Sábado, 04/07/2009
Manhã de sábado. Céu um pouco mais limpo. Chegamos a ver
alguma nesga do azul celeste. São 11:30h da manhã quando chegamos à grande
tenda. Não conseguimos ingressos para a palestra da manhã. Um casal conhecido
de Antônio se aproxima. Desistiram de aguardar na fila da esperança: a fila dos
otimistas, que esperam uma improvável sobra de lugares. Tomamos café à beira do
Perequê. Conversa-se sobre a colonização portuguesa. Mantenho-me alheia ao
debate. Já não tenho muita paciência para essas discussões. As pessoas
contemplam o sonho americano e esquecem-se da Guiana Inglesa, da África do Sul....
Sem ingressos para a palestra, aproveitamos o tempo ocioso
para conhecer a livraria da Flip, situada em frente à Tenda do Telão, do outro
lado do rio. Movimento intenso. Nas estantes se exibem os livros dos autores
convidados. A seção infantil tem muita coisa interessante. Depois das compras,
caminhamos para um restaurante situado sobre o Perequê-Açu, exatamente defronte
à pontezinha, fervilhante de gente. Almoçamos olhando o movimento. Pessoas não
param de cruzá-la em direção ao centro de Paraty. Passam aos montes. É de se
perguntar onde vai se enfiar tanta gente.
Às 15:30h me dirijo à Tenda dos Autores. Há uma mesa com
Anne Enright e James Salter. Entro pela primeira vez nessa estrutura de lona.
Dentro, a tenda revela-se um auditório amplo, moderno e confortável. É escura.
Tudo preto, contrastando com o alumínio das tubulações e das cadeiras.
Iluminação discreta, deixando o ambiente à meia-luz. O formato é de anfiteatro.
O palco tem o fundo azul, com alguns painéis coloridos. Simples e elegante.
Todas as cadeiras contam com fone de tradução simultânea. Os autores discutem a
cansada questão do que é a escrita feminina, par raport à masculina. Acho engraçada a dificuldade de se fugir às
essencializações identitárias. Também discutem sobre o significado da família e
sobre a diferença entre o amor “biológico”, obrigatório, e o amor escolhido.
Bate-papo simpático, porém, sem novidades. Desinteressante, para ser muito
sincera. Quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?
Saio dali umas 16:00h e vou dar uma caminhada mais relaxada
por essa adorável cidade. O problema é enfrentar os malditos seixos, ou “xexos”,
como se diz na minha terra. Chuvisca um pouco e a caminhada se torna ainda mais
arriscada. Armada de um guarda-chuva, sigo meu passeio com a máxima cautela. Não
quero ser eu a voltar com um pé torcido. Ando pelas ruas cujos nomes me lembram
o Recife: rua da Praia, da Capela, da Cadeia, do Fogo, da Lapa, da Matriz, rua
Fresca. Adorável cartografia histórico-sentimental, para ser bem gilbertiana.
Do ponto de vista arquitetônico, Paraty parece uma Ouro Preto ao rés do chão.
Com algumas peculiaridades. Em uma que outra casa, cornetas saem da parede. São
saídas de calhas lindamente trabalhadas. Em outras, pequenas lamparinas pendem
acima das sacadas. E em outras, ainda, arabescos coloridos se dispõem em
colunas, à guisa de frisos para as casas. Abalcoados e estruturas arrebitadas nos
umbrais das janelas deixam entrever os orientalismos da arquitetura colonial
portuguesa, tão caros a Gilberto Freyre. Bem se vê que eu não consigo escapar-lhe.
Que culpa tenho eu se ele percebeu tanta coisa significativa sobre o Brasil
antes de qualquer outra pessoa?
A fauna humana continua desfilando sua variedade e exotismo
ante meus olhos. A noiva de cabelos cor de fogo, o pirata, o cangaceiro, o
cordelista com sua Catirina. Por todas as esquinas há gente fotografando essa
festa dos sentidos que é Paraty durante a Flip.
Vou dar uma espiada na Flipinha. Crianças tocam flauta no
palco. A tenda se ergue ao lado da Igreja da Matriz. Mas o melhor da festa
infantil se passa mesmo na pracinha defronte. Estátuas em papel machê se
espalham pelos cantos. Dom Quixote e Sancho estão impagáveis. Mais adiante,
vemos Pinóquio dando as boas-vindas às crianças que se aventuram pela barriga
de uma mimosa baleia branca. Logo ali, São Pedro recebe a Irene, de Bandeira,
no céu. Dois duendes gigantescos lêem historinhas sentados em banquinhos
mínimos. Essas e outras personagens dividem o espaço da praça com árvores de
estórias, de cujos galhos pendem livrinhos, dramatizados por contadores, para olhinhos
e ouvidinhos atentos. Em uma casa de esquina, em frente à praça, no lado oposto
ao da tenda, situa-se o IPHAN, que se tornou sede de teatrinhos interativos.
Observo tudo isso comovida. Ali, naquela praça, se preserva, talvez, o mais
importante dos patrimônios nacionais, o das consciências em formação. Ali se
constroem os futuros leitores, quem sabe se promissores cidadãos... não sei se
por idealismo ou se por uma necessidade primordial de acreditar, fico pensando
que ali, naquela pracinha de cidade colonial, germina uma esperança real para
esse país tão maltratado pela falta de caráter dos políticos, por uma cegueira
incompreensível das chamadas “elites”. Também é de alegrar a diversidade social
da população que percorre os vários circuitos propiciados pela Flip. Gente de
todas as condições.
Paro do lado de fora da Tenda do Telão para ouvir um pouco
da fala de Gay Talese. Apesar das respostas longas e repetitivas, acho
interessante sua perspectiva sobre o que deve ser o jornalismo, visto por ele
como um processo de contação de histórias de pessoas, preferencialmente das
coadjuvantes e anônimas. Esta tenda, aberta, parece ter um caráter
democratizante. Por meio dela, é possível assistir a todos os eventos da Flip
sem pagar ou ter de disputar ingressos impossíveis na “fila da esperança”.
Louvável iniciativa, embora o preço seja assistir às palestras de pé, e pela
voz dos tradutores.
Decido não esperar o término da palestra, pois quero tomar
um banho antes de ir ouvir Lobo Antunes, último evento da noite. Como um cuscuz
numa das maravilhosas carrocinhas de doces, típicas de Paraty. Matado o desejo
que me assaltava desde a chegada na cidade, respiro profundamente, em busca de
coragem para enfrentar uma vez mais os infames “xexos”. Banho tomado, volto com
Dani para a palestra de Lobo Antunes. Chegamos com uns dez minutos de atraso. A
Tenda dos Autores está repleta. Temos de nos sentar nas escadas, o que acaba
por ser bom, pois encontramos lugares pertinho do palco. Lobo Antunes rouba a
cena. É o ponto alto da Flip (para mim, ao menos, que não ouvi Chico Buarque).
Humberto Werneck faz perguntas de cunho pessoal, sobre a família, a ligação com
o Brasil, a trajetória de vida, mas todas as respostas convergem para o mesmo
ponto: o fazer literário. Realmente, um belo momento. Mesmo dizendo coisas
óbvias, e desejadas pela platéia, Lobo Antunes as diz com muita elegância e bom
humor. Assim define o ofício do escritor: vencer o desafio de dizer o indizível.
A maior herança que seu pai quis deixar: o amor das coisas belas. As grandes
conquistas literárias: ocorrem quando o escritor falha no seu intuito de
expressar o que as palavras parecem incapazes de dizer (faz algum sentido?!).
Importante fonte de inspiração: a poesia de João Cabral. O primeiro poeta:
Manoel Bandeira. Lobo Antunes arrebata a platéia, também parece deixar-se
conquistar por ela. Nada da casmurrice que se propala. No palco, um homem
comovido, espontâneo, num à vontade quase brasileiro (estou insuportavelmente
gilbertiana). Terá sido a presença do avô?
Ainda inebriadas com os encantos da fala do maior escritor
português contemporâneo (Saramago que me perdoe, mas sempre gostei mais de Lobo
Antunes), eu e Dani seguimos para a entrega de prêmios da Off Flip. D. Ana e
Antônio nos esperam. Como é diversa a população da Off Flip!. Melhor para
todos, porque Paraty acaba sendo maior que a Flip, com essa congregação curiosa
e rica de tribos, de personagens, de eventos. Pernambuco marca presença com um
prêmio concedido pelo Instituto Maximiano Campos-Fliporto. Passada rápida pela
festa da Saraiva. Eis o lado da Flip que guarda pouco ou nenhum interesse para
mim: badalação pela badalação, vaidades desfiladas, simulacros, ambiente meio lisérgico.
Eis a impressão que me causam certos circuitos do evento. Nada contra. Apenas
não são minha tribo.
Próxima parda: um bom restaurante. João Luís nos indica um.
Maravilhoso. Estava cheio, mas tivemos sorte. Nos sentamos em poucos minutos.
Uma reflexão gastronômica: quem nunca comeu palmito assado, não tem ideia do
que seja essa experiência gastronômica. Longínqua vinculação com os palmitos em
compota. Conversa divertidíssima. Joãozinho é um espetáculo inteiro. Revela
histórias impublicáveis sobre personalidades cariocas, atores, socialites. Nem
o mundo empresarial escapa. Rimos de chegar às lágrimas. Duas conclusões.
Primeira: Nelson Rodrigues tinha toda razão, pois visto de perto ninguém é
normal. Óbvio ululante. A segunda conclusão é que é preciosa. Segundo
Joãozinho, uma tese de Sophia de Melo Brayner: as gordinhas nunca ficam
solteironas. Estão sempre acompanhadas. As encalhadas e solitárias são
precisamente as que gastam horas nas academias e contam as calorias de todos os
acepipes ingeridos. Triste constatação para as magras. Depois de muito rir,
voltamos para a pousada. São mais de duas da manhã quando me recosto ao
travesseiro.
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