para deixar brilhar o homenzarrão pernambucano, que vive um momento crepuscular de merecida glória. Aos meus olhos, a nobreza de Zuenir o torna ainda maior. Não esquecerei a cena dos dois homens deixando o palco abraçados. Nunca. Esta será para mim a mais cara de todas as lembranças da minha primeira vez em Paraty.
A feira termina para nós. Em alguns minutos tomaremos a van que nos levará pela noite fluminense, rumo à Cidade Maravilhosa.

Pos scriptum: Alguém menciona que os “xexos” das ruas de Paraty sequer são originais. Em algum momento não muito longínquo, um processo de “restauração” teria levado à substituição de paralelepípedos por essas infames pedras arredondadas. Não sei se é verdade. Em todo caso, me parece improvável que qualquer veículo sobre rodas de madeira pudesse circular com tranquilidade por essas “cabeças de nego”. Sem brincadeira: o autor dessa ideia estupenda não merece menos que prisão perpétua! Considero um verdadeiro milagre que todos voltemos para casa com os tornozelos intactos. Conselho para novatos: tênis ou botas rasteiras são os únicos calçados viáveis em Paraty!

sábado, 7 de julho de 2012

Flip: memórias de uma primeira vez (3/4)


Sábado, 04/07/2009

Manhã de sábado. Céu um pouco mais limpo. Chegamos a ver alguma nesga do azul celeste. São 11:30h da manhã quando chegamos à grande tenda. Não conseguimos ingressos para a palestra da manhã. Um casal conhecido de Antônio se aproxima. Desistiram de aguardar na fila da esperança: a fila dos otimistas, que esperam uma improvável sobra de lugares. Tomamos café à beira do Perequê. Conversa-se sobre a colonização portuguesa. Mantenho-me alheia ao debate. Já não tenho muita paciência para essas discussões. As pessoas contemplam o sonho americano e esquecem-se da Guiana Inglesa, da África do Sul....
Sem ingressos para a palestra, aproveitamos o tempo ocioso para conhecer a livraria da Flip, situada em frente à Tenda do Telão, do outro lado do rio. Movimento intenso. Nas estantes se exibem os livros dos autores convidados. A seção infantil tem muita coisa interessante. Depois das compras, caminhamos para um restaurante situado sobre o Perequê-Açu, exatamente defronte à pontezinha, fervilhante de gente. Almoçamos olhando o movimento. Pessoas não param de cruzá-la em direção ao centro de Paraty. Passam aos montes. É de se perguntar onde vai se enfiar tanta gente.
Às 15:30h me dirijo à Tenda dos Autores. Há uma mesa com Anne Enright e James Salter. Entro pela primeira vez nessa estrutura de lona. Dentro, a tenda revela-se um auditório amplo, moderno e confortável. É escura. Tudo preto, contrastando com o alumínio das tubulações e das cadeiras. Iluminação discreta, deixando o ambiente à meia-luz. O formato é de anfiteatro. O palco tem o fundo azul, com alguns painéis coloridos. Simples e elegante. Todas as cadeiras contam com fone de tradução simultânea. Os autores discutem a cansada questão do que é a escrita feminina, par raport à masculina. Acho engraçada a dificuldade de se fugir às essencializações identitárias. Também discutem sobre o significado da família e sobre a diferença entre o amor “biológico”, obrigatório, e o amor escolhido. Bate-papo simpático, porém, sem novidades. Desinteressante, para ser muito sincera. Quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?
Saio dali umas 16:00h e vou dar uma caminhada mais relaxada por essa adorável cidade. O problema é enfrentar os malditos seixos, ou “xexos”, como se diz na minha terra. Chuvisca um pouco e a caminhada se torna ainda mais arriscada. Armada de um guarda-chuva, sigo meu passeio com a máxima cautela. Não quero ser eu a voltar com um pé torcido. Ando pelas ruas cujos nomes me lembram o Recife: rua da Praia, da Capela, da Cadeia, do Fogo, da Lapa, da Matriz, rua Fresca. Adorável cartografia histórico-sentimental, para ser bem gilbertiana. Do ponto de vista arquitetônico, Paraty parece uma Ouro Preto ao rés do chão. Com algumas peculiaridades. Em uma que outra casa, cornetas saem da parede. São saídas de calhas lindamente trabalhadas. Em outras, pequenas lamparinas pendem acima das sacadas. E em outras, ainda, arabescos coloridos se dispõem em colunas, à guisa de frisos para as casas. Abalcoados e estruturas arrebitadas nos umbrais das janelas deixam entrever os orientalismos da arquitetura colonial portuguesa, tão caros a Gilberto Freyre. Bem se vê que eu não consigo escapar-lhe. Que culpa tenho eu se ele percebeu tanta coisa significativa sobre o Brasil antes de qualquer outra pessoa?
A fauna humana continua desfilando sua variedade e exotismo ante meus olhos. A noiva de cabelos cor de fogo, o pirata, o cangaceiro, o cordelista com sua Catirina. Por todas as esquinas há gente fotografando essa festa dos sentidos que é Paraty durante a Flip.
Vou dar uma espiada na Flipinha. Crianças tocam flauta no palco. A tenda se ergue ao lado da Igreja da Matriz. Mas o melhor da festa infantil se passa mesmo na pracinha defronte. Estátuas em papel machê se espalham pelos cantos. Dom Quixote e Sancho estão impagáveis. Mais adiante, vemos Pinóquio dando as boas-vindas às crianças que se aventuram pela barriga de uma mimosa baleia branca. Logo ali, São Pedro recebe a Irene, de Bandeira, no céu. Dois duendes gigantescos lêem historinhas sentados em banquinhos mínimos. Essas e outras personagens dividem o espaço da praça com árvores de estórias, de cujos galhos pendem livrinhos, dramatizados por contadores, para olhinhos e ouvidinhos atentos. Em uma casa de esquina, em frente à praça, no lado oposto ao da tenda, situa-se o IPHAN, que se tornou sede de teatrinhos interativos. Observo tudo isso comovida. Ali, naquela praça, se preserva, talvez, o mais importante dos patrimônios nacionais, o das consciências em formação. Ali se constroem os futuros leitores, quem sabe se promissores cidadãos... não sei se por idealismo ou se por uma necessidade primordial de acreditar, fico pensando que ali, naquela pracinha de cidade colonial, germina uma esperança real para esse país tão maltratado pela falta de caráter dos políticos, por uma cegueira incompreensível das chamadas “elites”. Também é de alegrar a diversidade social da população que percorre os vários circuitos propiciados pela Flip. Gente de todas as condições.
Paro do lado de fora da Tenda do Telão para ouvir um pouco da fala de Gay Talese. Apesar das respostas longas e repetitivas, acho interessante sua perspectiva sobre o que deve ser o jornalismo, visto por ele como um processo de contação de histórias de pessoas, preferencialmente das coadjuvantes e anônimas. Esta tenda, aberta, parece ter um caráter democratizante. Por meio dela, é possível assistir a todos os eventos da Flip sem pagar ou ter de disputar ingressos impossíveis na “fila da esperança”. Louvável iniciativa, embora o preço seja assistir às palestras de pé, e pela voz dos tradutores.
Decido não esperar o término da palestra, pois quero tomar um banho antes de ir ouvir Lobo Antunes, último evento da noite. Como um cuscuz numa das maravilhosas carrocinhas de doces, típicas de Paraty. Matado o desejo que me assaltava desde a chegada na cidade, respiro profundamente, em busca de coragem para enfrentar uma vez mais os infames “xexos”. Banho tomado, volto com Dani para a palestra de Lobo Antunes. Chegamos com uns dez minutos de atraso. A Tenda dos Autores está repleta. Temos de nos sentar nas escadas, o que acaba por ser bom, pois encontramos lugares pertinho do palco. Lobo Antunes rouba a cena. É o ponto alto da Flip (para mim, ao menos, que não ouvi Chico Buarque). Humberto Werneck faz perguntas de cunho pessoal, sobre a família, a ligação com o Brasil, a trajetória de vida, mas todas as respostas convergem para o mesmo ponto: o fazer literário. Realmente, um belo momento. Mesmo dizendo coisas óbvias, e desejadas pela platéia, Lobo Antunes as diz com muita elegância e bom humor. Assim define o ofício do escritor: vencer o desafio de dizer o indizível. A maior herança que seu pai quis deixar: o amor das coisas belas. As grandes conquistas literárias: ocorrem quando o escritor falha no seu intuito de expressar o que as palavras parecem incapazes de dizer (faz algum sentido?!). Importante fonte de inspiração: a poesia de João Cabral. O primeiro poeta: Manoel Bandeira. Lobo Antunes arrebata a platéia, também parece deixar-se conquistar por ela. Nada da casmurrice que se propala. No palco, um homem comovido, espontâneo, num à vontade quase brasileiro (estou insuportavelmente gilbertiana). Terá sido a presença do avô?
Ainda inebriadas com os encantos da fala do maior escritor português contemporâneo (Saramago que me perdoe, mas sempre gostei mais de Lobo Antunes), eu e Dani seguimos para a entrega de prêmios da Off Flip. D. Ana e Antônio nos esperam. Como é diversa a população da Off Flip!. Melhor para todos, porque Paraty acaba sendo maior que a Flip, com essa congregação curiosa e rica de tribos, de personagens, de eventos. Pernambuco marca presença com um prêmio concedido pelo Instituto Maximiano Campos-Fliporto. Passada rápida pela festa da Saraiva. Eis o lado da Flip que guarda pouco ou nenhum interesse para mim: badalação pela badalação, vaidades desfiladas, simulacros, ambiente meio lisérgico. Eis a impressão que me causam certos circuitos do evento. Nada contra. Apenas não são minha tribo.
Próxima parda: um bom restaurante. João Luís nos indica um. Maravilhoso. Estava cheio, mas tivemos sorte. Nos sentamos em poucos minutos. Uma reflexão gastronômica: quem nunca comeu palmito assado, não tem ideia do que seja essa experiência gastronômica. Longínqua vinculação com os palmitos em compota. Conversa divertidíssima. Joãozinho é um espetáculo inteiro. Revela histórias impublicáveis sobre personalidades cariocas, atores, socialites. Nem o mundo empresarial escapa. Rimos de chegar às lágrimas. Duas conclusões. Primeira: Nelson Rodrigues tinha toda razão, pois visto de perto ninguém é normal. Óbvio ululante. A segunda conclusão é que é preciosa. Segundo Joãozinho, uma tese de Sophia de Melo Brayner: as gordinhas nunca ficam solteironas. Estão sempre acompanhadas. As encalhadas e solitárias são precisamente as que gastam horas nas academias e contam as calorias de todos os acepipes ingeridos. Triste constatação para as magras. Depois de muito rir, voltamos para a pousada. São mais de duas da manhã quando me recosto ao travesseiro.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Flip: memórias de uma primeira vez (2/4)


Sexta-feira, 03/07/2009

Deixamos o hotel na Avenida Atlântica às 9:30h. Passamos pela enseada de Botafogo, Praia do Flamengo, Glória... toda aquela visão deslumbrante da Baía de Guanabara. Eita cidade escandalosamente linda! Como dizia o mestre Gilberto.
A estrada para Paraty é igualmente deslumbrante. Diferentes tonalidades de verde se sucedem. Muitas bananeiras nas encostas. Incríveis tapetes de avenca. Verdadeiros muros de folhagem, que encostam no asfalto da estrada. De vez em quando o verde é quebrado pelo colorido das marias-sem-vergonha, cor-de-rosa e alaranjadas. Cada curva da estrada parece reservar um presente para os olhos, uma pequena enseada, uma baíazinha encrustada nas rochas. Do outro lado do mar, avistamos uma serra cachimbando. O dia está nublado e chuvoso. Apenas podemos suspeitar o verde esmeralda das águas e ficamos imaginando a beleza certamente mais esplendorosa dessa paisagem num dia de sol. Passamos por Angra dos Reis. Lá embaixo, junto do mar, à esquerda da estrada, mansões luxuosíssimas, belos iates ancorados. Do outro lado, à margem direita da via asfaltada, uma grande favela de tijolo e cimento. Uma favela chique, se pensarmos nos mucambos de madeira do Recife. Converso com meus botões: até a pobreza é desigual.
Chegamos a Paraty às 14:30h. Depois de tomarmos um banho, pegamos o carro e seguimos para o centro da cidade. Margeamos o Perequê-Açu, que corta Paraty. O nome do rio me remete imediatamente ao primeiro dos romances indianistas de Alencar, O Guarani. Palmeiras imperiais advertem o visitante quanto à nobreza do lugar. Apeamos defronte à grande Tenda dos Artistas. Manoel Bandeira está bem à porta, em gigantesca foto de meio-rosto. Muitas pessoas sentadas às mesinhas do café da Tenda, à beira do rio, onde barquinhos coloridos estão ancorados. Do outro lado do Perequê (o nome é simplesmente delicioso!) avistam-se as torres da bela Matriz, igreja colonial, branca com frisos alaranjados. A cidade parece estar pululando de gente. Marinheira de primeira viagem, fico bastante surpresa com o vai-e-vem incessante de pessoas. A muito custo Antônio nos consegue uma mesa para tomarmos um café. Hoje é dia de Chico Buarque. Não conseguimos ingressos para a concorridíssima sessão de logo mais. É a estrela do evento. Fico imaginando se muitos não terão vindo a Paraty movidos pela esperança de ver um de nossos maiores poetas da canção (lembro-me de Zé Miguel). Ou será que a Flip é sempre assim, esse pitoresco formigueiro humano?
Atravessamos a pé a ponte que une as duas metades da Feira. Um rapaz toca saxofone ao pé da ponte. Caminhamos pelo que parece ser a rua central da cidade, abrindo caminho entre a multidão. Um lindo casario colonial se estende além do alcance da vista. As casas têm as paredes brancas, com portas, janelas e detalhes de fachada coloridos: azuis, verdes, amarelos, laranjas. É um conjunto arquitetônico impressionante. As ruas são incrivelmente irregulares, feitas de pedras bem arredondadas, de tamanhos vários. Se há um inferno para os sapatos de salto – não importa se altos ou baixos --, esse inferno é Paraty. O caminhar é necessariamente instável, e fico imaginando que se formos embora sem que ninguém leve um tombo, será uma proeza, quiçá, um milagre. Ruas cheias. Paisagem humana diversa. Um mago chama a atenção das crianças. Uma estátua viva, em prata, cuja identidade sou incapaz de decifrar, evoca um misto de senador romano e cangaceiro. Uma moça lê cartas numa barraquinha de tarô, postada na calçada.
Nos dirigimos a um evento da Off Flip. Caminhamos até um lugar chamado O Café. Trata-se de um quintal com várias palhoças e mesas dispostas entre bananeiras, palmeiras e um belo jatobá. O ambiente está lotado. Novamente temos dificuldade para arrumar um lugar onde sentar. Acomodamo-nos. Apenas para descobrir que vamos continuar famintos, pois a garçonete nos informa que não servem comida durante as palestras. São 16:00h e ainda não almoçamos. Antonio Carlos Secchin fala lindamente sobre o poema “Profundamente”, de Manoel Bandeira. Mais uma das evocações infantis do poeta. Cheias de graça e de melancolia. Na mesa, com Mário Hélio e Antônio Campos, fala-se do erotismo e da espiritualidade de Bandeira. Lembro-me de um artigo de Gilberto Freyre, ainda da década de 20, em que ele desenvolve exatamente esse argumento, acerca da vinculação entre o erótico e o místico em Bandeira.
Saímos dali e vamos procurar um restaurante para comer. Como ainda são 18 horas, temos dificuldade de encontrar um lugar que já esteja aberto para o jantar. Paramos em uma espécie de cantina, onde há uma moça ao violão, cantando MPB. A comida revela-se uma ingrata surpresa, e o serviço, pior ainda. De razoável, só a música. Todavia, enquanto esperamos a comida, passa um maracatu, que eu já vinha escutando desde cedo. Saio para ver o maracatu. Bela cena. As cores do dia se apagando na cidade imperial, fluminense, ao som dos tambores do meu Pernambuco. No cortejo, quatro mini bonecos-gigantes. Curiosa composição essa. Indago a um dos integrantes de onde é o maracatu, e descubro que há uma mistura de paulistas e cariocas de Paraty. Danço um pouco na rua, pois simplesmente não consigo ficar imune ao baque de um maracatu. O som toca cordas profundas da minha alma.
Depois de saciar a fome que nos devorava, nos dirigimos à Casa JB, para o lançamento de livro e CD de Edson Nery da Fonseca. Ambos sobre Bandeira. A Casa JB é um dos points da Flip. Há uma exposição de fotografias que homenageiam o Ano da França no Brasil: Cathérine Deneuve, Sartre, Foucault, Alain Prost... elenco variado de personalidades. Edson Nery já está à mesa, autografando. Fila grande. Um sucesso o lançamento. Seus olhos octogenários brilham de satisfação. Para alguns admiradores, ele recita poemas ou canta modinhas. Depois de longo tempo assinando livros, levanta-se e caminha lentamente para a porta. Fico sobressaltada com a perspectiva desse gigante alquebrado pelos anos -- e limitado por uma artrose grave nas pernas -- andando naquelas pedrinhas assassinas. Indago e descubro que um carro o aguarda nas proximidades. Edson Nery vai-se justamente no momento em que começa a dramatização das poesias de Bandeira, por três jovens atores cariocas. Duas moças e um rapaz. Muito boa representação. Segue-se um delicioso show de MPB, interrompido para que Leila Lobo, dama da sociedade carioca, recite “Evocação do Recife”. Muito corajosa. Pouco antes, em breve prosa, ficáramos sabendo que seu avô fôra um dos idealizadores da separação entre a Igreja e o Estado, no Brasil recém convertido ao republicanismo. A façanha rendeu ao avô uma excomunhão, extensiva à terceira geração, o que faz da neta uma excomungada! Não posso deixar de espantar-me com o despropósito da situação. Um pensamento, confesso, me diverte: já posso dizer que conheço um excomungado. Pensava que isso só existisse nas páginas de livros de história.
Dali vamos para um restaurante italiano, encontrar o irmão de Dona Ana. Restaurante lotado. À mesa encontram-se algumas atrizes globais. Nos recebem muito bem. Comemos uma pizza ao som de dois violões competentes. Aliás, em Paraty, muitos restaurantes têm música ao vivo, o que dá um charme todo especial à caminhada pelas ruas coloniais. Há sempre uma trilha sonora  para um passeio.
Depois da pizza, seguimos para a casa do Príncipe. Atendemos a um já tradicional sarau de poesia. Sua Alteza vem receber Antônio à porta. Muito afável. O sarau acontece no pátio do solar. Pedacinhos do interior da casa podem ser vislumbrados pelos vãos de algumas janelas abertas. Há uma grande árvore no pátio, coberta de trepadeiras, e é sob seus galhos que irá se desenrolar a declamação de poesias. Há pouca gente quando chegamos. Faz frio. Está tudo escuro, à exceção de algumas velas e tochas espalhadas. Uma lareira arde logo à entrada do pátio. Para mim, que sinto congelar os ossos, no frio da madrugada, é o local mais convidativo. No entanto, nos sentamos nuns banquinhos do pátio, de onde podemos acompanhar melhor o sarau. Aos poucos, o pátio vai se enchendo de gente. A fauna humana parece novamente bem diversa. Lá estão os três atores da Casa JB e Leila Lobo também. Já passa bastante da meia-noite. João Luiz dá início ao sarau e conduz as atividades. Os versejadores se sucedem, no palco improvisado sob a generosa árvore. Os candidatos a ocupar o proscênio, ao que parece, são muitos. Até então, nada de real qualidade. Versos não são necessariamente poesia. Para a felicidade dos meus pobres ossos congelados, Antônio comanda a nossa retirada. Caminhamos até o outro lado da ponte, no frio úmido da velha cidade, um pouco mais serena nessas horas altas da madrugada. Sinto que dormirei bem. Foi um longo dia.

Flip: memórias de uma primeira vez (1/4)


Quinta-feira, 02/07/2009

Chegada tumultuada ao Rio de Janeiro. Aterrisso antes de Dani e Antônio. Fico acompanhando o vôo deles pelo painel. De repente, uma mensagem ao lado do número do vôo: procurar o balcão da companhia aérea. Fico gelada, meu coração dispara. O acidente com o 447 da Air France me vem imediatamente à cabeça. Subo correndo as escadas rolantes, chego ao balcão da companhia em tempo de ouvir um funcionário tranquilizando outras pessoas. O episódio não passara de um “problema técnico”. O avião já estava pousando. Obviamente, a culpa não era de ninguém: “Um erro do sistema”. Penso com meus botões: depois que inventaram essa entidade abstrata e onipresente chamada “sistema”, ficou bem mais fácil fazer bobagens sem ter de assumir responsabilidades. Bem que eu poderia armar uma confusão. Irrita-me esse tipo de desfaçatez. O velho e nobre pedido de desculpas está definitivamente caindo em desuso. Respiro fundo e decido que não vale a pena gastar minha energia com o episódio. No fundo, estou aliviada. Dou meia volta, desço as escadas e alguns minutos depois dou um abraço apertado em minha amiga, que mal pode suspeitar o motivo da minha alegria exacerbada. Uma van nos espera. O motorista, careca lustrosa e esbanjando simpatia, nos leva a um hotel na Avenida Atlântica. Temos de dormir cedo e acordar bem dispostos para umas boas horas de estrada amanhã.

sábado, 30 de junho de 2012

Ascenso Ferreira em quatro tempos (Derradeiro)


Os textos desta série foram tirados da “Introdução” de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, edição da Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.

Feitiços de amor e de vida

O terceiro e mais freqüente tema trabalhado por Ascenso Ferreira em seus poemas é o amor. Os poemas de amor aparecem na poesia do pernambucano desde Catimbó, embora marquem particularmente o livro Xenhenhém, onde são mais numerosos. Além disso, os poemas que trazem o amor por tema em Catimbó e Cana caiana são distintos dos poemas de Xenhenhém. Nos dois primeiros livros, Ascenso trata da temática amorosa de um modo descontraído e até engraçado, utilizando particularmente motes da cultura popular nordestina para falar do amor. Aliás, poemas como “Catimbó”, “Reisado”, “Bumba-Meu-Boi”, “Mandinga”, “A força da lua”, “Martelo”, “A Formiga-de-Roça” e “Toré” têm títulos de certo modo enganosos, pois o leitor insuspeitado não imagina que se tratam de poemas de amor, e não de registro folclórico.
            “Catimbó” é, na verdade, a expressão poética de um feitiço de amor. Segundo os costumes populares, recorre-se ao rito do catimbó para atrair a pessoa amada. Pois o poema de Ascenso é justamente uma espécie de encantamento para atrair uma mulher. O feitiço encontra a sua força na figura de Mestre Carlos, cujo poder se evoca (“— Porque de Mestre Carlos é grande o poder!”). Aliás, o verso que evoca o poder de Mestre Carlos, o “rei dos mestres”, que “reina no fogo”, “reina na água” e “reina no ar”, introduz a estrofe em que se enuncia o encantamento ou feitiço (“Pelas três marias... Pelos três reis magos... Pelo setestrelo.../Eu firmo essa intenção,/bem no fundo do coração,/e o signo de Salomão/ponho como selo...”). Note-se que todos os elementos mágicos conjurados em favor do feitiço estão em itálico, o que lhes dá mais destaque. Por sua vez, os números três e sete, tradicionalmente associados ao misterioso e ao divino, reforçam o encantamento. A estrofe seguinte traz o objetivo a ser alcançado, já enunciado desde a segunda estrofe: “E ela há de me amar.../Há de me amar.../Há de me amar.../— Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!”
Os dois últimos poemas de Cana caiana já inauguram uma nova poética amorosa. Com “Teu poema” e “A chama” começa todo um discurso sobre um amor torturado, culpado e conflituoso, que será marcante em Xenhenhém. Aspecto interessante a ser notado é a irreverência do poeta, que tomou para título do seu terceiro livro um regionalismo de conotação vulgar. A palavra “xenhenhém”, que dá nome aos dois primeiros poemas do livro, para além de designar um tipo de dança próprio de certas áreas do Nordeste, é sinônimo de genitália feminina. Sem dúvida isso deriva, e ao mesmo tempo reitera, a carga de sensualidade e erotismo fortemente associada aos poemas de amor de Ascenso nesse terceiro livro. Paralelamente, na poética do autor, “xenhenhém” também é uma espécie de onomatopéia que compõe a imagem de uma queixa permanente. Queixa da amada e lamento do poeta, “xenhenhém” é a condensação, em imagem poética, de um amor violento, sensual, conturbado e condenado, mas, ao final de tudo, sublime.
 “Xenhenhém nº 1” é uma queixa de amor, mas onde se percebe que a alegria do amor é maior que a dor. As duas estrofes pares (o poema tem quatro estrofes) são antinômicas. A segunda reflete as delícias do amor: “Xenhenhém... xenhenhém... xenhenhém.../— Coisa gostosa é a gente querer bem!”. Enquanto a quarta reflete as suas dores: “Xenhenhém... xenhenhém... xenhenhém.../— Coisa terrível é a gente querer bem!”. Por sua vez, em “Xenhenhém nº 2”, a mulher amada é um alívio para o poeta, que sofre as dores do mundo. O paradoxo é que o amor dela é um alento, mas ao mesmo tempo um tormento, presença que é também ausência, motivo de dor e causa de felicidade (“Em meio às minhas muitas dores/talvez maiores do que o mundo,/surges, às vezes, um segundo,/cheia de pérfidos langores.”). O poema é nova queixa de amor e ao mesmo tempo traz a imagem de uma situação indefinida (“Súbito, encontro a casa oca./Não estás! — Meu Deus, que coisa louca,/só é na vida um xenhenhém!”). Este é o primeiro soneto de Ascenso incluído em volume com poemas de “feição modernista”. Entretanto, está em versos heptassílabos, ou seja, em redondilha maior. Dá-se, assim, a conjugação entre a forma clássica do soneto e a construção popular em redondilha maior.
Há uma convergência entre o amor e o místico na poética de Ascenso, notável em vários poemas. “Êxtase”, por exemplo, é poema curtíssimo, de quatro versos longos, em que ocorre o uso de um registro místico para falar do amor como via de transfiguração e modo de elevação do espírito. A amada é associada a um universo semântico que mistura erotismo e sagrado: calma, langor, suavidade, elevação, transfiguração. É no seio da amada que a alma do sujeito se desprende das contingências do mundo para encontrar sua plenitude (“Emana do teu ser uma tão grande calma,/um langor tão suave, expressivo, profundo,/que tenho a sensação virgem de que minh’alma,/desgarrada de mim, anda solta no mundo.”). Assim, na poética de Ascenso Ferreira, o amor carnal e o amor sublime conjugam-se e pavimentam o caminho para a transcendência.

            Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira viveu intensamente. Foi homem de grandes paixões: o jogo, a comida, as duas mulheres de sua vida, Stella Griz e Maria de Lourdes Medeiros, e sua filha, Maria Luiza. Mas também foi homem dos amores cotidianos, daqueles de que se tece a trama de uma vida plenamente vivida. Amava sua terra, sua gente. Adorava o carnaval, a festa, a dança, a música e os brinquedos de rua, que freqüentou e dos quais participou fielmente por anos a fio. E, sempre pontuando ou permeando tudo, a poesia. Aliás, se é possível estabelecer um paralelo entre vida e poesia, tão de gosto dos críticos e comentaristas de Ascenso, ele existe precisamente na medida em que a poesia de Ascenso se alimenta da ternura e da paixão de viver do poeta. A vida com suas cores, cheiros, sabores, vozes, imagens inunda a poesia de Ascenso, enchendo seus poemas de alegria ou de dor. A vida, presente nos poemas em toda a sua sensualidade, naquilo que deve ser visto, saboreado, cheirado, sentido, se descortina aos olhos do leitor, convidado pelo poeta a experimentar a realidade e a fantasia, a viver o gozo da comunhão da carne e a dor da desaparição ou da morte.
            Para Ascenso, portanto, a poesia se alimenta da vida. Não foi à toa, aliás, que no final da vida, doente, já privado de suas comidas favoritas, e limitado em seus movimentos e atividades, Ascenso quase deixou de escrever poemas e mal acompanhou a última edição de sua obra poética, a primeira que levava um selo de editora prestigiada nacionalmente. No entanto, a poesia de Ascenso também alimenta a vida, permite que ela se transfigure e se renove. É no espaço da poesia que Ascenso salvaguarda mundos sociais e universos culturais ameaçados de desaparecimento. Para o poeta pernambucano, é através da palavra que o passado pode ser revivido e o futuro pode ser inventado com múltiplas faces. É a poesia que permite a Ascenso tocar as cordas da sensibilidade humana, delas tirando acordes de dor e de alegria, que podem fazer sofrer, gozar, encarar paradoxos e limitações, e fantasiar. É através da poesia que Ascenso constrói sua utopia de um mundo encantado, onde o maior dos temores traveste-se do medo infantil da Cabra-Cabriola e do Pai-do-Mato.
            Infelizmente, esse grande poeta permanece conhecido de poucos e ainda é visto por boa parte desses poucos como poeta folclórico e pitoresco. É claro que não pretendi esgotar aqui – nem alhures -- as possibilidades de interpretação de obra tão rica e cheia de nuances. Porém, espero, sim, sugerir que Ascenso deixe de ser lido como poeta regional, como poeta menor, ou simplesmente pitoresco. Que Ascenso não seja apenas lido como curiosidade, mas que sua poesia possa ser usufruída como a grande obra moderna que é.