domingo, 8 de julho de 2012

Flip: memórias de uma primeira vez (4/4)


Domingo, 05/07/2009

O dia amanhece com sol e um relativo calorzinho! Dou graças a Deus. Dessa vez, chegamos ao centro já perto do meio-dia. Todos se dirigem ao café, à margem do Perequê-Açu. Eu me separo do grupo e vou assistir à palestra do historiador Simon Schama. Muito performático. O que mais chama a atenção é sua dificuldade em manter-se preso à cadeira. Em certo momento, inclusive, não se contém e sai saltitando pelo palco. As perguntas da mediadora são demasiado longas, e levam a respostas necessariamente incompletas. Fico com a sensação de uma reedição do batido discurso fundacional americano. O ponto mais interessante da conversa é a defesa da história narrativa. Logo depois, conversando com Mário Hélio, ele observa que tanto a História como o Jornalismo estão realizando um movimento de volta às suas origens, o que muito os aproxima da Literatura. Eu complemento lembrando que Gilberto Freyre já defendia todas essas ideias e gestos, que, tantas vezes, de modo muito menos consequente, são proclamados como o coração da chamada pós-modernidade. Ainda na década de 20 Gilberto falava de como se deve estudar a história tocando em nervos, num esforço por reconstituir não os fatos, mas a sensibilidade dos tempos idos. Ele argumentava que o historiador precisa preencher com a intuição e com a imaginação, as lacunas necessariamente existentes entre os dados disponíveis. Fico pensando que ao ver um desses abalcoados meio mouriscos, de Paraty, Gilberto imediatamente imaginaria que histórias ele guarda. Quem seriam as sinhás ali postadas, furtivamente, a trocar sinais de leques e lenços, com mancebos enamorados, suas angústias, desejos, frustrações...
Depois de Schama, vou reencontrar a trupe pernambucana na Rua Fresca (nome delicioso!), ao pé da marina. Caminhamos por ali. Entramos na igreja de Nossa Senhora das Dores. Toda branquinha e pequenina. Dá um charme especial à paisagem. Mas o melhor da visita é uma doce senhora, negra, que revela aos visitantes da igreja como esta se destinava apenas às mulheres brancas. Seus antepassados, comenta compenetrada, não podiam atravessar o pórtico. A igreja reabrira no dia anterior, e ela, sua nova guardiã, comemorava o sucesso de público: quase 300 visitantes logo no primeiro dia! Onde outros veriam alienação, eu vi apenas ternura e um orgulho feliz, de quem ocupa uma posição interdita aos seus semelhantes, em um passado nem tão distante assim. Seguimos o passeio pela marina, até a casa do Príncipe. Dobramos à direita e ficamos apreciando os detalhes da arquitetura colonial. Ao contrário de Olinda, as casas não têm as tribeiras, que em Pernambuco identificavam os senhores mais abastados.
Almoçamos em um charmoso restaurante, perto da praça da Matriz. Aliás, charme é o que sobra a tudo em Paraty. A comida é divina. A melhor que comemos até então. Novamente o extraordinário palmito assado. No meio do almoço, adentra o restaurante um arlequim multicolorido. Altíssimo, e tão magro quanto alto. Lembra mais um Dom Quixote. Recita poemas e passa a sacola. Perfeita consonância com o ambiente da Flip.
Caminhamos mais um pouco, à espera da mesa que reunirá Edson Nery da Fonseca e Zuenir Ventura. A contemplação dos passantes parece dar razão à tese de Sophia de Melo Brayner. Muitas esbeltas solitárias. Todas as gordinhas acompanhadas. Regressamos ao café da tenda principal. Enquanto esperamos, visito com calma a exposição de fotos dos lugares amados e cantados por Bandeira, ao lado da Tenda dos Autores. Lindas fotos do Recife de princípios do XIX. O casario esguio da rua da Aurora. As velhas pontes, em estruturas rústicas, hoje substituídas por construções mais charmosas.
Nos posicionamos em longa fila e conseguimos bons lugares. O evento começa com quinze minutos de atraso, coisa rara na Flip, onde tudo, até então, fôra muito pontual. Edson Nery, afligido pela artrose, adentra o palco apoiado em Zuenir Ventura. A conversa gira em torno de Manoel Bandeira, homenageado do ano. Edson e Zuenir evocam lembranças dos contatos pessoais com o poeta. Entremeiam-se poemas declamados pelo pernambucano, cuja memória, aos 86 anos, é espantosa – para dizer o mínimo. Uma terna conversa de amigos, poder-se-ia dizer. Edson revela segredos de poemas de Bandeira. A mesa termina com uma inigualável declamação de “Evocação do Recife”, por Edson Nery. O auditório aplaude de pé. Edson sai, mais uma vez apoiado em Zuenir. A humildade, quase reverência, que emana dos gestos e da postura do jornalista carioca confere a esse momento da Flip uma beleza toda especial. O gigante Zuenir se apequena, apenas para deixar brilhar o homenzarrão pernambucano, que vive um momento crepuscular de merecida glória. Aos meus olhos, a nobreza de Zuenir o torna ainda maior. Não esquecerei a cena dos dois homens deixando o palco abraçados. Nunca. Esta será para mim a mais cara de todas as lembranças da minha primeira vez em Paraty.
A feira termina para nós. Em alguns minutos tomaremos a van que nos levará pela noite fluminense, rumo à Cidade Maravilhosa.

Pos scriptum: Alguém menciona que os “xexos” das ruas de Paraty sequer são originais. Em algum momento não muito longínquo, um processo de “restauração” teria levado à substituição de paralelepípedos por essas infames pedras arredondadas. Não sei se é verdade. Em todo caso, me parece improvável que qualquer veículo sobre rodas de madeira pudesse circular com tranquilidade por essas “cabeças de nego”. Sem brincadeira: o autor dessa ideia estupenda não merece menos que prisão perpétua! Considero um verdadeiro milagre que todos voltemos para casa com os tornozelos intactos. Conselho para novatos: tênis ou botas rasteiras são os únicos calçados viáveis em Paraty!

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