Este texto foi originalmente
publicado em Pernambuco: suplemento cultural do
Diário Oficial do Estado. Edição de julho
de 2008 (p. 7).
Lá
pelos princípios do século vigésimo, nas brenhas pernambucanas, nascia uma
menininha guenza. Maria de Lourdes Medeiros, tal qual o poeta mineiro, veio
destinada a ser gauche na vida. Seus
apuros começaram já no nascimento, pois que a mãe, vitimada por depressão pós-parto,
deu a filha a um sujeito que bateu em sua porta. Sorte foi que o avô,
Vespesiano, tomou logo conhecimento do fato e tratou de recuperar a neta, que
resolveu criar junto a si. Lourdes conta orgulhosa que o Capitão Vespesiano
Vieira de Mello fôra jovem e analfabeto para o Recife, trabalhara de cavalariço
na Great Western e voltara para
Canhotinho letrado e empreiteiro da companhia de trem. Fizera-se, então, senhor
de engenho e delegado da região. Das três irmãs da família Oliveira, que lhe
ofereceram em casamento, escolheu Amélia, moça pequenina e sábia.
Lourdes
foi criada no engenho do avô, chamado carinhosamente por ela de Papai. O pai natural morreu cedo, de
morte matada, e a mãe, Beatriz, mulher bonita e coquete, depois de viúva
apaixonou-se por homem separado, de família tradicional e abastada. Os dois
fugiram quando Lourdes tinha apenas dois anos. Quinze mais se passariam antes
que a menina, já moça, reencontrasse a mãe. A fuga de Beatriz marcou a alma de
Lourdes de modo indelével, obrigando-a ao amadurecimento precoce da vontade e
do caráter. De primeiro, vítima do preconceito, da visão tacanha daquela
sociedade tradicional e interiorana, Lourdes recusava-se a ir à escola.
Tampouco queria aprender a ler. Preferia viver livre e solta nas terras do
engenho, desfrutando da companhia inofensiva das vacas, cavalos, cabras, ovelhas
e galinhas. Só concordou em estudar a cartilha do ABC por artes de Tia Amância,
que a convenceu de que se aprendesse a ler, conseguiria decifrar o enigma que o
capinzal soprava no vento.
Feita
moça, quiseram arranjar-lhe casamento. Recusou-se, alegando que nela não se
botava arreio. Foi para o Recife estudar. Lá, na altura de concluir os estudos,
ia um dia a atravessar uma rua, nas redondezas do Forte das Cinco Pontas,
quando viu à sua frente um homem enorme, de chapéu. Era a hora do crepúsculo e
o vulto, vislumbrado à contra-luz, pareceu-lhe o fantasma de Caetano Vidal,
amigo da família recém-falecido. O susto foi tão grande que não viu o bonde se
aproximando. Foi jogada ao chão. O vulto enorme correu em sua direção, desejoso
de ajudá-la a levantar-se. – Quem é o
senhor? É o espírito de Caetano Vidal? – Não, eu sou Ascenso Ferreira. Pronto. Danou-se. Destinos cruzados,
destinos selados.
Formada
e trabalhando em loja de jóias antigas na rua do Imperador, Lourdes passava
diariamente em frente ao Café Continental, cruzando sempre com o poeta, que a
convidava para um suco. A paixão cresceu e tornou-se indomável. Certa feita, a
moça de decisões firmes foi bater à casa do poeta e anunciou que viera para
ficar. Foi um Deus nos acuda na família de Lourdes, pois que o poeta era oficialmente
casado, além de homem já maduro. Foi a intervenção de Mãe Amélia que acalmou os
ânimos do avô e dos irmãos: -- Ninguém
bole com Lourdes, se não vai se haver é comigo! Deixem a menina viver a vida
dela.
A
partir daí, Lourdes passou a dedicar-se integralmente a Ascenso. Embarcava nas
loucuras do poeta e compartilhava com ele a opção por uma vida plenamente
vivida. Dez horas da noite pegavam o bonde, desciam no Recife antigo, iam para
o Grande Hotel, jantavam, jogavam e depois saíam andando pelas pontes e ruas do
Recife, encontrando os grupos de amigos pelos bares. Vez por outra a turma
decidia ir apanhar o sol com a mão, na praia de Boa Viagem. Dali, antes de ir para
casa, passavam pelo Mercado de São José, para tomar um café da manhã sustento,
com macaxeira, inhame, carne de charque, carne de sol, queijo manteiga.
Certa
feita, Ascenso e Lourdes haviam saído do Grande Hotel já a altas horas da madrugada,
e caminhavam pela rua sozinhos em busca de um carro, quando foram abordados
pela viúva, que queria prendê-los por vagabundagem. Lourdes correu, subiu no
parapeito da ponte e ameaçou: -- Se me
prenderem, eu me jogo da ponte. E Ascenso, por sua vez, alegre e serelepe,
já meio enfiado na viatura, exclamou: -- Deixa
de besteira, Lourdes, vamos dar uma volta na viúva! A sorte é que o
delegado Apulcro Assunção, amigo do casal, viu o furdunço da janela do hotel, desceu
e resolveu a situação, mandando soltar o Diretor do Tesouro do Estado – Rapaz, solte logo esse homem, que senão,
amanhã ninguém no Estado recebe.
Em
1948 nascia Maria Luíza, única filha natural de Lourdes e Ascenso. O casal teve
também um filho adotivo, Jonas. Ascenso passou a viver para a filha,
fazendo-lhe todas as vontades. Lourdes ficava de longe, atocalhando as sandices
de pai e filha, que de certa feita quase botaram fogo no cinema Moderno. Por
essa altura, Lourdes já tinha suas terrinhas em Canhotinho, onde criava e
vendia gado. Era conhecida como a mulher
vaqueira. Terá sido a primeira pernambucana a correr vaquejada. E vaquejada
daquelas de cabra valente, que se corre no meio das brenhas, de gibão e chapéu
de couro, para não ser destroçado pela vegetação agreste, retorcida e
espinhosa. Em cima de um cavalo ninguém segurava aquela mulher, que olhava o
mundo do alto e sentia-se livre de arreios, de autoridade e de convenções.
Montada em seu cavalo, com um revólver nos quartos, enfrentou até o delegado de
Canhotinho, que bulira injustamente com trabalhador seu. Invadiu a delegacia,
com cavalo e tudo, de modo a botar freio nos desmandos da autoridade local.
Depois da confusão armada, Ascenso corria a apagar o incêndio. Amavam-se assim.
Tal qual eram. Ele com seu espírito boêmio, seu desejo insaciável de embriagar
os sentidos, e ela com seu amor pelo mato, pelos bichos, prezando acima de tudo
sua independência. Respeitavam-se e aceitavam-se sem poréns.
Quando,
em 1965, Ascenso não resistiu à doença que o abatera desde a exoneração do
cargo de diretor do Instituto Joaquim Nabuco, Lourdes e Luíza sentiram-se
desemparadas e desesperadas. A mulher de espírito altivo, sentia-se baquear.
Tanto mais que na seqüência da morte de Ascenso, acusada de comunismo, Lourdes
vendeu tudo o que tinhas e às pressas deixou Pernambuco, rumo a São Paulo e,
depois, ao Rio de Janeiro. Perseguida desde a infância pelo preconceito de uma
sociedade tacanha e mesquinha, era agora vítima de perseguição política: -- Eu, que nunca fui comunista. Era apenas, e
sou até hoje, uma humanista! A amizade com Arraes e Luiz Luna e, sobretudo,
a recusa em silenciar suas idéias e opiniões voltaram contra Lourdes a sanha
dos Militares. Escapou à prisão por intervenção do irmão mais novo, que lhe
conseguiu um salvo-conduto junto ao Governador Paulo Guerra. A vida solitária,
no Rio, não lhe foi fácil.
Também
a família, por assim dizer, “legítima”, de Ascenso Ferreira não deu tréguas a
Lourdes e Luíza, a quem o pai deixou todos os direitos sobre sua obra. Silenciosa,
mas incansavelmente, Maria de Lourdes Medeiros enfrentou todas as resistências,
dedicando-se, desde o seu retorno a Pernambuco, à defesa da memória e da obra
do seu grande amor. Tal como havia sido em vida a companheira fiel, a parceira
de todas as horas e de todas as situações, segue sendo a guardiã incansável e
feraz do legado de Ascenso. Vive hoje com seus vinte gatos e Clara, a
cachorrinha, em antigo casarão do Campo Grande. Está ali cercada de Ascenso por
todos os lados, defende o poeta e sua poesia com a própria vida, sem exagero da
metáfora. Os gatos, que também estão por toda parte, são os entes do reino
animal que Lourdes mais preza, depois dos cavalos. Simbolizam a liberdade de
espírito e a independência de que ela própria não admite abrir mão. Vive
sozinha por opção, pois que não quer ninguém lhe ditando as regras do viver,
mas assegura que jamais está só: quem passou pelo mundo com tanta intensidade,
tem como companhia um baú incomensuravelmente rico de memórias.
Post scriptum:
O coração de Dona Lourdes, palco de intensas emoções por 92 anos, resolveu encerrar suas
funções no apagar da luzes de 2008, pertinho do Natal. Ela descansa, agora, ao
lado do seu Ascenso, no Campo de Santo Amaro.
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