sábado, 7 de julho de 2012

Flip: memórias de uma primeira vez (3/4)


Sábado, 04/07/2009

Manhã de sábado. Céu um pouco mais limpo. Chegamos a ver alguma nesga do azul celeste. São 11:30h da manhã quando chegamos à grande tenda. Não conseguimos ingressos para a palestra da manhã. Um casal conhecido de Antônio se aproxima. Desistiram de aguardar na fila da esperança: a fila dos otimistas, que esperam uma improvável sobra de lugares. Tomamos café à beira do Perequê. Conversa-se sobre a colonização portuguesa. Mantenho-me alheia ao debate. Já não tenho muita paciência para essas discussões. As pessoas contemplam o sonho americano e esquecem-se da Guiana Inglesa, da África do Sul....
Sem ingressos para a palestra, aproveitamos o tempo ocioso para conhecer a livraria da Flip, situada em frente à Tenda do Telão, do outro lado do rio. Movimento intenso. Nas estantes se exibem os livros dos autores convidados. A seção infantil tem muita coisa interessante. Depois das compras, caminhamos para um restaurante situado sobre o Perequê-Açu, exatamente defronte à pontezinha, fervilhante de gente. Almoçamos olhando o movimento. Pessoas não param de cruzá-la em direção ao centro de Paraty. Passam aos montes. É de se perguntar onde vai se enfiar tanta gente.
Às 15:30h me dirijo à Tenda dos Autores. Há uma mesa com Anne Enright e James Salter. Entro pela primeira vez nessa estrutura de lona. Dentro, a tenda revela-se um auditório amplo, moderno e confortável. É escura. Tudo preto, contrastando com o alumínio das tubulações e das cadeiras. Iluminação discreta, deixando o ambiente à meia-luz. O formato é de anfiteatro. O palco tem o fundo azul, com alguns painéis coloridos. Simples e elegante. Todas as cadeiras contam com fone de tradução simultânea. Os autores discutem a cansada questão do que é a escrita feminina, par raport à masculina. Acho engraçada a dificuldade de se fugir às essencializações identitárias. Também discutem sobre o significado da família e sobre a diferença entre o amor “biológico”, obrigatório, e o amor escolhido. Bate-papo simpático, porém, sem novidades. Desinteressante, para ser muito sincera. Quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?
Saio dali umas 16:00h e vou dar uma caminhada mais relaxada por essa adorável cidade. O problema é enfrentar os malditos seixos, ou “xexos”, como se diz na minha terra. Chuvisca um pouco e a caminhada se torna ainda mais arriscada. Armada de um guarda-chuva, sigo meu passeio com a máxima cautela. Não quero ser eu a voltar com um pé torcido. Ando pelas ruas cujos nomes me lembram o Recife: rua da Praia, da Capela, da Cadeia, do Fogo, da Lapa, da Matriz, rua Fresca. Adorável cartografia histórico-sentimental, para ser bem gilbertiana. Do ponto de vista arquitetônico, Paraty parece uma Ouro Preto ao rés do chão. Com algumas peculiaridades. Em uma que outra casa, cornetas saem da parede. São saídas de calhas lindamente trabalhadas. Em outras, pequenas lamparinas pendem acima das sacadas. E em outras, ainda, arabescos coloridos se dispõem em colunas, à guisa de frisos para as casas. Abalcoados e estruturas arrebitadas nos umbrais das janelas deixam entrever os orientalismos da arquitetura colonial portuguesa, tão caros a Gilberto Freyre. Bem se vê que eu não consigo escapar-lhe. Que culpa tenho eu se ele percebeu tanta coisa significativa sobre o Brasil antes de qualquer outra pessoa?
A fauna humana continua desfilando sua variedade e exotismo ante meus olhos. A noiva de cabelos cor de fogo, o pirata, o cangaceiro, o cordelista com sua Catirina. Por todas as esquinas há gente fotografando essa festa dos sentidos que é Paraty durante a Flip.
Vou dar uma espiada na Flipinha. Crianças tocam flauta no palco. A tenda se ergue ao lado da Igreja da Matriz. Mas o melhor da festa infantil se passa mesmo na pracinha defronte. Estátuas em papel machê se espalham pelos cantos. Dom Quixote e Sancho estão impagáveis. Mais adiante, vemos Pinóquio dando as boas-vindas às crianças que se aventuram pela barriga de uma mimosa baleia branca. Logo ali, São Pedro recebe a Irene, de Bandeira, no céu. Dois duendes gigantescos lêem historinhas sentados em banquinhos mínimos. Essas e outras personagens dividem o espaço da praça com árvores de estórias, de cujos galhos pendem livrinhos, dramatizados por contadores, para olhinhos e ouvidinhos atentos. Em uma casa de esquina, em frente à praça, no lado oposto ao da tenda, situa-se o IPHAN, que se tornou sede de teatrinhos interativos. Observo tudo isso comovida. Ali, naquela praça, se preserva, talvez, o mais importante dos patrimônios nacionais, o das consciências em formação. Ali se constroem os futuros leitores, quem sabe se promissores cidadãos... não sei se por idealismo ou se por uma necessidade primordial de acreditar, fico pensando que ali, naquela pracinha de cidade colonial, germina uma esperança real para esse país tão maltratado pela falta de caráter dos políticos, por uma cegueira incompreensível das chamadas “elites”. Também é de alegrar a diversidade social da população que percorre os vários circuitos propiciados pela Flip. Gente de todas as condições.
Paro do lado de fora da Tenda do Telão para ouvir um pouco da fala de Gay Talese. Apesar das respostas longas e repetitivas, acho interessante sua perspectiva sobre o que deve ser o jornalismo, visto por ele como um processo de contação de histórias de pessoas, preferencialmente das coadjuvantes e anônimas. Esta tenda, aberta, parece ter um caráter democratizante. Por meio dela, é possível assistir a todos os eventos da Flip sem pagar ou ter de disputar ingressos impossíveis na “fila da esperança”. Louvável iniciativa, embora o preço seja assistir às palestras de pé, e pela voz dos tradutores.
Decido não esperar o término da palestra, pois quero tomar um banho antes de ir ouvir Lobo Antunes, último evento da noite. Como um cuscuz numa das maravilhosas carrocinhas de doces, típicas de Paraty. Matado o desejo que me assaltava desde a chegada na cidade, respiro profundamente, em busca de coragem para enfrentar uma vez mais os infames “xexos”. Banho tomado, volto com Dani para a palestra de Lobo Antunes. Chegamos com uns dez minutos de atraso. A Tenda dos Autores está repleta. Temos de nos sentar nas escadas, o que acaba por ser bom, pois encontramos lugares pertinho do palco. Lobo Antunes rouba a cena. É o ponto alto da Flip (para mim, ao menos, que não ouvi Chico Buarque). Humberto Werneck faz perguntas de cunho pessoal, sobre a família, a ligação com o Brasil, a trajetória de vida, mas todas as respostas convergem para o mesmo ponto: o fazer literário. Realmente, um belo momento. Mesmo dizendo coisas óbvias, e desejadas pela platéia, Lobo Antunes as diz com muita elegância e bom humor. Assim define o ofício do escritor: vencer o desafio de dizer o indizível. A maior herança que seu pai quis deixar: o amor das coisas belas. As grandes conquistas literárias: ocorrem quando o escritor falha no seu intuito de expressar o que as palavras parecem incapazes de dizer (faz algum sentido?!). Importante fonte de inspiração: a poesia de João Cabral. O primeiro poeta: Manoel Bandeira. Lobo Antunes arrebata a platéia, também parece deixar-se conquistar por ela. Nada da casmurrice que se propala. No palco, um homem comovido, espontâneo, num à vontade quase brasileiro (estou insuportavelmente gilbertiana). Terá sido a presença do avô?
Ainda inebriadas com os encantos da fala do maior escritor português contemporâneo (Saramago que me perdoe, mas sempre gostei mais de Lobo Antunes), eu e Dani seguimos para a entrega de prêmios da Off Flip. D. Ana e Antônio nos esperam. Como é diversa a população da Off Flip!. Melhor para todos, porque Paraty acaba sendo maior que a Flip, com essa congregação curiosa e rica de tribos, de personagens, de eventos. Pernambuco marca presença com um prêmio concedido pelo Instituto Maximiano Campos-Fliporto. Passada rápida pela festa da Saraiva. Eis o lado da Flip que guarda pouco ou nenhum interesse para mim: badalação pela badalação, vaidades desfiladas, simulacros, ambiente meio lisérgico. Eis a impressão que me causam certos circuitos do evento. Nada contra. Apenas não são minha tribo.
Próxima parda: um bom restaurante. João Luís nos indica um. Maravilhoso. Estava cheio, mas tivemos sorte. Nos sentamos em poucos minutos. Uma reflexão gastronômica: quem nunca comeu palmito assado, não tem ideia do que seja essa experiência gastronômica. Longínqua vinculação com os palmitos em compota. Conversa divertidíssima. Joãozinho é um espetáculo inteiro. Revela histórias impublicáveis sobre personalidades cariocas, atores, socialites. Nem o mundo empresarial escapa. Rimos de chegar às lágrimas. Duas conclusões. Primeira: Nelson Rodrigues tinha toda razão, pois visto de perto ninguém é normal. Óbvio ululante. A segunda conclusão é que é preciosa. Segundo Joãozinho, uma tese de Sophia de Melo Brayner: as gordinhas nunca ficam solteironas. Estão sempre acompanhadas. As encalhadas e solitárias são precisamente as que gastam horas nas academias e contam as calorias de todos os acepipes ingeridos. Triste constatação para as magras. Depois de muito rir, voltamos para a pousada. São mais de duas da manhã quando me recosto ao travesseiro.

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