sábado, 31 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 41


29/10/15

Boa Noite, Niquinha!
Escrevo de Portomarín, uma cidadezinha bem simpática, situada no alto de uma colina. Ao pé da colina há um grande rio. Pontes altíssimas ligam Portomarín a uma estrada principal, e ao Caminho de Santiago. Hoje foi meu 40º dia de caminhada! E daqui até Santiago são apenas 93 kms! Nem acredito que me faltam menos de cem para chegar.
Cheguei particularmente cansada a Portomarín. Esperava caminhar 17 kms e acabei tendo de caminhar 22 kms, porque um albergue onde eu havia pensado em parar, no meio do caminho, era muito ruim, e ou outro estava fechado. Não tive escolha a não ser continuar caminhando até Portomarín. Foi a primeira vez que cheguei ao meu destino à noite, já sem nenhuma luz natural. Ainda por cima, a chuva resolveu engrossar justo quando eu estava na entrada da cidade. Cruzei essa ponte bem alta com muita chuva e um vento forte e frio.
Mas deixa eu voltar para o dia de ontem. Eu tinha dormido em Samos, né. Dormi super bem, na exclusividade do meu quarto. E acaba que saí de Samos muito tarde, praticamente meio-dia. É que eu fiz um acordo com Papai do Céu, quando estava abraçando o cipestre. Ele vai cuidar do meu pé, e eu vou voltar a carregar minha mochila. Então, passei a manhã separando as coisas que eu podia despachar pra Santiago. Fui até o posto dos Correios, preparei uma caixa com 5 kgs de coisas que não me são essenciais nessa reta final e despachei pro Correio de Santiago. Achei o preço bem razoável. Paguei 13 euros e eles ficam com a caixa por até quinze dias. Depois de despachar minhas coisas, voltei pra pousada Victoria para pegar minha mochila. Tomei café no bar da pousada, enquanto conversava com José, o atendente, uma figura!
Choveu o dia todo, uma chuva fina e constante. A caminhada a partir de Samos é um pouco dura porque tem um longo trecho, de mais de 10 quilômetros, sem nem uma paradinha, nem um café, nada além de muro pra pessoa se encostar. Além disso, o caminho é cheio de altos e baixos. Claro que senti muito o peso da mochila. A musculatura das costas reclamou bastante. Fui andando devagar, parando de vez em quando pra me encostar numa muretinha e descansar. Cruzei uns cinco lugarejos, com pouco mais que uma Igrejinha e cinco casas. Interessante que desde que entrei na Galícia, que essas pequenas Igrejinhas têm quase sempre um cemitério em volta. Os túmulos não ficam apenas por detrás, mas em volta das Igrejas (todas de pedra). Passei também por dentro de belíssimas matas, com suas altas árvores, cobertas de musgo e trepadeiras.
Finalmente, cheguei a uma Taberna, já de volta ao Caminho (lembra que eu peguei um caminho alternativo, para conhecer Samos?!). Fiquei tão feliz de poder sentar e descansar no quentinho! Aproveitei e tomei um caldo gallego. Nessa taberna, conheci um canadense, Paul, e uma australiana (não gravei o nome dela).  Eles me convidaram para sentar com eles e ficamos conversando. Eram muito simpáticos, mas meio esquisitos. Não sei bem o quê, mas havia algo de fora do lugar com eles. Não eram um casal, estavam apenas caminhando juntos. Os dois devem ter aí pelos 45, 50 anos. A australiana foi tirar uma foto de um rapaz que estava sentado ao balcão. Depois, puxou papo com ele. Quando ela voltou à mesa, me explicou que gosta de tirar fotos das pessoas sem que elas percebam. Alguns minutos depois, olha só que maluquice, ela se aborreceu porque achou que o rapaz estava tirando fotos dela, com o celular, sem pedir permissão! É cada uma. O rapaz é paquistanês, e está tentando a vida na Espanha. Ele ficou mostrando o celular e dizendo que ela podia verificar, que ele não tinha tirado foto nenhuma. E eu no meio dessa confusão, de tradutora, porque ele não falava inglês direito, nem ela, espanhol. Sei não. Achei que foi maluquice dela.
Paul, o canadense, pareceu-me um pouco mais normal. Ele estava me falando de como está cansado de conhecer pessoas no Caminho, se apegar a elas, e vê-las partir. Me disse que tem muita dificuldade de lidar com a perda das pessoas a quem quer bem. Eu ainda tentei dizer que o bonito do Caminho é que tem sempre mais pessoas chegando, pra enriquecer a sua vida, mas nem insisti muito na ideia, pois, como te disse, não me senti à vontade com essa dupla. Tanto que terminado meu caldo, tomei logo meu rumo.
Caminhando devagar, cheguei a Sarria já de tardinha. Sarria é uma cidade de porte médio, com uma periferia mais moderna, e um bonito passeio ao longo do rio (malecón). O acesso ao centro histórico se dá por meio de uma escadaria. Há muitos albergues na rua principal. Escolhi um que tem várias obras de arte sacra no hall de entrada. Deixei minhas coisas e fui dar uma volta rápida na cidade (o centro histórico é mínimo), aproveitando o restinho de luz, e o fato de que a chuva tinha dado uma trégua. Em Sarria há as ruínas da torre de um antigo castelo (sec. XIII), porém, a gente só vê de longe, porque fica numa propriedade privada. E vi, por fora, a Igreja do Salvador, uma gracinha de prédio, do sec. XIII, em pedra branca, de cantaria, arco ogival e capitéis com figuras míticas. Já te disse mil vezes que adoro a simplicidade dessas construções românicas.  
No albergue O Obradoiro, encontrei uma senhorinha mineira, Lêda. Ficamos conversando enquanto ela preparava seu jantar. Ela até me convidou para comer com ela, mas eu tinha tomado o meu caldo gallego já tarde e estava sem fome. Só tomei um chá e comi um pedaço da Torta de Santiago, uma torta típica, de amêndoas, que eu tinha comprado na taberna do caldo. Ah! Sabe que em Samos eu comprei umas paçoquinhas de amêndoa, chamadas polvorón, que mamãe e Quel iriam adorar! São muito gostosas.
Lêda me contou que estava caminhando com um brasileiro que teve problemas sérios com picadas desses insetos de camas. E no nosso albergue tinha um francês com uma ferida grande, infeccionada, também por causa desses bichinhos. Até então eu tinha tido a sorte de escapar deles. Pois qual não foi minha surpresa agora de noite quando cheguei em Portomarín e vi algumas picadas no meu braço e nas minhas costas. Tem bem direitinho o “caminho” que é típico desses bedbugs. Eu não sei se é pulga ou percevejo, o fato é que pus pomada de cortisona e comecei a tomar anti-inflamatório, porque coincidência ou não, tive algum tipo de reação alérgica (de pele). Apareceram umas placas vermelhas nos meus braços, na minha cintura e no meu tornozelo. Também estou sentindo alguma coceira nas picadas, mas com a pomada de cortisona deu uma aliviada. É torcer pra essas picadas não evoluírem como as que eu tenho visto em outros peregrinos. Tudo indica que foi no Obradoiro que esses insetos me picaram.
A verdade é que dormi direitinho no Obradoiro (só vim descobrir essas picadas agora de noite). E isso apesar dos gritos de um coreano, que deve ter tido algum pesadelo durante a noite. Tomei café com Lêda, que tinha comprado ovos e leite. Eu cozinhei umas maçãzinhas verdes que tinha apanhado pela estrada (com leite e mel), misturei com nozes, e nós também fervemos o leite com umas castanhas que Lêda tinha apanhado pelo chão. Tomamos um lauto café da manhã e iniciamos a caminhada juntas.
Na saída de Sarria, demos uma espiada no Mosteiro de Santa Maria Madaglena (que do século XIII parece conservar apenas o portal da fachada exterior), cruzamos uma bonita ponte de arcos de pedra, e seguimos andando pelo meio de uma mata. Lêda é dessas senhorinhas super ágeis (ela deve ter uns setenta e poucos anos) e falantes. O tempo que caminhamos juntas ela falou sem parar. Eu só fazia concordar. Sempre tenho a sensação de que os mineiros conversam como se estivessem contando histórias. E adoro esse jeitinho deles prosearem. Como Lêda estava andando bem mais rápido que eu, em dado momento, ela disparou na frente, e eu continuei no meu passo de formiguinha.
Logo após Sarria, tem um povoado chamado Barbadelo, onde há uma Igreja do século XII, a Igreja de Santiago. Esta estava aberta e tinha o carimbo pra credencial. Além do belo portal românico, gostei muito do retábulo principal, em madeira pintada, num tipo de representação quase naïf. Além disso, no nicho central tem uma graciosa imagem de Cristo Rei, e eu adoro ver altares com essa representação. Acho que o Cristo Ressuscitado é muito mais inspirador do que Ele na Cruz.
Entre Barbadelo e Portomarín, passei, novamente, por vários lugarejos de três ou quatro casas (não sei como é isso, não...), e, às vezes, uma Igrejinha de pedra, com ares românicos. De resto, foram matas, intercaladas por campos de pastagem, e uma ou outra plantação. No meio de uma das matas, tinha um trio pedindo doação para uma peregrinação a Roma. Puseram uma mesinha com umas bananas, e tinham até carimbo (sello) para a credencial. Adoro andar por essas matas, porque elas sempre me dão uma sensação de paz e de conexão com a natureza. Os campos de pastagem também são bonitos, estão bem verdinhos e, nos trechos que atravessei hoje, são separados uns dos outros por muros de pedra baixinhos. Tão lindos! Parecem bem antigos e estão cobertos de musgo. Ao pé deles, muitíssimas macieiras, algumas dão maças pequeninas e verdes, outras estão carregadas de maças tão vermelhas que beiram a cor de vinho. Encontrei vacas andando pelas ruas de algum lugarejo, ovelhas pastando, pastoreadas por seus cães. Aliás, aqui na Galícia tenho visto muito pastor alemão. Alguns, inclusive, andando solitários pelas estradas. Todos parecem muito dóceis.
Mesmo com esses pequenos lugarejos, o trajeto de hoje tinha alguns cafés pelo meio, e sempre que encontrava um, parava para descansar um pouco as costas. Obviamente, minha musculatura ainda está se acostumando ao peso da mochila. A notícia boa é que nesses dois dias, só senti dor muscular. Nada de inflamação, como eu tive lá atrás, no início do Caminho. No pequeno povoado de Persucallo, encontrei um senhorzinho, careca, gordinho e com apenas uns dois dentes na boca, que me deu umas nozes e me pediu para rezar por ele quando chegasse a Santiago. Já perto de Portomarín, num café-loja de um ex-hippie, parei para comer um sanduíche de chouriço e reencontrei a dupla esquisita (o canadense e a australiana). Conversamos rapidinho e retomei a estrada, pois estava ficando tarde.
Você já sabe como se deu minha chegada a Portomarín. Vim para um albergue bem bonzinho, chamado O Mirador. Fica abaixo de um bar-restaurante que parece ser bem frequentado pelos locais. É tudo novinho, o que, para mim, já é grande vantagem. Estou no quarto com uma mexicana, Érica, e um português, Luís, que é um amor! Luís já fez o Caminho trocentas vezes, e faz parte da Associação do Caminho de Santiago. Me deu algumas dicas, me sugeriu um albergue em Santiago, me ofereceu remédios. Um gracinha! Érica também foi um amor. Eles subiram para jantar, porém eu fiquei no quarto, pois ainda estou cheia com o sanduíche, que era enorme. Tô pondo gelo no pé. Até aqui o pé tá respondendo direitinho ao peso da mochila. Minha bursite no quadril (você sabe que é meio crônica) é que está reclamando um pouco. Nada demais, porém. Sabe que eu às vezes fico meio abusada comigo mesmo por ficar lhe relatando tantas queixas. Já pensei até em nem falar mais nada das minhas dores. Só que achei que você podia acabar ficando mais preocupada. Enfim, não quero parecer uma velha queixosa e enganjenta. No geral, estou muito bem. Estou, sobretudo, muito feliz e agradecida por essa jornada! Em bem pertinho de chegar!
Beijos mil, Minha Irmã!

Léia

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