30/4/15
“Relaxe
e goze” é uma mal fadada frase em virtude de seu contexto originário. Porém,
encerra uma sabedoria importante, se conseguimos extrapolar suas origens. A
lição importante é que quando estamos impotentes diante de determinada
situação, ao invés de ficarmos lutando em vão com os fatos, melhor é tentar
tirar algum proveito deles. Quando isso é possível, claro.
Acordo
cedo para me despedir de D., que teve de viajar ao Texas de forma imprevista.
Nos abraçamos com emoção antes que ela entre em seu pequeno conversível.
Agradeço muito a acolhida e tudo que ela me ensinou, e prometo ficar em
contato. Eu e L. devemos partir na manhã seguinte. Deixaremos a chave em lugar
estratégico do quintal.
Após
a partida de D., me ponho a limpar o gramado em frente da casa, e o quintal,
que estão cobertos de galhos e folhas, arrancados numa forte tempestade que
atingiu alguns estados do Sul dos Estados Unidos, na última segunda-feira. A
tempestade assustou mais do que causou estragos. Nenhuma vítima, nada de
inundação. Alguns prejuízos materiais, e o susto. Bom, limpo a frente da casa e
vou para o quintal, catar os galhos e terminar de replantar umas mudas. São
minhas últimas tarefas na casa de D., ainda que ela tenha me dito que não
precisava me preocupar. Temos um dia de sol e calor e quando termino minhas
tarefas, estou com bastante sede. Abro a porta de trás, para entrar em casa, e,
para minha enorme surpresa, percebo que está trancada. Dou a volta na casa e
constato que a porta da frente também está trancada. O carro de L. não está.
Ele saiu e me deixou do lado de fora!!!
Minha primeira reação é de raiva e desespero.
Por que raios esse menino foi trancar a porta de trás? Não viu que eu estava no
quintal?!!! O que me desespera é que quando L. sai, não tem hora pra voltar.
Quantas vezes o vi sair com sua espingarda no carro, para atirar em esquilos
inocentes, e voltar tarde da noite? E se for esse o caso? O que vou fazer se
ainda não é nem meio-dia, e não tenho nem sequer algum dinheiro comigo? Vou
passar o dia inteiro com sede e com fome? E ainda por cima sem poder ir a canto
nenhum, porque ele também pode voltar, e se eu não estiver em frente de casa,
ele não saberá que estou trancada do lado de fora. Meu plano de passear em
Baton Rouge, visitar o museu de artes plásticas e o Old Capitol, então, é vaca que foi pro brejo. Logo no meu último
dia em Baton Rouge! Sinceramente.
Por
uns bons 15 minutos me entrego a esses sentimentos de raiva e desespero. Me
sinto impotente. Isso me irrita profundamente. Quanto mais penso na minha sede,
na minha fome e no passeio que não poderei fazer, mais raiva sinto. Não consigo
ver uma saída pra minha situação. Até que resolvo começar a rezar. Pego uma
cadeira no quintal, coloco-a à sombra da grande árvore que há na frente da
casa, sento e fico rezando. Peço a Deus serenidade. Aos poucos vou respirando
mais devagar e serenando. É então que penso que posso beber a água da mangueira
(estou com muuuuita sede), já que na casa bebemos água da torneira mesmo. Bebo
água e volto pra minha cadeira. Me lembro dos tomates que há na horta, e que
estão prontos para serem colhidos. Se L. demorar, já não precisarei mais passar
fome. Então, penso em como matar o tempo, e me lembro de que meu plano era o de
fazer ginástica antes de tomar banho para ir passear. Por que não fazer minha
ginástica ali, no gramado, ao ar livre, em vez de trancada no meu quarto? Passo
do pensamento à ação em poucos segundo. Enquanto faço meus exercícios, fico
mentalizando e pedindo aos Anjos que tragam L. de volta pra casa logo. Quando
estou terminando a segunda série, L. chega. Como já estou serena, com toda
tranquilidade do mundo lhe peço que destranque a porta dos fundos. Ele se dá
conta de que me deixou trancada e pede mil desculpas. Percebo que ele não fez
por mal. De minha parte, prestei atenção à lição (que não é nova!). Não adianta
se debater contra circunstâncias que somos incapazes de modificar. É preciso se
adaptar a elas. E da melhor maneira.
Não
sei se foi o remorso, mas L. se oferece para me levar pra passear no centro de
Baton Rouge. Ótimo. Não precisarei andar 40 minutos até o ponto de ônibus, nem
ficar esperando pelo busu. Como
demonstrou Guimarães Rosas, quantas vezes o bem acaba resultando do mal. Vou ao
museu de artes plásticas da Universidade (quinto andar do Shaw Center for the Arts). Basicamente, quero apreciar com calma as
obras de Clementine Hunter. Na realidade, não há nada de muito especial na sua
pintura, do ponto de vista estético. Porém, há uma riqueza no registro da vida
nas antigas plantations de Cane
River, e algo de cativante na simplicidade dos seus quadros.
Da
exposição de Clementine Hunter, vou com L. ao Old Capitol. Andamos com passo apertado, porque está pertinho da
hora de fechar. Esse edifício, erguido nos anos 30, por um importante
governador da Lousiana, é o mais alto palácio de governo dos Estados Unidos,
segundo dizem. O estilo é eclético e há um belo jardim em frente. Dentro, o
hall é todo coberto de mármore, com predomínio de preto e vermelho. Há grandes
painéis nas laterais e enormes lustres. A atmosfera é excessiva e pesada. Do
lado direito, a House of Representatives.
Do lado esquerdo, o Senate. Um senhor
de bastante idade, se aproxima da gente e fornece informações sobre elementos
da arquitetura da House of
Representatives. A única coisa que me desperta interesse é saber que o
material utilizado no teto, lindamente decorado, é feito do bagaço da cana.
Muito curioso. Subimos à torre, o mais alto ponto de observação da cidade. Bela
vista. Vê-se o Mississipi de um lado, com suas pontes, e um grande lago do
outro. Deixamos o prédio e caminhamos pelos jardins e pelo parque nos fundos do
palácio, próximo ao lago. Na sequência, caminhamos de volta à região mais central
de Baton Rouge, perto do Old Capitol.
Nos separamos. Sigo para a beira do Missisipi. Sento-me e fico olhando para o
rio. Toco a água gelada. D. me explicou que o leito do Missisipi é todo
acimentado. Olhando para o Mississipi, nesse momento, penso em como ele é um
rio aprisionado. Não tem mais a liberdade de correr por onde lhe apetece. Não
pode mudar seu curso. Talvez por isso tenha me parecido um rio triste.
Caminho
até o Old Capitol. Visitei-o no
domingo, com D. Hoje funciona como um museu do estado. Nas paredes do edifício
em forma de pequeno castelo, as fotos de todos os governadores. Uma exposição
virtual permite ao visitante informar-se sobre qualquer um deles. Muitas
referências à Guerra Civil, que tantas marcas parece ter deixado nos sulistas. Nesse
museu, aprende-se que a capital administrativa da Lousiana mudou várias vezes,
ao longo do tempo. Em algumas ocasiões, esteve em Nova Orleans, e acabou se
estabelecendo definitivamente em Baton Rouge. Aparentemente, desistiram de Nova
Orleans porque os políticos tinham coisas demais com que se distrair na cidade
do Jazz e do Mardi Gras.
A
verdade é que Baton Rouge é uma cidade sem charme. Com poucas coisas interessantes
para um turista. Seus museus são modestos, as coleções pouco significativas. A
própria paisagem do Mississipi é sem graça. A área mais bonita da cidade é o
enorme e arborizado campus da LSU.
Caminho
mais um pouco e sento num banquinho de praça, em frente a um bar onde deve
haver uma sessão de piano. Marquei o reencontro com L. ali. Enquanto espero por
ele, observo o bar vizinho, onde um músico se prepara para começar seu show de happy hour. Começa a tocar seu violão. Duas universitárias, com
micro shorts e barriga de fora se aproximam do músico e ficam fazendo bambolê.
Uma delas tem uma cerveja na mão. A outra faz acrobacias com o bambolê. Ao
lado, o pianista, de chapéu preto e piercing gigantesco na orelha, faz embaixadinhas
com uma bola de tênis. A hostess do bar e o gerente, ambos bem jovens, se
derretem um para o outro. Me divirto observando a cena.
L.
chega. Desistimos de ir para o piano bar e voltamos para a beira do Mississipi
para ver o pôr-do-sol. Nos deitamos na encosta de cimento, pertinho da água e
ficamos observando o céu se enfeitar de alaranjados, vermelhos e amarelos. O pôr-do-sol
é um belo espetáculo da natureza. Sempre. Por trás de nós, a lua já começa a
subir. Está quase cheia. Enquanto isso, conversamos. L. diz que não andará mais
armado (perdeu o emprego que D. havia conseguido pra ele, por portar uma arma),
que aprendeu a lição. L. é um desses jovens que se acham agredidos na sua
individualidade, ou inteligência (?) por seguir regras, quaisquer que sejam
elas. Tento dizer-lhe que a sociedade seria bem pior sem regras do que é com
elas. E que mais importante do que seguir as regras é fazer a coisa certa. Frequentemente,
há uma coincidência entre ambas. De todo modo, fazer a coisa certa sempre nos
levará a respeitar o espaço e os direitos alheios, além de garantir paz de
espírito, que é das coisas mais preciosas que se pode almejar na vida.
Me
despeço do céu e das estrelas de Baton Rouge. Um ciclo está prestes a se
encerrar. Amanhã rumarei para Nova Orleans.
Muito bom ler vc! Parabéns pelo texto e experiências! Saudações amazônicas 🙏
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