sexta-feira, 8 de maio de 2015

Cane River: um passeio pela história creole


 Os quadros de Clementine Hunter me levaram por caminhos surpreendentes.
Ao comentar com D. que havia visto os quadros dessa senhora negra, que trabalhou apanhando algodão em uma plantation, ao Norte da Lousiana, ela se animou para me levar a Cane River. Quase quatro horas de estrada separam Baton Rouge do Cane River Criole National Historical Park. Saímos cedo de casa. Por sorte, faz um belo dia de sol, porém, sem o calor escaldante que já cheguei a sentir na Lousiana. Quanto mais nos afastamos de Baton Rouge, mais rural e mais bonita vai ficando a paisagem. As áreas urbanas às margens das estradas americanas não costumam ter muito charme. Já as áreas rurais são belas, com muitas árvores ladeando as highways ou freeways.  D. já foi motorista de caminhão (aos 20 e poucos anos, na década de 70, baixinha como ela é!), e me fornece informações interessantes e úteis sobre as rodovias nos Estados Unidos. Eu dirijo o carro, porque D. dormiu pouco à noite.
Após algumas horas de highway, pegamos a saída para o parque nacional de Cane River, e caímos numa estradinha estreita e singela, de mão dupla, com campos de milho dos dois lados. Há buracos e remendos no asfalto. O cenário me faz pensar nas estradas nordestinas que cortam nossos canaviais. Seguimos por essa estradinha em busca da Melrose Plantation. Acabamos dando de cara com outra plantation, chamada Magnolia. A primeira coisa que avistamos são as casas dos escravos. São as primeiras habitações de escravos que vejo nos Estados Unidos, pois elas já não existem nas plantations que havia visitado antes. A Magnolia Plantation foi estabelecida em 1835. Alguns edifícios originais ainda estão de pé, incluindo esses casebres onde viviam escravos, e que se situam a poucos metros da casa-grande. Escavações arqueológicas encontraram várias ferramentas de trabalho, que se estão penduradas ou encostadas nas paredes de um enorme galpão, onde abelhas produzem um forte zunido. Aprendo que as edificações, naquela época, e nessa região, utilizavam a mesma tecnologia das nossas casas de taipa: barro socado entre tiras de madeira (bem mais grossas as deles, no entanto). As paredes eram, então, caiadas, para proteger o barro. Só que no Sul dos Estados Unidos, os edifícios mais importantes das plantations, como as casas-grandes, eram revestidos de madeira por fora. De madeira pintada também eram feitas as amplas e acolhedoras varandas. É o caso de uma das estruturas que se pode visitar na Magnolia Plantation, que servia de hospital para os escravos. Isso é novidade pra mim. Um hospital, dentro da plantation, para tratar dos escravos, que certamente adoeciam com frequência. Terá sido o pragmatismo americano que levou à existência de tal tipo de estrutura? É o que me pergunto.
Do hospital caminho pelo pasto até as casinhas dos escravos. São poucos metros, mas havia chovido, e o terreno está todo encharcado. Praguejo contra mim mesma por não ter vindo de tênis. Porém, por nada no mundo, vou deixar de entrar numa casinha dessas. Enfio a sapatilha na lama. A calça já está mesmo toda chapiscada. Em determinado ponto, desisto das sapatilhas, porque posso acabar escorregando. Me descalço e sigo caminhando pela lama, com o pé no chão. As casinhas são, curiosamente, feitas de tijolos de barro. Pedaços de cal e uma fina argamassa ainda podem ser vistos nas paredes descascadas, dentro e fora das casas. Dois pequenos cômodos são divididos por uma parede, com uma passagem estreita e baixa. Preciso abaixar-me para entrar no que seria um quarto. A única dessas casinhas em que se pode entrar tem um mobiliário que pretende reconstituir o ambiente da época. Difícil acreditar que a vida dos escravos fosse tal como se apresenta aos olhos do visitante, hoje. Mesa, cadeiras, armários, fogão, panelas, bacias, lamparinas se dispõe criando um ambiente doméstico demasiado aconchegante. Uma toalha de plástico xadrez e uma cadeira dos anos 60 acentuam minha impressão de uma composição bastante fake. Em todo caso, a edificação é original. Os telhados e persianas são novos, em alumínio, e imagino que tenham sido postos para proteger os edifícios das intempéries.
A casa-grande é que não é mais o prédio original, queimado pelo Exército da União, na guerra civil, que deixou sequelas profundas no Sul. Seja nos vários panfletos sobre as plantations, seja nas coleções e inscrições dos museus que visito na Lousiana, seja em minhas conversas com D., a Guerra Civil se me afigura como uma tema ainda quente e traumático para aos sulistas. A União queimou casas e plantações, mas há algo para além disso. D. com frequência fala do “Norte”, associando essa figura a conceitos como arrogância e preconceito. Confesso que a persistência e a presença viva dessa questão, quase dois séculos depois, me surpreende. Descubro que escravas negras jogaram um papel importante nessa Guerra, transmitindo ao Exército da União informações que escutavam nas conversas das casas-grandes, onde se realizavam reuniões e encontros dos comandantes do Exército Confederado.
Retomamos a estrada e seguimos ao longo do Cane River, originalmente chamado Red River, em virtude das fecundas terras vermelhas do seu entorno (certamente propícias à agricultura de plantation, tal como no caso do nosso massapê). A paisagem é fofa. Muitas árvores às margens do rio, algumas delas com suas folhas se debruçando sobre as águas. Aqui e acolá, uma casinha de madeira avarandada, típica do Sul. As curvas da estrada, que obedecem o curso do rio, conferem charme ainda maior ao passeio. Temos um belo dia de sol. D. resolve tirar o teto do carro, e eu experimento, pela primeira vez, a sensação gostosa de dirigir um conversível, com o vento balançando a cabeleira. Paramos junto ao um senhor negro, que corta galhos de uma árvore, e pedimos informações. Ele nos responde com enorme amabilidade. Tem no falar a forte musicalidade negra sulista, que me delicia.
A caminho de Melrose, paramos na igreja de Santo Agostinho. Uma igreja católica, em madeira branca, construída por um ex-escravo, que se tornou um rico negociante e fundou uma dinastia creole em Cane River. Nos fundos da igreja, um pequeno cemitério guarda os registros de nomes e efemérides dos primeiros paroquianos. As poucas fotos existentes revelam uma comunidade de mulatos claros. D. me explica que são os free people of color de Cane River. Uma comunidade forte, coesa e afortunada, dessa região do estado, que foi colonizada pelos franceses, originalmente, e pelos espanhóis, na sequência, só tendo sido incorporada pelos americanos com a compra do vasto território da Lousiana (Lousiana Purchase), em 1803. Tudo que se refere a esse passado de raízes francesas, espanholas e negras, tende a ser chamado de creole.
A Melrose Plantation é bonita, mas menos interessante. Também tem edifícios originais, incluindo a casa-grande, que escapou da sanha dos Unionistas, porém, se parece mais às outras plantations da Lousiana. Seu principal atrativo, na verdade, é a casinha onde morou e produziu, por muitos anos, Clementine Hunter, a pintora naïve a que me refiro no princípio deste registro. Os móveis e objetos da casa parecem ser efetivamente originais. Num dos cômodos, um envelhecido retrato de John Kennedy, no outro, um de Martin Luther King.
De Merolse, seguimos para Natchitoches, a sede do distrito histórico de Cane River. Trata-se da cidade mais antiga de toda a Lousiana Purchase, que era absolutamente enorme. Não sei se será exagero meu, mas olhando para um grande mapa dos Estados Unidos, incrustado no chão do passeio ao longo do rio, no centro de Natchitoches, fico com a impressão de que a Lousiana Purchase deve corresponder a um terço do atual território americano (terras contínuas). Segundo D., Natchitoches é a sede da cultura criole da Lousiana, que seria essencialmente mestiça. D. tem nítido orgulho dessa herança criole. A rua principal de Natchitoches se estende ao longo do rio, e é muito charmosa, com seus sobrados de enormes varandas no andar superior, a maioria em ferro trabalhado, colados uns aos outros. Os térreos desses sobrados viraram, quase todos, restaurantes ou lojinhas para vender artigos diversos aos turistas. Caminhamos à sombra dessas varandas, apreciando as velhas fachadas dos edifícios. Entramos numa loja de ferragens antiquíssima, onde se vende de tudo e mais alguma coisa. A loja pertence ao passado, com seus balcões de madeira e suas estantes de caixinhas, cheias de pregos e parafusos de todos os tamanhos e espessuras. Lembro-me muito de Francisco Dantas e Maria Lúcia. É um lugar que eles teriam adorado conhecer.
Almoçamos num pub, onde como um delicioso sanduíche de jacaré, à moda cajun. Também provo uma torta de carne (meat pie), que faz a fama de Natchitoches. Nada demais. Voltamos caminhando pela calçada do lado do rio, adornada com belas árvores e muitos bancos de ferro. O sol, ainda forte, incide sobre os bancos, onde ninguém está sentado. Mais abaixo, descendo as escadas, algumas pessoas aproveitam a orla à beira do rio, protegida pela sombra de algumas árvores. Há gente sentada no gramado. Crianças brincam sob os olhos atentos dos pais.
Passamos pela igreja anglicana, D. reencontra velhos amigos. Seguimos para uma volta de carro pelo campus da Universidade do Norte da Lousiana. É um campus sem muito charme. Porém, significa muito para D., que estudou ali. Ela vai me falando das coisas no campus, assim como da cidade de modo geral, com uma emoção de quem fala de tempos felizes.

Já são quase oito horas da noite e começa a escurecer. Nos encaminhamos para a saída da cidade. Recolocamos o teto do carro, eu reassumo o volante e dirijo todo o caminho de volta. D. vai bebendo cerveja ao meu lado. Vamos conversando sobre questões muito pessoais da vida dela. Sua solidão e a força que ela faz para manter-se de pé me impressionam e me comovem. O dia que passamos juntas foi especial, uma espécie de coroamento de um período curto e intenso de convivência e aprendizagem.

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