Os textos desta série foram tirados da “Introdução”
de Catimbó,
Cana Caiana e Xenhenhém, edição da
Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.
A filosofia do Sertão
Um segundo núcleo temático
característico da poesia de Ascenso reúne poemas cujo mote são cenas e eventos
da vida cotidiana nordestina, a exemplo de “A Cavalhada” e “A pega do boi”. Uma
outra série de poemas de Ascenso tem por temática central algum tipo de crítica
ou denúncia. Alguns são casos evidentes de como a superfície do regional e do
folclórico pode enganar o leitor desavisado. “Sertão” é uma espécie de anúncio
da seca próxima, da morte, prelúdio de uma desgraça. O poema começa enunciando
nomes de lugares, que dão à primeira estrofe uma sonoridade toda especial.
Quando o próprio Ascendo recita o poema[1],
os primeiros versos são divididos em duas partes contrastantes, a primeira em
tom ascendente (“Sertão!”) e a segunda em tom descendente, grave (“— Jatobá!”).
Depois, uma seqüência de estrofes curtas, de dois versos, traça um quadro bastante
poético, com reses, bodes e “ovelhinas ternas”. O poema todo é muito lento,
como um aboio. E marca uma temporalidade igualmente lenta, com uma musicalidade
grave. Diferentes onomatopéias enriquecem o poema do ponto de vista sonoro,
dominando três estrofes.
Nesse
cenário pastoril, são sutilmente colocados os elementos que prenunciam a ruína:
os “tristes bodes patriarcais” e “o sino da igreja velha”. Eles introduzem o
verso agourento: “O sol é vermelho como um tição!”. Um comboio move-se
lentamente, e os tangerinos cantam uma ladainha para Lampião, criando uma ponte
mais direta para o desfecho do poema, com “o urro do boi no alto da serra”,
diante dos “horizontes cada vez mais limpos”. O urro do animal corresponde à
voz dos profetas “anunciadores de desgraças...”. A seca, que traz a morte, é
metáfora de um outro fenômeno devastador, o avanço da civilização do automóvel (Ford) e da
luz elétrica, que por onde passa vai matando a poesia. Nesse sentido, o aboio
do poema é também o lamento de sua própria desaparição. Paradoxalmente, o tempo
e o espaço do poema permitem que o aboio, ameaçado pela civilização, subsista.
Motes e formas da cultura popular
também figuram na poética de Ascenso como meios de expressão de questões
filosóficas, além da crítica social. Temas como a condição humana e os
contrastes entre os dramas individuais e os coletivos são versados em poemas de
títulos folclóricos ou prosaicos: “Maracatu”, “Arco-Íris”, “O ‘Verde’”,
“Ano-bom”, “Boletim nº 0” e “A copa do mundo”. Tema e linguagem popular compõem
o ambiente do poema “Arco-Íris”. Na verdade, semanticamente todo o poema remete
ao universo de brincadeiras infantis. Aspecto interessante é que esse poema
começa pelo título, pois a primeira estrofe já é uma espécie de comentário ou
resposta ao título. As duas primeiras estrofes são compostas de estribilhos que
pertencem ao domínio popular, e organizam-se numa dinâmica de perguntas e
respostas (“— Vamos passar nele por baixo!/— Vamos passá-lo... vamos
passá-lo...”). Mas, a partir da terceira estrofe, começa a revelar-se uma outra
dimensão do poema, e o leitor vai descobrindo que as brincadeiras de criança
servem de mote a uma reflexão sobre a fugacidade da vida. A terceira estrofe, subitamente
revela que “A chuva fina tem carícias de morte...” e relata o desaparecimento
do Arco-Íris. A conclusão do poema, que condensa toda a sua problemática no
último verso, é que a vida é fugaz como o Arco-Íris (“VIDA – Arco-Íris
também...”).
Uma
dezena de poemas de Ascenso, geralmente mais curtos, contam pequenas histórias,
funcionando como poemas satíricos, poemas-piada ou simplesmente de registro de
costumes. Bom exemplo é “Sucessão de São Pedro”, publicado pela primeira vez na
Revista de Antropofagia, primeira
dentição, nº 4, e que mistura riso e crítica. O poemeto de apenas cinco versos
mostra a forma oportunista com que se comportam os sucessores de São Pedro, já
que o vigário fica com a “galinha gorda”, trazida por um fiel para o “mártir
São Sebastião” (“— Seu vigário!/está aqui esta galinha gorda/que eu trouxe pro
mártir São Sebastião!/ — Está falando com ele!/— Está falando com ele!”).
[1] A Fundação Joaquim Nabuco tem em seu
acervo a gravação dos poemas de Ascenso Ferreira, na voz do autor, que
acompanhou a edição de 1951.
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