terça-feira, 30 de outubro de 2018

O teste da democracia


Quem quiser pensar em construir um Brasil pós-Bolsonaro vai precisar realizar um genuíno esforço de leitura do que nós vivemos nessa eleição de 2018. Aferrar-se a certezas e palavras de ordem é o caminho certo para o fracasso de qualquer projeto político – presente ou futuro.
Nesse sentido, as reações de Haddad e do PT à vitória de Bolsonaro são uma péssima notícia. Hillary Clinton e Donald Trump protagonizaram a mais agressiva campanha presidencial da história recente dos Estados Unidos. Acredito ser desnecessário estabelecer juízos de valor sobre o presidente americano. É quase inacreditável que os Estados Unidos tenham trocado um presidente com a estatura de Barack Obama por um ogro como Trump. No entanto, mesmo tendo ganho no voto popular(!), mesmo tendo sido vítima de fake news gravíssimas (patrocinadas pelo todo-poderoso governo russo), Hillary Clinton ligou para Trump, reconhecendo a vitória do adversário. Não é difícil imaginar que a candidata derrotada não fez isso em respeito a Donald Trump, figura pela qual é provável que tenha o mais profundo desprezo. O telefonema de Hillary simboliza seu respeito pela DEMOCRACIA, e pelos milhões de americanos que por qualquer razão que seja, decidiram, com seus votos, colocar Trump na presidência. Isso se chama também civilidade, decência, grandeza moral.
Infelizmente, o gesto e o discurso de Haddad após a apuração sugerem uma estatura moral apequenada. A reação da manhã seguinte, tardia e mediada pelas redes sociais, é largamente insuficiente como correção do feio papel da véspera. Como cidadã e estudiosa de nosso processo político, o comportamento do candidato derrotado e de seus aliados me entristece e me preocupa porque aponta para uma total incapacidade de compreensão do processo que estamos vivendo no Brasil, hoje. Como disse Merval Pereira, Haddad encheu a boca para falar dos 47 milhões de votos que recebeu, esquecendo-se de que quatro anos atrás Aécio Neves teve 51 milhões de votos! Também parece ignorar que Bolsonaro se elegeu presidente da República, com 57 milhões de votos: sem marqueteiro, sem o apoio da grande mídia, sem uma grande estrutura de campanha, sem “palanque”, sem dinheiro, sem alianças com grandes empresários e contra os grandes caciques da política nacional! Quase toda a sua campanha foi feita de dentro de casa, com um celular 4G e um tripezinho de mesa. Seu programa eleitoral foi gravado na sala da casa de um amigo. Se tudo isso não levar o PT a refletir sobre seus erros não consigo imaginar o que possa fazer...
Como disse, quando me pronuncio a respeito da chocante incapacidade de autocrítica do PT -- e das demais forças de esquerda e de centro!!! --, o faço movida por uma preocupação profunda com o futuro do Brasil. Embora já não me identifique com a esquerda (obra do Mensalão), tenho convicção de que a saúde da Democracia carece de uma esquerda forte, madura e efetivamente comprometida com os destinos do país.
Nossos próximos quatro anos são uma incógnita. O governo Bolsonaro é, para mim, um enorme ponto de interrogação. Ainda que não consiga compartilhar do pânico de muitas pessoas, é óbvio que olho para o horizonte nacional com profunda inquietação – por razões que explorarei em outros textos.
Curiosamente, não tenho medo de uma escalada de violência contra minorias. Acredito firmemente nas nossas instituições democráticas, dentre as quais se inclui a Justiça. E é bom mantermos a clareza de que JÁ convivemos com crimes de homofobia, feminicídio e racismo. Aliás, se bem me lembro, o Brasil costuma frequentar as páginas de relatórios de organizações internacionais que nos colocam em posição pouco confortável a esse respeito. Logo, associar automaticamente qualquer novo crime dessa natureza à eleição de Bolsonaro é, pelo menos, leviano. Teremos que esperar as estatísticas anuais e comparar números para estarmos autorizados a qualquer conclusão fundamentada.
Em tempo: a teoria do caos e os exageros da retórica costumam surtir o efeito de desacreditar o discurso de crítica. A pessoa que força a barra de sua argumentação, acaba por ficar desacreditada. Mais ou menos como acontece na historinha que meu pai me contava sobe o menino que vivia fingindo afogamento e acabou morrendo porque, quando aconteceu de verdade, ninguém foi socorrê-lo. Objetivamente, se cada briga de bar for apontada como culpa de Bolsonaro, o coletivo terá dificuldade de discernir uma real escalada de crimes de ódio e preconceito.
Outras questões me preocupam bem mais no futuro governo Bolsonaro do que uma improvável escalada de violência contra minorias. E, insisto, minha maior preocupação reside na escassez de sinais das demais lideranças políticas desse país no sentido de uma reflexão profunda e desarmada sobre as causas da vitória de Bolsonaro. As ruas se pronunciaram com toda clareza desde 2013. Foram solenemente ignoradas por políticos de todas as colorações. O resultado do surto coletivo de ensimesmamento político foi o chamado tsunami eleitoral.
A sociedade civil organizada que luta por uma agenda de esquerda também precisa fazer essa reflexão, caso queira retomar essa mesma agenda com alguma possibilidade de sucesso. A análise dos processos históricos (totalmente esquecida quando não é conveniente) indica que agendas progressistas não negociadas com o coletivo costumam gerar reações contrárias exacerbadas. É precisamente o que se chama de reacionarismo (a etimologia é bastante evidente). Logo, gritar, espernear e continuar alimentando o discurso do pânico e do ódio dificilmente produzirá resultados positivos. Já um tantinho de humildade e um esforço verdadeiro de empatia poderiam produzir maravilhas. Menos julgamento e mais compreensão, como reza a Antropologia.
O Brasil certamente agradecerá.

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