segunda-feira, 11 de junho de 2012

Por todas as minhas sete vidas: a incrível história de Maria de Lourdes Medeiros, a eterna companheira de Ascenso Ferreira


Este texto foi originalmente publicado em Pernambuco: suplemento cultural do Diário Oficial do Estado. Edição de julho de 2008 (p. 7).

Lá pelos princípios do século vigésimo, nas brenhas pernambucanas, nascia uma menininha guenza. Maria de Lourdes Medeiros, tal qual o poeta mineiro, veio destinada a ser gauche na vida. Seus apuros começaram já no nascimento, pois que a mãe, vitimada por depressão pós-parto, deu a filha a um sujeito que bateu em sua porta. Sorte foi que o avô, Vespesiano, tomou logo conhecimento do fato e tratou de recuperar a neta, que resolveu criar junto a si. Lourdes conta orgulhosa que o Capitão Vespesiano Vieira de Mello fôra jovem e analfabeto para o Recife, trabalhara de cavalariço na Great Western e voltara para Canhotinho letrado e empreiteiro da companhia de trem. Fizera-se, então, senhor de engenho e delegado da região. Das três irmãs da família Oliveira, que lhe ofereceram em casamento, escolheu Amélia, moça pequenina e sábia.
Lourdes foi criada no engenho do avô, chamado carinhosamente por ela de Papai. O pai natural morreu cedo, de morte matada, e a mãe, Beatriz, mulher bonita e coquete, depois de viúva apaixonou-se por homem separado, de família tradicional e abastada. Os dois fugiram quando Lourdes tinha apenas dois anos. Quinze mais se passariam antes que a menina, já moça, reencontrasse a mãe. A fuga de Beatriz marcou a alma de Lourdes de modo indelével, obrigando-a ao amadurecimento precoce da vontade e do caráter. De primeiro, vítima do preconceito, da visão tacanha daquela sociedade tradicional e interiorana, Lourdes recusava-se a ir à escola. Tampouco queria aprender a ler. Preferia viver livre e solta nas terras do engenho, desfrutando da companhia inofensiva das vacas, cavalos, cabras, ovelhas e galinhas. Só concordou em estudar a cartilha do ABC por artes de Tia Amância, que a convenceu de que se aprendesse a ler, conseguiria decifrar o enigma que o capinzal soprava no vento.
Feita moça, quiseram arranjar-lhe casamento. Recusou-se, alegando que nela não se botava arreio. Foi para o Recife estudar. Lá, na altura de concluir os estudos, ia um dia a atravessar uma rua, nas redondezas do Forte das Cinco Pontas, quando viu à sua frente um homem enorme, de chapéu. Era a hora do crepúsculo e o vulto, vislumbrado à contra-luz, pareceu-lhe o fantasma de Caetano Vidal, amigo da família recém-falecido. O susto foi tão grande que não viu o bonde se aproximando. Foi jogada ao chão. O vulto enorme correu em sua direção, desejoso de ajudá-la a levantar-se. – Quem é o senhor? É o espírito de Caetano Vidal?Não, eu sou Ascenso Ferreira. Pronto. Danou-se. Destinos cruzados, destinos selados.
Formada e trabalhando em loja de jóias antigas na rua do Imperador, Lourdes passava diariamente em frente ao Café Continental, cruzando sempre com o poeta, que a convidava para um suco. A paixão cresceu e tornou-se indomável. Certa feita, a moça de decisões firmes foi bater à casa do poeta e anunciou que viera para ficar. Foi um Deus nos acuda na família de Lourdes, pois que o poeta era oficialmente casado, além de homem já maduro. Foi a intervenção de Mãe Amélia que acalmou os ânimos do avô e dos irmãos: -- Ninguém bole com Lourdes, se não vai se haver é comigo! Deixem a menina viver a vida dela.
A partir daí, Lourdes passou a dedicar-se integralmente a Ascenso. Embarcava nas loucuras do poeta e compartilhava com ele a opção por uma vida plenamente vivida. Dez horas da noite pegavam o bonde, desciam no Recife antigo, iam para o Grande Hotel, jantavam, jogavam e depois saíam andando pelas pontes e ruas do Recife, encontrando os grupos de amigos pelos bares. Vez por outra a turma decidia ir apanhar o sol com a mão, na praia de Boa Viagem. Dali, antes de ir para casa, passavam pelo Mercado de São José, para tomar um café da manhã sustento, com macaxeira, inhame, carne de charque, carne de sol, queijo manteiga.
Certa feita, Ascenso e Lourdes haviam saído do Grande Hotel já a altas horas da madrugada, e caminhavam pela rua sozinhos em busca de um carro, quando foram abordados pela viúva, que queria prendê-los por vagabundagem. Lourdes correu, subiu no parapeito da ponte e ameaçou: -- Se me prenderem, eu me jogo da ponte. E Ascenso, por sua vez, alegre e serelepe, já meio enfiado na viatura, exclamou: -- Deixa de besteira, Lourdes, vamos dar uma volta na viúva! A sorte é que o delegado Apulcro Assunção, amigo do casal, viu o furdunço da janela do hotel, desceu e resolveu a situação, mandando soltar o Diretor do Tesouro do Estado – Rapaz, solte logo esse homem, que senão, amanhã ninguém no Estado recebe.
Em 1948 nascia Maria Luíza, única filha natural de Lourdes e Ascenso. O casal teve também um filho adotivo, Jonas. Ascenso passou a viver para a filha, fazendo-lhe todas as vontades. Lourdes ficava de longe, atocalhando as sandices de pai e filha, que de certa feita quase botaram fogo no cinema Moderno. Por essa altura, Lourdes já tinha suas terrinhas em Canhotinho, onde criava e vendia gado. Era conhecida como a mulher vaqueira. Terá sido a primeira pernambucana a correr vaquejada. E vaquejada daquelas de cabra valente, que se corre no meio das brenhas, de gibão e chapéu de couro, para não ser destroçado pela vegetação agreste, retorcida e espinhosa. Em cima de um cavalo ninguém segurava aquela mulher, que olhava o mundo do alto e sentia-se livre de arreios, de autoridade e de convenções. Montada em seu cavalo, com um revólver nos quartos, enfrentou até o delegado de Canhotinho, que bulira injustamente com trabalhador seu. Invadiu a delegacia, com cavalo e tudo, de modo a botar freio nos desmandos da autoridade local. Depois da confusão armada, Ascenso corria a apagar o incêndio. Amavam-se assim. Tal qual eram. Ele com seu espírito boêmio, seu desejo insaciável de embriagar os sentidos, e ela com seu amor pelo mato, pelos bichos, prezando acima de tudo sua independência. Respeitavam-se e aceitavam-se sem poréns.
Quando, em 1965, Ascenso não resistiu à doença que o abatera desde a exoneração do cargo de diretor do Instituto Joaquim Nabuco, Lourdes e Luíza sentiram-se desemparadas e desesperadas. A mulher de espírito altivo, sentia-se baquear. Tanto mais que na seqüência da morte de Ascenso, acusada de comunismo, Lourdes vendeu tudo o que tinhas e às pressas deixou Pernambuco, rumo a São Paulo e, depois, ao Rio de Janeiro. Perseguida desde a infância pelo preconceito de uma sociedade tacanha e mesquinha, era agora vítima de perseguição política: -- Eu, que nunca fui comunista. Era apenas, e sou até hoje, uma humanista! A amizade com Arraes e Luiz Luna e, sobretudo, a recusa em silenciar suas idéias e opiniões voltaram contra Lourdes a sanha dos Militares. Escapou à prisão por intervenção do irmão mais novo, que lhe conseguiu um salvo-conduto junto ao Governador Paulo Guerra. A vida solitária, no Rio, não lhe foi fácil.
Também a família, por assim dizer, “legítima”, de Ascenso Ferreira não deu tréguas a Lourdes e Luíza, a quem o pai deixou todos os direitos sobre sua obra. Silenciosa, mas incansavelmente, Maria de Lourdes Medeiros enfrentou todas as resistências, dedicando-se, desde o seu retorno a Pernambuco, à defesa da memória e da obra do seu grande amor. Tal como havia sido em vida a companheira fiel, a parceira de todas as horas e de todas as situações, segue sendo a guardiã incansável e feraz do legado de Ascenso. Vive hoje com seus vinte gatos e Clara, a cachorrinha, em antigo casarão do Campo Grande. Está ali cercada de Ascenso por todos os lados, defende o poeta e sua poesia com a própria vida, sem exagero da metáfora. Os gatos, que também estão por toda parte, são os entes do reino animal que Lourdes mais preza, depois dos cavalos. Simbolizam a liberdade de espírito e a independência de que ela própria não admite abrir mão. Vive sozinha por opção, pois que não quer ninguém lhe ditando as regras do viver, mas assegura que jamais está só: quem passou pelo mundo com tanta intensidade, tem como companhia um baú incomensuravelmente rico de memórias.

Post scriptum: O coração de Dona Lourdes, palco de intensas emoções por 92 anos, resolveu encerrar suas funções no apagar da luzes de 2008, pertinho do Natal. Ela descansa, agora, ao lado do seu Ascenso, no Campo de Santo Amaro.

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