quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 40


27/10/15

Boa noite, Niquinha!
Hoje lhe escrevo de Samos, um lugarejo situado num pequeno vale, no meio das montanhas. A origem e o coração do lugar são um enorme Mosteiro, cujas origens remontam ao século VI. É o mais antigo Mosteiro do Caminho de Santiago, ainda em atividade. Uma estrada importante corta a pequena Samos e passa bem ao lado do Mosteiro. Ainda assim, é um lugar que transmite muita Paz.
A noite passada, no albergue municipal de O Cebreiro foi razoável. Não senti frio, mas tinha muita gente roncando e ressonando, e eu dormi num beliche superior, colado no de Flávio. Então, tive muito cuidado para fazer o mínimo de ruído me virando na cama (e eu me viro muito). Acordei cedinho, sem despertador, e fiquei esperando a galera começar a se movimentar, pra descer da cama e ir ao banheiro, que fica no andar debaixo e estava, obviamente, muito frio.
O tempo estava péssimo quando deixei o albergue. Muito nublado, muito frio e chovendo. Fui até o hotel principal deixar minha mochila e combinei com Paulo, Karine e Flávio que os encontraria na primeira parada, para tomarmos café da manhã. Segundo Paulo, tinha um café “logo ali embaixo”. Com a neblina e a chuva, acaba que me enganei na saída de O Cebreiro. Não vi as setinhas amarelas e ia descendo margeando a estrada, quando me veio a sensação de que eu estava indo pelo caminho errado. Tinha andado menos de um quilômetro e resolvi voltar pra cidade, para verificar. Foi minha sorte, porque eu tinha descido uma ladeirinha, quando deveria ter subido e passado novamente em frente ao albergue. Reencontrei minhas setinhas e caminhei três quilômetros, em meio à neblina, até chegar em Liñares, onde estava o tal café. A galera brasileira estava toda lá. Tomei meu café com pão fresquíssimo, chegando da padaria, e voltamos pra chuva e pro vento gelado.
A descida até Triacastela, nosso destino do dia, é cheia de altos e baixos. Portanto, apesar da chuva, suamos a camisa. Subimos dois altos bem caprichados, o Alto de São Roque e o Alto do Poio. Até aí, a chuva foi ficando cada vez mais intensa, ao passo que a neblina se foi dissipando. Felizmente, não molhei os pés, porque estava de calça impermeável. Minhas botas só ficaram um pouco úmidas. Só os cumes das montanhas mais altas permaneciam cobertos pela névoa. Entre os dois Altos, passamos pelo vilarejo de Hospital da Condessa, completamente vazio. Não encontramos uma alma sequer pelas ruas. Paramos na fonte local para que o meu trio de companheiros abastecesse suas garrafinhas de água.
Em Fonfría paramos num restaurantezinho já conhecido de Paulo. A dona o reconheceu imediatamente e fez a maior festa. Tem até retrato dele pregado num muralzinho. Ali tomamos um caldo gallego, uma sopinha de batatas, couves, feijão branco e um tipo de toucinho. Eu achei muito gostosa. E veio mesmo a calhar, pra esquentar o corpo. Tomamos um copinho de vinho também. Quando saímos pra retomar a estrada, a chuva tinha parado! Uma alegria. A caminhada se tornou bem mais agradável e pudemos aproveitar a vista linda das encostas verdinhas, com gado pastando, ou da mata densa, colorida do outono, a depender do trecho. Aqui e acolá, pelos campos, antigos cilos de pedra e palha. Ainda cruzamos dois pequenos povoados, com suas casinhas de pedra e telhados de ardósia, e suas ruas desertas (é incrível como muitas cidadezinhas do Caminho dão a sensação de abandono e despovoamento), até começarmos a descida mais acentuada, para Triacastela.
A montanha tem uma coisa interessante. Quando você chega a algum ponto mais elevado, você vê seu destino bem na sua frente. Só que você faz tanta curva, sobe e desce, que sempre demora mais do que pensava para chegar no lugar que parecia tão pertinho de você. A entrada para Triacastela é linda. A gente caminha pelo meio de uma mata bem fechada, com árvores lindas, cheinhas de musgo. Junto a uma encosta, para proteger os barrancos, certamente, um velho e extenso muro de pedras simplesmente sobrepostas. Aqui na Galícia, nesses trechos de mata, se vê muito esses muros, com toda pinta de serem seculares, cobertos de musgos, de hera, e que não têm nenhum tipo de “cola”. As pedras estão simplesmente encaixadas, e aquele negócio resiste ao tempo e às intempéries. Não canso de me admirar com eles.
Agradeci muito a companhia de Paulo, Karine e Flávio. Paulo é muito divertido, como eu te disse. Ontem foi minha caminhada mais longa desde que essa tendinite se manifestou. E não foi fácil, com tanta subida e descida. A companhia deles fez uma grande diferença e me deu ânimo para enfrentar a distância. Paulo foi contando histórias do Caminho e fazendo reflexões muito interessantes. Ele é um homem de grande sensibilidade. Ele falou duas coisas que me ficaram na cabeça. Uma é que existe o Caminho físico, com seus quilômetros, e o Caminho mágico, uma via espiritual, que guarda e acumula a energia das criaturas que ao longo dos séculos usaram esse percurso como via de crescimento e de encontro com Deus. O primeiro Caminho é o que todo mundo faz. O segundo Caminho só alguns conseguem acessar, de vez em quando, ao longo da caminhada.
A segunda coisa que Paulo disse, contando a história de uma peregrina que ele conheceu, é que o Caminho (o mágico) tem a ver com o fim do EU. E esse processo passa pela experiência dos albergues, onde não tem a minha cama, o meu quarto, o meu banheiro, o meu chuveiro, as minhas coisas. É a expressão concreta da experiência mais sutil da alma, que precisa descobrir que ela é parte do Universo, da Criação. Lembrei-me de que as filosofias Zen falam muito que a separação, a ideia de Indivíduo é uma ilusão a ser superada no processo de crescimento espiritual, pois somos todos a expressão de uma mesma Unidade, que é Deus. O egoísmo encontrará seu fim quando entendermos que somos todos Um.
Bom, chegamos a Triacastela de tardinha, bastante cansados. Ficamos no Albergue Xacobeo (Jacobeo). Um lugar todo novinho, recém reformado pelo jeito, e com uma boa cozinha. Paulo é o cozinheiro oficial da brasileirada. Perguntamos à hospitalera se podíamos dormir todos em camas debaixo, e ela, muuuuito gentil, acabou “abrindo” um novo quarto só para nós. Uma das vantagens de caminhar em outubro é que já não tem tanta gente, os albergues raramente estão cheios, então, dá para ter esses luxos, e, inclusive, pegar a manta das outras camas de empréstimo, para dormir mais quentinha, he, he, he.
Após o banho bem quentinho (o banheiro era unissex, mas com portas nos chuveiros!), fomos ao supermercado e compramos uns enlatados. Paulo fez um risoto de frutos do mar, com esses enlatados, que ficou simplesmente divino. Eu nem gosto de jantar, mas comi horrores. Também fiz minha saladinha básica de tomates, claro. E tomamos um bom vinho do Bierzo. Depois de comer tanto, ficamos conversando um bocado, para fazer a digestão.
Dormi muito bem no quarto quentinho e com camas confortáveis, sem ronco, só o barulhinho gostoso da chuva no telhado. E fui dormir com a sensação de que conseguirei chegar a Santiago! Desde que me apareceu essa tendinite que eu vinha meio receosa de que isso comprometesse minha chegada. E vinha rezando muito, pedindo a Deus a Graça de me permitir entrar em Santiago com meus próprios pés. Ontem, não sei porquê, me veio muito forte a sensação de que vai dar tudo certo. Fui dormir feliz e agradecida.
Apesar da boa dormida, acordei cedo e fui para as mesas do refeitório, para escrever um pouco e colocar meus relatos em dia. Quando todos levantaram, preparamos o café da manhã, comemos e retomamos a estrada. Meus queridos companheiros tomaram o rumo de Sarria, e eu tomei o rumo de Samos, porque queria muito conhecer o Mosteiro (nesse ponto, há duas alternativas para seguir o Caminho). Posso lhe dizer, Niquinha, que mesmo apreciando demais a companhia dos três, me despedi sem nenhum peso no coração. Ao contrário, meus sentimentos eram de Alegria e Gratidão, pelo muito que pude compartilhar com eles. Acho que estou aprendendo, rs, rs, rs. Trocamos números de zap zap, para ficarmos em contato, claro, mas a verdade é que eles devem chegar a Santiago uns três dias antes de mim, pois pretendo fazer etapas mais curtas, de quinze quilômetros, em lugar de vinte, para não abusar do meu pé.
A caminhada até Samos foi curta e belíssima. Andei o tempo todo junto ao rio Oribio, de águas céleres e mais revoltas do que vinha observando nos rios que acompanhei ao longo do Caminho. Isso significa que o barulho das águas é mais intenso, e a gente sente uma energia mais forte vindo dele. Fui margeando uma estrada apenas na parte inicial. Caminhei a maior parte do tempo numa estradinha pelo meio de uma mata fechada, muito linda. O chão já está todo coberto de folhas. Muitíssimas castanhas pelo chão. Até colhi algumas, para ver se cozinho em algum albergue e provo do leite com castanhas de que Jus me falou. Vi pouquíssimos peregrinos caminhando para Samos. Cruzei alguns arruados, passei por Igrejinhas de pedra com cemitérios ao lado, e nas curvas finais, já quase chegando ao meu destino, peguei uma chuvarada forte. Ainda bem que a chuva foi rápida, porque se continuasse por muito tempo, com aquela intensidade, capaz que eu me molhasse toda, pois não tinha posto a calça impermeável.
As subidas e descidas de hoje foram mais suaves, e quando menos esperei, após uma curva da estrada, cheguei a uma clareira, num alto, e pude ver o imenso Mosteiro de Samos mais abaixo, no pequeno vale. Uma bela vista. Ainda andei um bocadinho pelas curvas da estrada de Samos até avistar as primeiras casinhas. Mais à frente, bem juntinho do rio, está a imponente edificação, construída nos séculos XVI e XVII (não há mais nada de remanescente do prédio que existiu ali nos séculos anteriores). O Mosteiro é cercado por um belo jardim e por um pomar. As macieiras estão carregadas de frutos vermelhos. No rio, patinhos nadavam tranquilamente. Cruzei a pontezinha sobre o rio e fui procurar o albergue para onde tinha mandado minha mochila. Descobri que esse albergue fecha às terças. A mochila estava numa pousada ao lado. Consegui negociar um preço razoável num quarto individual (sem banheiro) e resolvi ficar por ali mesmo. Estava com medo de o albergue do Mosteiro ser muito frio. Samos é muito pequenininha. Logo, há poucas opções de hospedagem.
Deixei minhas coisas no quarto e fui logo visitar o Mosteiro, com medo que fechasse pra siesta. Acabei tendo uma visita guiada só pra mim. A moça, Mónica, tinha uma certa formalidade que se encontra em alguns espanhóis, mas foi muito gentil. O Mosteiro é ocupado há séculos pelos monges beneditinos. Ele é tão grande assim porque tem dois enormes claustros contíguos. Um do século XVI e outro do século XVII. No pátio interno do primeiro, há uma linda fonte de traçado gótico, muito curiosa. A fonte é bem alta e seu destaque são as compridas Nereidas que sustentam o topo. Adoro ver essas referências pagãs nos monumentos religiosos. Creio que me dão a sensação de uma saudável convivência de realidades humanas distintas.
A Igreja do Mosteiro tem enormes arcos arredondados e uma grande abóbada sobre o cruzeiro central. Os altares laterais são de um Barroco tardio, mais interessante, e o altar principal já é o que eles chamam aqui na Espanha, de renascentista (é o pós Barroco), com linhas mais retas e mais colorido (mármores e pinturas). Esse estilo renascentista raramente me agrada. A nave da Igreja é muito ampla. Numa das reformas, eles removeram o coro de madeira, que virou moda aí pelo século XVII, e que acaba comprometendo a percepção de espaço de quem entra nas grandes Igrejas góticas ou românicas. O Mosteiro de Samos sofreu um grande incêndio na década de 1950, e muita coisa teve de ser reconstruída. Ainda assim, a visita é interessante. Os claustros superiores viraram hospedaria e as paredes estão cobertas por pinturas contemporâneas, que contam a vida de São Bento. O efeito é curioso. Apenas uma parte do Mosteiro está reservada aos menos de 10 religiosos que vivem ali nos dias atuais. Ah! Aprendi que teve um Padre Feijó importante na história dos beneditinos. Um filósofo Ilustrado, que conseguiu espanar um pouco da poeira de dogmatismo e conservadorismo que foi se acumulando com o tempo, na Ordem de São Bento.
Após deixar o convento, fui conhecer a Capela do Cipestre. Uma casinha de pedra, que dizem ser do século IX. Em todo caso, diz a crença que se o peregrino abraçar o cipestre, chegará a Santiago sem problemas nos pés. Com chuva e tudo, cuidei logo de dar meu abraço bem apertado no cipestre solitário, que cresceu bem rente à parede da capelinha.
Feitas as visitas obrigatórias, vim pro albergue, tomei meu banho quentinho, massageei meus pés, fiz um lanche, tirei um cochilo e me pus a escrever. É muito bom poder ter esse luxo, uma vez que outra, de dormir uma noite sozinha, numa cama de verdade, se enxugar com toalha de verdade... Mas o que mais me agrada, realmente, é a possibilidade de estar num ambiente silencioso, onde posso me concentrar, escrever, meditar, dormir e acordar na hora em que desejo. Na verdade, cada coisa tem o seu encanto e a sua função. A convivência nos albergues também tem sido preciosa, em muitos aspectos.
A pousada é exatamente em frente ao Mosteiro. Daqui fico escutando os sinos tocarem a cada meia hora pelo menos. O quarto está bem aquecido, e a noite certamente será deliciosa.
Mais oito dias e, se Deus quiser, chegarei a Santiago!
Beijo grande, Minha Irmã,

Léia

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