sexta-feira, 6 de julho de 2012

Flip: memórias de uma primeira vez (2/4)


Sexta-feira, 03/07/2009

Deixamos o hotel na Avenida Atlântica às 9:30h. Passamos pela enseada de Botafogo, Praia do Flamengo, Glória... toda aquela visão deslumbrante da Baía de Guanabara. Eita cidade escandalosamente linda! Como dizia o mestre Gilberto.
A estrada para Paraty é igualmente deslumbrante. Diferentes tonalidades de verde se sucedem. Muitas bananeiras nas encostas. Incríveis tapetes de avenca. Verdadeiros muros de folhagem, que encostam no asfalto da estrada. De vez em quando o verde é quebrado pelo colorido das marias-sem-vergonha, cor-de-rosa e alaranjadas. Cada curva da estrada parece reservar um presente para os olhos, uma pequena enseada, uma baíazinha encrustada nas rochas. Do outro lado do mar, avistamos uma serra cachimbando. O dia está nublado e chuvoso. Apenas podemos suspeitar o verde esmeralda das águas e ficamos imaginando a beleza certamente mais esplendorosa dessa paisagem num dia de sol. Passamos por Angra dos Reis. Lá embaixo, junto do mar, à esquerda da estrada, mansões luxuosíssimas, belos iates ancorados. Do outro lado, à margem direita da via asfaltada, uma grande favela de tijolo e cimento. Uma favela chique, se pensarmos nos mucambos de madeira do Recife. Converso com meus botões: até a pobreza é desigual.
Chegamos a Paraty às 14:30h. Depois de tomarmos um banho, pegamos o carro e seguimos para o centro da cidade. Margeamos o Perequê-Açu, que corta Paraty. O nome do rio me remete imediatamente ao primeiro dos romances indianistas de Alencar, O Guarani. Palmeiras imperiais advertem o visitante quanto à nobreza do lugar. Apeamos defronte à grande Tenda dos Artistas. Manoel Bandeira está bem à porta, em gigantesca foto de meio-rosto. Muitas pessoas sentadas às mesinhas do café da Tenda, à beira do rio, onde barquinhos coloridos estão ancorados. Do outro lado do Perequê (o nome é simplesmente delicioso!) avistam-se as torres da bela Matriz, igreja colonial, branca com frisos alaranjados. A cidade parece estar pululando de gente. Marinheira de primeira viagem, fico bastante surpresa com o vai-e-vem incessante de pessoas. A muito custo Antônio nos consegue uma mesa para tomarmos um café. Hoje é dia de Chico Buarque. Não conseguimos ingressos para a concorridíssima sessão de logo mais. É a estrela do evento. Fico imaginando se muitos não terão vindo a Paraty movidos pela esperança de ver um de nossos maiores poetas da canção (lembro-me de Zé Miguel). Ou será que a Flip é sempre assim, esse pitoresco formigueiro humano?
Atravessamos a pé a ponte que une as duas metades da Feira. Um rapaz toca saxofone ao pé da ponte. Caminhamos pelo que parece ser a rua central da cidade, abrindo caminho entre a multidão. Um lindo casario colonial se estende além do alcance da vista. As casas têm as paredes brancas, com portas, janelas e detalhes de fachada coloridos: azuis, verdes, amarelos, laranjas. É um conjunto arquitetônico impressionante. As ruas são incrivelmente irregulares, feitas de pedras bem arredondadas, de tamanhos vários. Se há um inferno para os sapatos de salto – não importa se altos ou baixos --, esse inferno é Paraty. O caminhar é necessariamente instável, e fico imaginando que se formos embora sem que ninguém leve um tombo, será uma proeza, quiçá, um milagre. Ruas cheias. Paisagem humana diversa. Um mago chama a atenção das crianças. Uma estátua viva, em prata, cuja identidade sou incapaz de decifrar, evoca um misto de senador romano e cangaceiro. Uma moça lê cartas numa barraquinha de tarô, postada na calçada.
Nos dirigimos a um evento da Off Flip. Caminhamos até um lugar chamado O Café. Trata-se de um quintal com várias palhoças e mesas dispostas entre bananeiras, palmeiras e um belo jatobá. O ambiente está lotado. Novamente temos dificuldade para arrumar um lugar onde sentar. Acomodamo-nos. Apenas para descobrir que vamos continuar famintos, pois a garçonete nos informa que não servem comida durante as palestras. São 16:00h e ainda não almoçamos. Antonio Carlos Secchin fala lindamente sobre o poema “Profundamente”, de Manoel Bandeira. Mais uma das evocações infantis do poeta. Cheias de graça e de melancolia. Na mesa, com Mário Hélio e Antônio Campos, fala-se do erotismo e da espiritualidade de Bandeira. Lembro-me de um artigo de Gilberto Freyre, ainda da década de 20, em que ele desenvolve exatamente esse argumento, acerca da vinculação entre o erótico e o místico em Bandeira.
Saímos dali e vamos procurar um restaurante para comer. Como ainda são 18 horas, temos dificuldade de encontrar um lugar que já esteja aberto para o jantar. Paramos em uma espécie de cantina, onde há uma moça ao violão, cantando MPB. A comida revela-se uma ingrata surpresa, e o serviço, pior ainda. De razoável, só a música. Todavia, enquanto esperamos a comida, passa um maracatu, que eu já vinha escutando desde cedo. Saio para ver o maracatu. Bela cena. As cores do dia se apagando na cidade imperial, fluminense, ao som dos tambores do meu Pernambuco. No cortejo, quatro mini bonecos-gigantes. Curiosa composição essa. Indago a um dos integrantes de onde é o maracatu, e descubro que há uma mistura de paulistas e cariocas de Paraty. Danço um pouco na rua, pois simplesmente não consigo ficar imune ao baque de um maracatu. O som toca cordas profundas da minha alma.
Depois de saciar a fome que nos devorava, nos dirigimos à Casa JB, para o lançamento de livro e CD de Edson Nery da Fonseca. Ambos sobre Bandeira. A Casa JB é um dos points da Flip. Há uma exposição de fotografias que homenageiam o Ano da França no Brasil: Cathérine Deneuve, Sartre, Foucault, Alain Prost... elenco variado de personalidades. Edson Nery já está à mesa, autografando. Fila grande. Um sucesso o lançamento. Seus olhos octogenários brilham de satisfação. Para alguns admiradores, ele recita poemas ou canta modinhas. Depois de longo tempo assinando livros, levanta-se e caminha lentamente para a porta. Fico sobressaltada com a perspectiva desse gigante alquebrado pelos anos -- e limitado por uma artrose grave nas pernas -- andando naquelas pedrinhas assassinas. Indago e descubro que um carro o aguarda nas proximidades. Edson Nery vai-se justamente no momento em que começa a dramatização das poesias de Bandeira, por três jovens atores cariocas. Duas moças e um rapaz. Muito boa representação. Segue-se um delicioso show de MPB, interrompido para que Leila Lobo, dama da sociedade carioca, recite “Evocação do Recife”. Muito corajosa. Pouco antes, em breve prosa, ficáramos sabendo que seu avô fôra um dos idealizadores da separação entre a Igreja e o Estado, no Brasil recém convertido ao republicanismo. A façanha rendeu ao avô uma excomunhão, extensiva à terceira geração, o que faz da neta uma excomungada! Não posso deixar de espantar-me com o despropósito da situação. Um pensamento, confesso, me diverte: já posso dizer que conheço um excomungado. Pensava que isso só existisse nas páginas de livros de história.
Dali vamos para um restaurante italiano, encontrar o irmão de Dona Ana. Restaurante lotado. À mesa encontram-se algumas atrizes globais. Nos recebem muito bem. Comemos uma pizza ao som de dois violões competentes. Aliás, em Paraty, muitos restaurantes têm música ao vivo, o que dá um charme todo especial à caminhada pelas ruas coloniais. Há sempre uma trilha sonora  para um passeio.
Depois da pizza, seguimos para a casa do Príncipe. Atendemos a um já tradicional sarau de poesia. Sua Alteza vem receber Antônio à porta. Muito afável. O sarau acontece no pátio do solar. Pedacinhos do interior da casa podem ser vislumbrados pelos vãos de algumas janelas abertas. Há uma grande árvore no pátio, coberta de trepadeiras, e é sob seus galhos que irá se desenrolar a declamação de poesias. Há pouca gente quando chegamos. Faz frio. Está tudo escuro, à exceção de algumas velas e tochas espalhadas. Uma lareira arde logo à entrada do pátio. Para mim, que sinto congelar os ossos, no frio da madrugada, é o local mais convidativo. No entanto, nos sentamos nuns banquinhos do pátio, de onde podemos acompanhar melhor o sarau. Aos poucos, o pátio vai se enchendo de gente. A fauna humana parece novamente bem diversa. Lá estão os três atores da Casa JB e Leila Lobo também. Já passa bastante da meia-noite. João Luiz dá início ao sarau e conduz as atividades. Os versejadores se sucedem, no palco improvisado sob a generosa árvore. Os candidatos a ocupar o proscênio, ao que parece, são muitos. Até então, nada de real qualidade. Versos não são necessariamente poesia. Para a felicidade dos meus pobres ossos congelados, Antônio comanda a nossa retirada. Caminhamos até o outro lado da ponte, no frio úmido da velha cidade, um pouco mais serena nessas horas altas da madrugada. Sinto que dormirei bem. Foi um longo dia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário