Os
quadros de Clementine Hunter me levaram por caminhos surpreendentes.
Ao
comentar com D. que havia visto os quadros dessa senhora negra, que trabalhou
apanhando algodão em uma plantation,
ao Norte da Lousiana, ela se animou para me levar a Cane River. Quase quatro
horas de estrada separam Baton Rouge do Cane
River Criole National Historical Park. Saímos cedo de casa. Por sorte, faz
um belo dia de sol, porém, sem o calor escaldante que já cheguei a sentir na
Lousiana. Quanto mais nos afastamos de Baton Rouge, mais rural e mais bonita
vai ficando a paisagem. As áreas urbanas às margens das estradas americanas não
costumam ter muito charme. Já as áreas rurais são belas, com muitas árvores
ladeando as highways ou freeways. D. já foi motorista de caminhão (aos 20 e
poucos anos, na década de 70, baixinha como ela é!), e me fornece informações
interessantes e úteis sobre as rodovias nos Estados Unidos. Eu dirijo o carro, porque
D. dormiu pouco à noite.
Após
algumas horas de highway, pegamos a
saída para o parque nacional de Cane River, e caímos numa estradinha estreita e
singela, de mão dupla, com campos de milho dos dois lados. Há buracos e
remendos no asfalto. O cenário me faz pensar nas estradas nordestinas que
cortam nossos canaviais. Seguimos por essa estradinha em busca da Melrose Plantation. Acabamos dando de
cara com outra plantation, chamada Magnolia. A primeira coisa que avistamos
são as casas dos escravos. São as primeiras habitações de escravos que vejo nos
Estados Unidos, pois elas já não existem nas plantations que havia visitado antes. A Magnolia Plantation foi estabelecida em 1835. Alguns edifícios
originais ainda estão de pé, incluindo esses casebres onde viviam escravos, e
que se situam a poucos metros da casa-grande. Escavações arqueológicas
encontraram várias ferramentas de trabalho, que se estão penduradas ou
encostadas nas paredes de um enorme galpão, onde abelhas produzem um forte
zunido. Aprendo que as edificações, naquela época, e nessa região, utilizavam a
mesma tecnologia das nossas casas de taipa: barro socado entre tiras de madeira
(bem mais grossas as deles, no entanto). As paredes eram, então, caiadas, para
proteger o barro. Só que no Sul dos Estados Unidos, os edifícios mais
importantes das plantations, como as
casas-grandes, eram revestidos de madeira por fora. De madeira pintada também
eram feitas as amplas e acolhedoras varandas. É o caso de uma das estruturas
que se pode visitar na Magnolia
Plantation, que servia de hospital para os escravos. Isso é novidade pra
mim. Um hospital, dentro da plantation,
para tratar dos escravos, que certamente adoeciam com frequência. Terá sido o
pragmatismo americano que levou à existência de tal tipo de estrutura? É o que
me pergunto.
Do
hospital caminho pelo pasto até as casinhas dos escravos. São poucos metros,
mas havia chovido, e o terreno está todo encharcado. Praguejo contra mim mesma
por não ter vindo de tênis. Porém, por nada no mundo, vou deixar de entrar numa
casinha dessas. Enfio a sapatilha na lama. A calça já está mesmo toda
chapiscada. Em determinado ponto, desisto das sapatilhas, porque posso acabar
escorregando. Me descalço e sigo caminhando pela lama, com o pé no chão. As
casinhas são, curiosamente, feitas de tijolos de barro. Pedaços de cal e uma
fina argamassa ainda podem ser vistos nas paredes descascadas, dentro e fora
das casas. Dois pequenos cômodos são divididos por uma parede, com uma passagem
estreita e baixa. Preciso abaixar-me para entrar no que seria um quarto. A
única dessas casinhas em que se pode entrar tem um mobiliário que pretende
reconstituir o ambiente da época. Difícil acreditar que a vida dos escravos
fosse tal como se apresenta aos olhos do visitante, hoje. Mesa, cadeiras,
armários, fogão, panelas, bacias, lamparinas se dispõe criando um ambiente
doméstico demasiado aconchegante. Uma toalha de plástico xadrez e uma cadeira
dos anos 60 acentuam minha impressão de uma composição bastante fake. Em todo caso, a edificação é
original. Os telhados e persianas são novos, em alumínio, e imagino que tenham
sido postos para proteger os edifícios das intempéries.
A
casa-grande é que não é mais o prédio original, queimado pelo Exército da
União, na guerra civil, que deixou sequelas profundas no Sul. Seja nos vários
panfletos sobre as plantations, seja
nas coleções e inscrições dos museus que visito na Lousiana, seja em minhas
conversas com D., a Guerra Civil se me afigura como uma tema ainda quente e
traumático para aos sulistas. A União queimou casas e plantações, mas há algo
para além disso. D. com frequência fala do “Norte”, associando essa figura a
conceitos como arrogância e preconceito. Confesso que a persistência e a presença
viva dessa questão, quase dois séculos depois, me surpreende. Descubro que
escravas negras jogaram um papel importante nessa Guerra, transmitindo ao
Exército da União informações que escutavam nas conversas das casas-grandes,
onde se realizavam reuniões e encontros dos comandantes do Exército Confederado.
Retomamos
a estrada e seguimos ao longo do Cane River, originalmente chamado Red River, em
virtude das fecundas terras vermelhas do seu entorno (certamente propícias à agricultura
de plantation, tal como no caso do
nosso massapê). A paisagem é fofa. Muitas árvores às margens do rio, algumas
delas com suas folhas se debruçando sobre as águas. Aqui e acolá, uma casinha
de madeira avarandada, típica do Sul. As curvas da estrada, que obedecem o
curso do rio, conferem charme ainda maior ao passeio. Temos um belo dia de sol.
D. resolve tirar o teto do carro, e eu experimento, pela primeira vez, a
sensação gostosa de dirigir um conversível, com o vento balançando a cabeleira.
Paramos junto ao um senhor negro, que corta galhos de uma árvore, e pedimos
informações. Ele nos responde com enorme amabilidade. Tem no falar a forte
musicalidade negra sulista, que me delicia.
A
caminho de Melrose, paramos na igreja de Santo Agostinho. Uma igreja católica,
em madeira branca, construída por um ex-escravo, que se tornou um rico negociante
e fundou uma dinastia creole em Cane
River. Nos fundos da igreja, um pequeno cemitério guarda os registros de nomes
e efemérides dos primeiros paroquianos. As poucas fotos existentes revelam uma
comunidade de mulatos claros. D. me explica que são os free people of color de Cane River. Uma comunidade forte, coesa e
afortunada, dessa região do estado, que foi colonizada pelos franceses,
originalmente, e pelos espanhóis, na sequência, só tendo sido incorporada pelos
americanos com a compra do vasto território da Lousiana (Lousiana Purchase), em 1803. Tudo que se refere a esse passado de
raízes francesas, espanholas e negras, tende a ser chamado de creole.
A
Melrose Plantation é bonita, mas menos
interessante. Também tem edifícios originais, incluindo a casa-grande, que
escapou da sanha dos Unionistas, porém, se parece mais às outras plantations da Lousiana. Seu principal
atrativo, na verdade, é a casinha onde morou e produziu, por muitos anos,
Clementine Hunter, a pintora naïve a que me refiro no princípio deste registro.
Os móveis e objetos da casa parecem ser efetivamente originais. Num dos
cômodos, um envelhecido retrato de John Kennedy, no outro, um de Martin Luther
King.
De
Merolse, seguimos para Natchitoches, a sede do distrito histórico de Cane
River. Trata-se da cidade mais antiga de toda a Lousiana Purchase, que era absolutamente enorme. Não sei se será
exagero meu, mas olhando para um grande mapa dos Estados Unidos, incrustado no
chão do passeio ao longo do rio, no centro de Natchitoches, fico com a
impressão de que a Lousiana Purchase
deve corresponder a um terço do atual território americano (terras contínuas).
Segundo D., Natchitoches é a sede da cultura criole da Lousiana, que seria essencialmente mestiça. D. tem nítido
orgulho dessa herança criole. A rua
principal de Natchitoches se estende ao longo do rio, e é muito charmosa, com
seus sobrados de enormes varandas no andar superior, a maioria em ferro
trabalhado, colados uns aos outros. Os térreos desses sobrados viraram, quase
todos, restaurantes ou lojinhas para vender artigos diversos aos turistas.
Caminhamos à sombra dessas varandas, apreciando as velhas fachadas dos
edifícios. Entramos numa loja de ferragens antiquíssima, onde se vende de tudo
e mais alguma coisa. A loja pertence ao passado, com seus balcões de madeira e
suas estantes de caixinhas, cheias de pregos e parafusos de todos os tamanhos e
espessuras. Lembro-me muito de Francisco Dantas e Maria Lúcia. É um lugar que
eles teriam adorado conhecer.
Almoçamos
num pub, onde como um delicioso
sanduíche de jacaré, à moda cajun.
Também provo uma torta de carne (meat pie),
que faz a fama de Natchitoches. Nada demais. Voltamos caminhando pela calçada
do lado do rio, adornada com belas árvores e muitos bancos de ferro. O sol,
ainda forte, incide sobre os bancos, onde ninguém está sentado. Mais abaixo,
descendo as escadas, algumas pessoas aproveitam a orla à beira do rio,
protegida pela sombra de algumas árvores. Há gente sentada no gramado. Crianças
brincam sob os olhos atentos dos pais.
Passamos
pela igreja anglicana, D. reencontra velhos amigos. Seguimos para uma volta de
carro pelo campus da Universidade do Norte da Lousiana. É um campus sem muito
charme. Porém, significa muito para D., que estudou ali. Ela vai me falando das
coisas no campus, assim como da cidade de modo geral, com uma emoção de quem
fala de tempos felizes.
Já
são quase oito horas da noite e começa a escurecer. Nos encaminhamos para a
saída da cidade. Recolocamos o teto do carro, eu reassumo o volante e dirijo
todo o caminho de volta. D. vai bebendo cerveja ao meu lado. Vamos conversando
sobre questões muito pessoais da vida dela. Sua solidão e a força que ela faz
para manter-se de pé me impressionam e me comovem. O dia que passamos juntas
foi especial, uma espécie de coroamento de um período curto e intenso de
convivência e aprendizagem.
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