quinta-feira, 28 de junho de 2012

Ascenso Ferreira em quatro tempos (Terceiro)


Os textos desta série foram tirados da “Introdução” de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, edição da Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.
A filosofia do Sertão
            Um segundo núcleo temático característico da poesia de Ascenso reúne poemas cujo mote são cenas e eventos da vida cotidiana nordestina, a exemplo de “A Cavalhada” e “A pega do boi”. Uma outra série de poemas de Ascenso tem por temática central algum tipo de crítica ou denúncia. Alguns são casos evidentes de como a superfície do regional e do folclórico pode enganar o leitor desavisado. “Sertão” é uma espécie de anúncio da seca próxima, da morte, prelúdio de uma desgraça. O poema começa enunciando nomes de lugares, que dão à primeira estrofe uma sonoridade toda especial. Quando o próprio Ascendo recita o poema[1], os primeiros versos são divididos em duas partes contrastantes, a primeira em tom ascendente (“Sertão!”) e a segunda em tom descendente, grave (“— Jatobá!”). Depois, uma seqüência de estrofes curtas, de dois versos, traça um quadro bastante poético, com reses, bodes e “ovelhinas ternas”. O poema todo é muito lento, como um aboio. E marca uma temporalidade igualmente lenta, com uma musicalidade grave. Diferentes onomatopéias enriquecem o poema do ponto de vista sonoro, dominando três estrofes.
Nesse cenário pastoril, são sutilmente colocados os elementos que prenunciam a ruína: os “tristes bodes patriarcais” e “o sino da igreja velha”. Eles introduzem o verso agourento: “O sol é vermelho como um tição!”. Um comboio move-se lentamente, e os tangerinos cantam uma ladainha para Lampião, criando uma ponte mais direta para o desfecho do poema, com “o urro do boi no alto da serra”, diante dos “horizontes cada vez mais limpos”. O urro do animal corresponde à voz dos profetas “anunciadores de desgraças...”. A seca, que traz a morte, é metáfora de um outro fenômeno devastador, o avanço da civilização do automóvel (Ford) e da luz elétrica, que por onde passa vai matando a poesia. Nesse sentido, o aboio do poema é também o lamento de sua própria desaparição. Paradoxalmente, o tempo e o espaço do poema permitem que o aboio, ameaçado pela civilização, subsista.
            Motes e formas da cultura popular também figuram na poética de Ascenso como meios de expressão de questões filosóficas, além da crítica social. Temas como a condição humana e os contrastes entre os dramas individuais e os coletivos são versados em poemas de títulos folclóricos ou prosaicos: “Maracatu”, “Arco-Íris”, “O ‘Verde’”, “Ano-bom”, “Boletim nº 0” e “A copa do mundo”. Tema e linguagem popular compõem o ambiente do poema “Arco-Íris”. Na verdade, semanticamente todo o poema remete ao universo de brincadeiras infantis. Aspecto interessante é que esse poema começa pelo título, pois a primeira estrofe já é uma espécie de comentário ou resposta ao título. As duas primeiras estrofes são compostas de estribilhos que pertencem ao domínio popular, e organizam-se numa dinâmica de perguntas e respostas (“— Vamos passar nele por baixo!/— Vamos passá-lo... vamos passá-lo...”). Mas, a partir da terceira estrofe, começa a revelar-se uma outra dimensão do poema, e o leitor vai descobrindo que as brincadeiras de criança servem de mote a uma reflexão sobre a fugacidade da vida. A terceira estrofe, subitamente revela que “A chuva fina tem carícias de morte...” e relata o desaparecimento do Arco-Íris. A conclusão do poema, que condensa toda a sua problemática no último verso, é que a vida é fugaz como o Arco-Íris (“VIDA – Arco-Íris também...”).
Uma dezena de poemas de Ascenso, geralmente mais curtos, contam pequenas histórias, funcionando como poemas satíricos, poemas-piada ou simplesmente de registro de costumes. Bom exemplo é “Sucessão de São Pedro”, publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia, primeira dentição, nº 4, e que mistura riso e crítica. O poemeto de apenas cinco versos mostra a forma oportunista com que se comportam os sucessores de São Pedro, já que o vigário fica com a “galinha gorda”, trazida por um fiel para o “mártir São Sebastião” (“— Seu vigário!/está aqui esta galinha gorda/que eu trouxe pro mártir São Sebastião!/ — Está falando com ele!/— Está falando com ele!”).


[1] A Fundação Joaquim Nabuco tem em seu acervo a gravação dos poemas de Ascenso Ferreira, na voz do autor, que acompanhou a edição de 1951.

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