terça-feira, 26 de junho de 2012

Ascenso Ferreira em quatro tempos (Segundo)


Os textos desta série foram tirados da “Introdução” de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, edição da Martins Fontes, de 2008 (xiii–xxxvi). Direitos reservados.

Uma poética do encantamento

Neste segundo tempo, passo a tratar da poética de Ascenso do ponto de vista do conteúdo. São três os grandes temas abordados em sua poesia: 1) a cultura brasileira ou regional, embutindo, na maior parte dos casos, uma crítica à modernidade, sendo alguns poemas nostálgicos e outros, não; 2) o olhar sobre o cotidiano, que tanto se associa a reflexões filosóficas como à crítica social, ou ocorre simplesmente como registro satírico de costumes; e 3) o amor, algumas vezes associado a uma semântica do sagrado, com alguns poemas desenvolvendo uma relação estreita entre o erótico e o sagrado. Essas três linhas temáticas estão presentes nos livros de Ascenso (Cana Caiana, Catimbó e Xenhenhém), com pequenas variações conforme o peso que cada tema adquire no conjunto de um livro. Dessa forma, pode-se dizer que em Catimbó (1927) predomina a temática da cultura popular; em Caca caiana (1939) o tom nostálgico e a crítica à modernidade figuram de modo mais contundente; e em Xenhenhém (1951) o tema de maior destaque é o amoroso.
Dentro da primeira e ampla temática da cultura regional e brasileira, há poemas puramente nostálgicos, em que a evocação de festividades como o Natal, ou de assombrações como a Cabra-Cabriola, servem à exaltação dos valores tradicionais, que por sua vez remetem a um passado que se vai diluindo, atropelado pela modernização. Vários dos poemas de Ascenso soam como lamentos, e são elegias a mundos cheios de poesia, mas que ou estão em vias de desaparecer, ou já não existem mais, a não ser por obra da memória, da rememoração, da evocação, recursos que, aplicados à poesia, transformam o espaço do poema num mágico momento de resgate do passado.
O poema “Folha verde”, de Catimbó, é emblemático do sentimento nostálgico que marca a poética de Ascenso. A folha verde é a metáfora da “deliciosa meninice das gentes de minha terra”, evocada logo na primeira estrofe, através do lamento “que eu tanto amei e senti...”. Na seqüência, o poema traz um acúmulo de imagens da vida descontraída de uma meninice no campo, com versos escritos em gerúndio, de modo a marcar uma temporalidade em curso, que presentifica o passado (“Cavalos correndo,/Engenhos moendo,”). A maior parte dos versos traz a evocação de atividades, lugares, personagens típicos (“Babá-do-Arroz-Doce, Sá-Biu-dos-Cuscuz”) e de brincadeiras da infância, apresentadas em discurso direto (“— Boca de forno!/— Forno!”). Mas essas cenas lembradas, marcadas por um lirismo ingênuo e alegre, são pontuadas pela voz que repete o lamento de dor, de saudade e de luto por um mundo que feneceu, tal qual acontecerá com a folha verde: “Folha verde! — deliciosa meninice das gentes de minha terra,/que eu tanto amei e senti...”.
São vários os poemas em que Ascenso Ferreira associa o sentimento nostálgico a uma crítica explícita à modernidade, seja ela mais ou menos contundente. “A Cabra-Cabriola” é poema muito interessante em que a assombração que figura no título é a metonímia de um mundo marcado pela fantasia, pela inocência infantil, pelo encantamento, mundo onde se ouvem o vento, os rumores do rio e da mata, e onde o bacurau canta para o luar. As cinco primeiras estrofes recompõem precisamente esse passado idílico. Mas a passagem do tempo no poema (“30 anos se passaram”) traz a morte e o desaparecimento daquele mundo. Os rumores  da mata, onde vivia a Cabra-Cabriola, foram substituídos pelo “grito” do monstro-rádio, que fala inglês (“Embala-me o sono/um monstro a gritar:/‘— SPEAK DABLIÚ GI UAI’”). Nesse contexto, o último verso do poema é um apelo para que o mundo volte a ser o que era: “— Cabra-Cabriola, chega me pegar. . .”
Talvez seja “Noturno” o poema mais emblemático da nostalgia de um mundo enterrado pela modernização, de resto, típico do espírito que marcou a década de 20 em Pernambuco: “Sozinho, de noite,/nas ruas desertas/do velho Recife/que atrás do arruado/moderno ficou.../criança de novo/eu sinto que sou:”. O sujeito do poema, declaradamente Ascenso (“Que diabo tu vieste fazer aqui, Ascenso?”), vaga pela cidade à noite. De modo muito similar à poesia de Joaquim Cardozo, a noite permite a transfiguração, o retorno no tempo. De noite, o Recife volta a ser povoado por criaturas encantadas, como o Pai-do-Poço e o Papa-Figo. Mas os verdadeiros monstros não são os seres encantados, são antes as sombras dos guindastes, os símbolos da modernidade (“Dos brutos guindastes/de vultos enormes”). O poema termina com a interrupção do sonho e da magia por uma voz que parece ser a voz da modernidade, aquela que não admite os vagares do poeta, o ócio, o descompromisso, e a temporalidade da reminiscência: “— Larga de ser vagabundo, Ascenso!”
            Em outros poemas de Ascenso o objetivo parece ser a crítica à modernização ou à adoção irrefletida de valores estrangeiros, mas sem o tom nostálgico que marca os poemas analisados anteriormente. “Carnaval do Recife”, por exemplo, é poema em que se celebra a vitalidade da cultura popular. No espaço do poema, o carnaval mestiço ou mulato do Recife, com seus Mateus, Papangus e Burras-Calus e Nações de Maracatu, triunfa sobre o carnaval “copiado”, “estrangeirado”, portanto, inautêntico, de Colombinas (morre de peixeirada), Arlequins (leva um “rabo-de-arraia”) e Pierrots (toma um “clister-de-sebo-quente”). O poema termina com uma provocação “— Pega o pirão, esmorecido!”; expressão que pertence à cultura do Pastoril, e que no poema quer dizer: vê se agüenta a onda do carnaval do Recife, “o carnaval melhor do mundo”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário