27/10/15
Boa noite, Niquinha!
Hoje lhe escrevo de
Samos, um lugarejo situado num pequeno vale, no meio das montanhas. A origem e
o coração do lugar são um enorme Mosteiro, cujas origens remontam ao século VI.
É o mais antigo Mosteiro do Caminho de Santiago, ainda em atividade. Uma
estrada importante corta a pequena Samos e passa bem ao lado do Mosteiro. Ainda
assim, é um lugar que transmite muita Paz.
A noite passada, no albergue
municipal de O Cebreiro foi razoável. Não senti frio, mas tinha muita gente
roncando e ressonando, e eu dormi num beliche superior, colado no de Flávio.
Então, tive muito cuidado para fazer o mínimo de ruído me virando na cama (e eu
me viro muito). Acordei cedinho, sem despertador, e fiquei esperando a galera
começar a se movimentar, pra descer da cama e ir ao banheiro, que fica no andar
debaixo e estava, obviamente, muito frio.
O tempo estava péssimo
quando deixei o albergue. Muito nublado, muito frio e chovendo. Fui até o hotel
principal deixar minha mochila e combinei com Paulo, Karine e Flávio que os
encontraria na primeira parada, para tomarmos café da manhã. Segundo Paulo,
tinha um café “logo ali embaixo”. Com a neblina e a chuva, acaba que me enganei
na saída de O Cebreiro. Não vi as setinhas amarelas e ia descendo margeando a
estrada, quando me veio a sensação de que eu estava indo pelo caminho errado.
Tinha andado menos de um quilômetro e resolvi voltar pra cidade, para
verificar. Foi minha sorte, porque eu tinha descido uma ladeirinha, quando
deveria ter subido e passado novamente em frente ao albergue. Reencontrei
minhas setinhas e caminhei três quilômetros, em meio à neblina, até chegar em
Liñares, onde estava o tal café. A galera brasileira estava toda lá. Tomei meu
café com pão fresquíssimo, chegando da padaria, e voltamos pra chuva e pro
vento gelado.
A descida até
Triacastela, nosso destino do dia, é cheia de altos e baixos. Portanto, apesar
da chuva, suamos a camisa. Subimos dois altos bem caprichados, o Alto de São
Roque e o Alto do Poio. Até aí, a chuva foi ficando cada vez mais intensa, ao
passo que a neblina se foi dissipando. Felizmente, não molhei os pés, porque
estava de calça impermeável. Minhas botas só ficaram um pouco úmidas. Só os
cumes das montanhas mais altas permaneciam cobertos pela névoa. Entre os dois
Altos, passamos pelo vilarejo de Hospital da Condessa, completamente vazio. Não
encontramos uma alma sequer pelas ruas. Paramos na fonte local para que o meu
trio de companheiros abastecesse suas garrafinhas de água.
Em Fonfría paramos num
restaurantezinho já conhecido de Paulo. A dona o reconheceu imediatamente e fez
a maior festa. Tem até retrato dele pregado num muralzinho. Ali tomamos um caldo gallego, uma sopinha de batatas,
couves, feijão branco e um tipo de toucinho. Eu achei muito gostosa. E veio
mesmo a calhar, pra esquentar o corpo. Tomamos um copinho de vinho também.
Quando saímos pra retomar a estrada, a chuva tinha parado! Uma alegria. A
caminhada se tornou bem mais agradável e pudemos aproveitar a vista linda das
encostas verdinhas, com gado pastando, ou da mata densa, colorida do outono, a
depender do trecho. Aqui e acolá, pelos campos, antigos cilos de pedra e palha.
Ainda cruzamos dois pequenos povoados, com suas casinhas de pedra e telhados de
ardósia, e suas ruas desertas (é incrível como muitas cidadezinhas do Caminho
dão a sensação de abandono e despovoamento), até começarmos a descida mais
acentuada, para Triacastela.
A montanha tem uma
coisa interessante. Quando você chega a algum ponto mais elevado, você vê seu
destino bem na sua frente. Só que você faz tanta curva, sobe e desce, que
sempre demora mais do que pensava para chegar no lugar que parecia tão pertinho
de você. A entrada para Triacastela é linda. A gente caminha pelo meio de uma
mata bem fechada, com árvores lindas, cheinhas de musgo. Junto a uma encosta,
para proteger os barrancos, certamente, um velho e extenso muro de pedras
simplesmente sobrepostas. Aqui na Galícia, nesses trechos de mata, se vê muito
esses muros, com toda pinta de serem seculares, cobertos de musgos, de hera, e
que não têm nenhum tipo de “cola”. As pedras estão simplesmente encaixadas, e
aquele negócio resiste ao tempo e às intempéries. Não canso de me admirar com
eles.
Agradeci muito a
companhia de Paulo, Karine e Flávio. Paulo é muito divertido, como eu te disse.
Ontem foi minha caminhada mais longa desde que essa tendinite se manifestou. E
não foi fácil, com tanta subida e descida. A companhia deles fez uma grande
diferença e me deu ânimo para enfrentar a distância. Paulo foi contando
histórias do Caminho e fazendo reflexões muito interessantes. Ele é um homem de
grande sensibilidade. Ele falou duas coisas que me ficaram na cabeça. Uma é que
existe o Caminho físico, com seus quilômetros, e o Caminho mágico, uma via espiritual, que guarda e acumula a energia das
criaturas que ao longo dos séculos usaram esse percurso como via de crescimento
e de encontro com Deus. O primeiro Caminho é o que todo mundo faz. O segundo
Caminho só alguns conseguem acessar, de vez em quando, ao longo da caminhada.
A segunda coisa que Paulo
disse, contando a história de uma peregrina que ele conheceu, é que o Caminho (o
mágico) tem a ver com o fim do EU. E
esse processo passa pela experiência dos albergues, onde não tem a minha cama, o meu quarto, o meu banheiro,
o meu chuveiro, as minhas coisas. É a expressão concreta da experiência
mais sutil da alma, que precisa descobrir que ela é parte do Universo, da
Criação. Lembrei-me de que as filosofias Zen falam muito que a separação, a
ideia de Indivíduo é uma ilusão a ser superada no processo de crescimento
espiritual, pois somos todos a expressão de uma mesma Unidade, que é Deus. O
egoísmo encontrará seu fim quando entendermos que somos todos Um.
Bom, chegamos a
Triacastela de tardinha, bastante cansados. Ficamos no Albergue Xacobeo
(Jacobeo). Um lugar todo novinho, recém reformado pelo jeito, e com uma boa
cozinha. Paulo é o cozinheiro oficial da brasileirada. Perguntamos à hospitalera se podíamos dormir todos em
camas debaixo, e ela, muuuuito gentil, acabou “abrindo” um novo quarto só para
nós. Uma das vantagens de caminhar em outubro é que já não tem tanta gente, os
albergues raramente estão cheios, então, dá para ter esses luxos, e, inclusive,
pegar a manta das outras camas de empréstimo, para dormir mais quentinha, he,
he, he.
Após o banho bem
quentinho (o banheiro era unissex, mas com portas nos chuveiros!), fomos ao
supermercado e compramos uns enlatados. Paulo fez um risoto de frutos do mar,
com esses enlatados, que ficou simplesmente divino. Eu nem gosto de jantar, mas
comi horrores. Também fiz minha saladinha básica de tomates, claro. E tomamos
um bom vinho do Bierzo. Depois de comer tanto, ficamos conversando um bocado,
para fazer a digestão.
Dormi muito bem no
quarto quentinho e com camas confortáveis, sem ronco, só o barulhinho gostoso
da chuva no telhado. E fui dormir com a sensação de que conseguirei chegar a
Santiago! Desde que me apareceu essa tendinite que eu vinha meio receosa de que
isso comprometesse minha chegada. E vinha rezando muito, pedindo a Deus a Graça
de me permitir entrar em Santiago com meus próprios pés. Ontem, não sei porquê,
me veio muito forte a sensação de que vai dar tudo certo. Fui dormir feliz e
agradecida.
Apesar da boa dormida,
acordei cedo e fui para as mesas do refeitório, para escrever um pouco e
colocar meus relatos em dia. Quando todos levantaram, preparamos o café da
manhã, comemos e retomamos a estrada. Meus queridos companheiros tomaram o rumo
de Sarria, e eu tomei o rumo de Samos, porque queria muito conhecer o Mosteiro
(nesse ponto, há duas alternativas para seguir o Caminho). Posso lhe dizer,
Niquinha, que mesmo apreciando demais a companhia dos três, me despedi sem
nenhum peso no coração. Ao contrário, meus sentimentos eram de Alegria e
Gratidão, pelo muito que pude compartilhar com eles. Acho que estou aprendendo,
rs, rs, rs. Trocamos números de zap zap, para ficarmos em contato, claro, mas a
verdade é que eles devem chegar a Santiago uns três dias antes de mim, pois
pretendo fazer etapas mais curtas, de quinze quilômetros, em lugar de vinte,
para não abusar do meu pé.
A caminhada até Samos
foi curta e belíssima. Andei o tempo todo junto ao rio Oribio, de águas céleres
e mais revoltas do que vinha observando nos rios que acompanhei ao longo do
Caminho. Isso significa que o barulho das águas é mais intenso, e a gente sente
uma energia mais forte vindo dele. Fui margeando uma estrada apenas na parte
inicial. Caminhei a maior parte do tempo numa estradinha pelo meio de uma mata
fechada, muito linda. O chão já está todo coberto de folhas. Muitíssimas
castanhas pelo chão. Até colhi algumas, para ver se cozinho em algum albergue e
provo do leite com castanhas de que Jus me falou. Vi pouquíssimos peregrinos
caminhando para Samos. Cruzei alguns arruados, passei por Igrejinhas de pedra
com cemitérios ao lado, e nas curvas finais, já quase chegando ao meu destino,
peguei uma chuvarada forte. Ainda bem que a chuva foi rápida, porque se continuasse
por muito tempo, com aquela intensidade, capaz que eu me molhasse toda, pois
não tinha posto a calça impermeável.
As subidas e descidas
de hoje foram mais suaves, e quando menos esperei, após uma curva da estrada,
cheguei a uma clareira, num alto, e pude ver o imenso Mosteiro de Samos mais
abaixo, no pequeno vale. Uma bela vista. Ainda andei um bocadinho pelas curvas
da estrada de Samos até avistar as primeiras casinhas. Mais à frente, bem
juntinho do rio, está a imponente edificação, construída nos séculos XVI e XVII
(não há mais nada de remanescente do prédio que existiu ali nos séculos
anteriores). O Mosteiro é cercado por um belo jardim e por um pomar. As macieiras
estão carregadas de frutos vermelhos. No rio, patinhos nadavam tranquilamente.
Cruzei a pontezinha sobre o rio e fui procurar o albergue para onde tinha
mandado minha mochila. Descobri que esse albergue fecha às terças. A mochila
estava numa pousada ao lado. Consegui negociar um preço razoável num quarto
individual (sem banheiro) e resolvi ficar por ali mesmo. Estava com medo de o
albergue do Mosteiro ser muito frio. Samos é muito pequenininha. Logo, há
poucas opções de hospedagem.
Deixei minhas coisas
no quarto e fui logo visitar o Mosteiro, com medo que fechasse pra siesta. Acabei
tendo uma visita guiada só pra mim. A moça, Mónica, tinha uma certa formalidade
que se encontra em alguns espanhóis, mas foi muito gentil. O Mosteiro é ocupado
há séculos pelos monges beneditinos. Ele é tão grande assim porque tem dois
enormes claustros contíguos. Um do século XVI e outro do século XVII. No pátio
interno do primeiro, há uma linda fonte de traçado gótico, muito curiosa. A
fonte é bem alta e seu destaque são as compridas Nereidas que sustentam o topo.
Adoro ver essas referências pagãs nos monumentos religiosos. Creio que me dão a
sensação de uma saudável convivência de realidades humanas distintas.
A Igreja do Mosteiro
tem enormes arcos arredondados e uma grande abóbada sobre o cruzeiro central.
Os altares laterais são de um Barroco tardio, mais interessante, e o altar
principal já é o que eles chamam aqui na Espanha, de renascentista (é o pós
Barroco), com linhas mais retas e mais colorido (mármores e pinturas). Esse
estilo renascentista raramente me agrada. A nave da Igreja é muito ampla. Numa
das reformas, eles removeram o coro de madeira, que virou moda aí pelo século
XVII, e que acaba comprometendo a percepção de espaço de quem entra nas grandes
Igrejas góticas ou românicas. O Mosteiro de Samos sofreu um grande incêndio na
década de 1950, e muita coisa teve de ser reconstruída. Ainda assim, a visita é
interessante. Os claustros superiores viraram hospedaria e as paredes estão
cobertas por pinturas contemporâneas, que contam a vida de São Bento. O efeito
é curioso. Apenas uma parte do Mosteiro está reservada aos menos de 10
religiosos que vivem ali nos dias atuais. Ah! Aprendi que teve um Padre Feijó importante na história dos beneditinos. Um filósofo Ilustrado, que conseguiu espanar um pouco da poeira de dogmatismo e conservadorismo que foi se acumulando com o tempo, na Ordem de São Bento.
Após deixar o
convento, fui conhecer a Capela do Cipestre. Uma casinha de pedra, que dizem
ser do século IX. Em todo caso, diz a crença que se o peregrino abraçar o cipestre,
chegará a Santiago sem problemas nos pés. Com chuva e tudo, cuidei logo de dar
meu abraço bem apertado no cipestre solitário, que cresceu bem rente à parede
da capelinha.
Feitas as visitas
obrigatórias, vim pro albergue, tomei meu banho quentinho, massageei meus pés,
fiz um lanche, tirei um cochilo e me pus a escrever. É muito bom poder ter esse
luxo, uma vez que outra, de dormir uma noite sozinha, numa cama de verdade, se
enxugar com toalha de verdade... Mas o que mais me agrada, realmente, é a
possibilidade de estar num ambiente silencioso, onde posso me concentrar,
escrever, meditar, dormir e acordar na hora em que desejo. Na verdade, cada
coisa tem o seu encanto e a sua função. A convivência nos albergues também tem
sido preciosa, em muitos aspectos.
A pousada é exatamente
em frente ao Mosteiro. Daqui fico escutando os sinos tocarem a cada meia hora
pelo menos. O quarto está bem aquecido, e a noite certamente será deliciosa.
Mais oito dias e, se
Deus quiser, chegarei a Santiago!
Beijo grande, Minha
Irmã,
Léia
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