Os textos desta série foram publicados na “Introdução”
de Catimbó,
Cana Caiana e Xenhenhém, edição da
Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.
Ascensão: um poeta em aumentativo
Uma
das primeiras coisas que chamam a atenção de quem se propõe a estudar a poesia
de Ascenso Ferreira (1895—1995) é o contraste entre a escassez de textos
críticos e a abundância do anedotário a seu respeito. Nas escassas publicações
sobre Ascenso Ferreira, os comentadores centram-se sobretudo na sua figura
“descomunal”, na espirituosidade, nas atitudes pouco convencionais, no vozeirão
e no modo único de recitar suas próprias poesias. Em geral, nos textos escritos
sobre Ascenso repetem-se dois argumentos complementares. De um lado, acentua-se esse lado pitoresco da figura humana, o Ascensão “amante da glutonaria”, dos jogos de azar, o “gigante” com
alma de criança. E de outro lado, mas de certo modo como derivação do primeiro
aspecto, cristaliza-se toda uma argumentação acerca da correspondência direta,
melhor seria dizer, equivalência entre o poeta e sua terra, incluindo-se aí a sua
gente.
A
idéia de personagem folclórico e emblemático, evocada à exaustão pelos
contemporâneos, e de certo modo alimentada pelo próprio Ascenso, acabou enviesando
e restringindo a recepção de sua poesia. Poeta e poesia tornaram-se presas da
armadilha do pitoresco e do ismo regional. Claro que essa tendência a ver a poesia de Ascenso como
condensação da terra e da gente nordestinas deve-se, em parte, ao incontestável
fato de a temática popular nordestina ser recorrente na sua poética. Tangerinos,
boiadeiros, bêbados-de-fim-de-feira, coronéis, sem falar de assombrações e
cenas de várias brincadeiras populares no Nordeste efetivamente freqüentam e
muitas vezes definem o universo poético do poeta de Palmares.
Além
disso, a poética de Ascenso é profundamente marcada pela oralidade, o que reitera
as impressões de naturalidade e
identidade com o universo popular de sua terra. Em seus poemas, há abundante utilização
do discurso direto, visível no uso exacerbado dos travessões. Freqüentemente,
inclusive, seus poemas têm várias vozes. E não raro essas vozes correspondem à
voz anônima da coletividade, do povo,
representado em seu linguajar cotidiano, sem marcações especiais, como aspas ou
itálicos, de modo que têm nos poemas a mesma legitimidade da voz que narra ou
revela os estados de alma do eu-lírico. Assim, expressões tiradas diretamente
do falar do nordestino pontuam a poesia de Ascenso – que, todavia, também se
utiliza de arcaísmos como “esquipar”, “trescalar” e “alcanfor”. As aspas, em
geral, são usadas para destacar a reprodução, no poema, de canções,
estribilhos, versos e refrões de brincadeiras consagrados pelo uso popular.
Note-se, ainda, que a oralidade e o recurso aos estribilhos associam-se a uma
poética muito marcada pela narratividade, já que muitos dos poemas de Ascenso
contam pequenas histórias.
Isto
posto, gostaria de salientar que, se Ascenso encontra no chão nordestino sua
ambiência, e se retira o tom de sua dicção poética dos falares e cantares da
gente simples, nada existe de natural
na sua poesia. Muito pelo contrário, nosso poeta é um dedicado e atento trabalhador do verso.
Raros críticos procuraram estudar o uso que o poeta fazia da métrica e da rima. Talvez enfeitiçados pelo poder encantatório dos poemas, poucos buscaram analisar
o trabalho vigoroso do poeta sobre o ritmo, seu jogo poético em cima de formas
musicais tradicionais, como cocos, maracatus e sambas de roda. O poeta partia das formas populares, mas
apenas para brincar livremente com elas, escolhendo cuidadosamente palavras e
formulações frasais que pudessem tornar seus poemas mais expressivos. Manoel
Bandeira e Mário de Andrade estão dentre os raros leitores de Ascenso que enfatizaram
o trabalho do versejador, e seus resultados. Ambos destacam a convivência
harmônica entre o verso livre e o verso bem ritmado, cadenciado, medido, como
uma das grandes contribuições de Ascenso à moderna poesia brasileira. As
palavras de Bandeira são esclarecedoras: “Verso metrificado, verso livre, rima,
toada musical, frases soltas – todos esses elementos do discurso poético se
fundem pela mão de Ascenso numa coisa só, peça inteiriça, onde não se nota a
menor emenda, a menor fenda”
Também
é preciso dizer que se há toda uma dimensão nitidamente nordestina na semântica
de Ascenso, esta não compromete sua universalidade, e bem pode ser decodificada
por brasileiros de distintas regiões. Em poemas como “Xangô”, por exemplo,
Ascenso aborda uma temática que remete ao universo afro-brasileiro,
trabalhando, portanto, com um legado que pertence a boa parte do país. Agora,
de fato, o poema utiliza uma semântica característica — “ingonos”, “Odé”,
“Bomiê”, “Parafuá”, “liamba” —, que serve para reforçar a coerência interna do
poema e, no entanto, não impede aos que não têm familiaridade com esse
vocabulário de apreender o grito de dor e pesar que nele se desenha. O canto
dilacerado de quem foi arrancado à sua terra para adubar com suor e sangue
paragens alheias dá corpo e transforma em imagem um drama universal.
Assim
sendo, se por um lado a poesia de Ascenso está profundamente enraizada no
Nordeste, daí extraindo seu substrato, presente nas imagens, cenas, expressões,
estribilhos, crendices, linguajar e na semântica sobre a qual assentam vários
de seus poemas (como “quixaba”, “ingá”, “mondé”, “caracará”, “catolé”,
“ingono”, “queixar”, “bulir”, “quicé”, “mangangá”, “catimbó” e “xenhenhém”), de
outro lado, os temas privilegiados pelo poeta são de amplo alcance. Traduzem
preocupações do seu tempo, na medida em que respondem a inquietações, dilemas e
expectativas produzidos pelos processos de modernização, que figuram tanto nos
romances de Marcel Proust como na poesia de Robert Frost, nas telas de Cícero
Dias ou na rapsódia de Mário de Andrade. Também remetem ao cotidiano em que se
desenrolam os dramas humanos, particulares e coletivos, e às alegrias e dores
de amor, cegas a distinções de classe, sexo, raça ou lugar.
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