sábado, 30 de junho de 2012

Ascenso Ferreira em quatro tempos (Derradeiro)


Os textos desta série foram tirados da “Introdução” de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, edição da Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.

Feitiços de amor e de vida

O terceiro e mais freqüente tema trabalhado por Ascenso Ferreira em seus poemas é o amor. Os poemas de amor aparecem na poesia do pernambucano desde Catimbó, embora marquem particularmente o livro Xenhenhém, onde são mais numerosos. Além disso, os poemas que trazem o amor por tema em Catimbó e Cana caiana são distintos dos poemas de Xenhenhém. Nos dois primeiros livros, Ascenso trata da temática amorosa de um modo descontraído e até engraçado, utilizando particularmente motes da cultura popular nordestina para falar do amor. Aliás, poemas como “Catimbó”, “Reisado”, “Bumba-Meu-Boi”, “Mandinga”, “A força da lua”, “Martelo”, “A Formiga-de-Roça” e “Toré” têm títulos de certo modo enganosos, pois o leitor insuspeitado não imagina que se tratam de poemas de amor, e não de registro folclórico.
            “Catimbó” é, na verdade, a expressão poética de um feitiço de amor. Segundo os costumes populares, recorre-se ao rito do catimbó para atrair a pessoa amada. Pois o poema de Ascenso é justamente uma espécie de encantamento para atrair uma mulher. O feitiço encontra a sua força na figura de Mestre Carlos, cujo poder se evoca (“— Porque de Mestre Carlos é grande o poder!”). Aliás, o verso que evoca o poder de Mestre Carlos, o “rei dos mestres”, que “reina no fogo”, “reina na água” e “reina no ar”, introduz a estrofe em que se enuncia o encantamento ou feitiço (“Pelas três marias... Pelos três reis magos... Pelo setestrelo.../Eu firmo essa intenção,/bem no fundo do coração,/e o signo de Salomão/ponho como selo...”). Note-se que todos os elementos mágicos conjurados em favor do feitiço estão em itálico, o que lhes dá mais destaque. Por sua vez, os números três e sete, tradicionalmente associados ao misterioso e ao divino, reforçam o encantamento. A estrofe seguinte traz o objetivo a ser alcançado, já enunciado desde a segunda estrofe: “E ela há de me amar.../Há de me amar.../Há de me amar.../— Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!”
Os dois últimos poemas de Cana caiana já inauguram uma nova poética amorosa. Com “Teu poema” e “A chama” começa todo um discurso sobre um amor torturado, culpado e conflituoso, que será marcante em Xenhenhém. Aspecto interessante a ser notado é a irreverência do poeta, que tomou para título do seu terceiro livro um regionalismo de conotação vulgar. A palavra “xenhenhém”, que dá nome aos dois primeiros poemas do livro, para além de designar um tipo de dança próprio de certas áreas do Nordeste, é sinônimo de genitália feminina. Sem dúvida isso deriva, e ao mesmo tempo reitera, a carga de sensualidade e erotismo fortemente associada aos poemas de amor de Ascenso nesse terceiro livro. Paralelamente, na poética do autor, “xenhenhém” também é uma espécie de onomatopéia que compõe a imagem de uma queixa permanente. Queixa da amada e lamento do poeta, “xenhenhém” é a condensação, em imagem poética, de um amor violento, sensual, conturbado e condenado, mas, ao final de tudo, sublime.
 “Xenhenhém nº 1” é uma queixa de amor, mas onde se percebe que a alegria do amor é maior que a dor. As duas estrofes pares (o poema tem quatro estrofes) são antinômicas. A segunda reflete as delícias do amor: “Xenhenhém... xenhenhém... xenhenhém.../— Coisa gostosa é a gente querer bem!”. Enquanto a quarta reflete as suas dores: “Xenhenhém... xenhenhém... xenhenhém.../— Coisa terrível é a gente querer bem!”. Por sua vez, em “Xenhenhém nº 2”, a mulher amada é um alívio para o poeta, que sofre as dores do mundo. O paradoxo é que o amor dela é um alento, mas ao mesmo tempo um tormento, presença que é também ausência, motivo de dor e causa de felicidade (“Em meio às minhas muitas dores/talvez maiores do que o mundo,/surges, às vezes, um segundo,/cheia de pérfidos langores.”). O poema é nova queixa de amor e ao mesmo tempo traz a imagem de uma situação indefinida (“Súbito, encontro a casa oca./Não estás! — Meu Deus, que coisa louca,/só é na vida um xenhenhém!”). Este é o primeiro soneto de Ascenso incluído em volume com poemas de “feição modernista”. Entretanto, está em versos heptassílabos, ou seja, em redondilha maior. Dá-se, assim, a conjugação entre a forma clássica do soneto e a construção popular em redondilha maior.
Há uma convergência entre o amor e o místico na poética de Ascenso, notável em vários poemas. “Êxtase”, por exemplo, é poema curtíssimo, de quatro versos longos, em que ocorre o uso de um registro místico para falar do amor como via de transfiguração e modo de elevação do espírito. A amada é associada a um universo semântico que mistura erotismo e sagrado: calma, langor, suavidade, elevação, transfiguração. É no seio da amada que a alma do sujeito se desprende das contingências do mundo para encontrar sua plenitude (“Emana do teu ser uma tão grande calma,/um langor tão suave, expressivo, profundo,/que tenho a sensação virgem de que minh’alma,/desgarrada de mim, anda solta no mundo.”). Assim, na poética de Ascenso Ferreira, o amor carnal e o amor sublime conjugam-se e pavimentam o caminho para a transcendência.

            Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira viveu intensamente. Foi homem de grandes paixões: o jogo, a comida, as duas mulheres de sua vida, Stella Griz e Maria de Lourdes Medeiros, e sua filha, Maria Luiza. Mas também foi homem dos amores cotidianos, daqueles de que se tece a trama de uma vida plenamente vivida. Amava sua terra, sua gente. Adorava o carnaval, a festa, a dança, a música e os brinquedos de rua, que freqüentou e dos quais participou fielmente por anos a fio. E, sempre pontuando ou permeando tudo, a poesia. Aliás, se é possível estabelecer um paralelo entre vida e poesia, tão de gosto dos críticos e comentaristas de Ascenso, ele existe precisamente na medida em que a poesia de Ascenso se alimenta da ternura e da paixão de viver do poeta. A vida com suas cores, cheiros, sabores, vozes, imagens inunda a poesia de Ascenso, enchendo seus poemas de alegria ou de dor. A vida, presente nos poemas em toda a sua sensualidade, naquilo que deve ser visto, saboreado, cheirado, sentido, se descortina aos olhos do leitor, convidado pelo poeta a experimentar a realidade e a fantasia, a viver o gozo da comunhão da carne e a dor da desaparição ou da morte.
            Para Ascenso, portanto, a poesia se alimenta da vida. Não foi à toa, aliás, que no final da vida, doente, já privado de suas comidas favoritas, e limitado em seus movimentos e atividades, Ascenso quase deixou de escrever poemas e mal acompanhou a última edição de sua obra poética, a primeira que levava um selo de editora prestigiada nacionalmente. No entanto, a poesia de Ascenso também alimenta a vida, permite que ela se transfigure e se renove. É no espaço da poesia que Ascenso salvaguarda mundos sociais e universos culturais ameaçados de desaparecimento. Para o poeta pernambucano, é através da palavra que o passado pode ser revivido e o futuro pode ser inventado com múltiplas faces. É a poesia que permite a Ascenso tocar as cordas da sensibilidade humana, delas tirando acordes de dor e de alegria, que podem fazer sofrer, gozar, encarar paradoxos e limitações, e fantasiar. É através da poesia que Ascenso constrói sua utopia de um mundo encantado, onde o maior dos temores traveste-se do medo infantil da Cabra-Cabriola e do Pai-do-Mato.
            Infelizmente, esse grande poeta permanece conhecido de poucos e ainda é visto por boa parte desses poucos como poeta folclórico e pitoresco. É claro que não pretendi esgotar aqui – nem alhures -- as possibilidades de interpretação de obra tão rica e cheia de nuances. Porém, espero, sim, sugerir que Ascenso deixe de ser lido como poeta regional, como poeta menor, ou simplesmente pitoresco. Que Ascenso não seja apenas lido como curiosidade, mas que sua poesia possa ser usufruída como a grande obra moderna que é.

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