Manaus, 13 de fevereiro
Uma semana transcorreu sem novidades. Encerramos o trabalho
e chegamos ao último dia dessa aventura amazonense. Acordei bem cedo para fazer
as malas. Eu e Vivi deixamos a bagagem no quarto de Guida e saímos para fazer
nosso passeio de barco. No caminho, liguei pro barqueiro, que nos deu um bolo.
Inventou que estava com dengue. De todo modo, resolvemos caminhar até o porto,
na esperança de achar alguém que nos levasse a passear. Descobrimos que já era
tarde para ir fazer o passeio que inclui o mergulho com os botos vermelhos
(Tenório me esclareceu que esse negócio de boto cor-de-rosa é invenção de
Jacques Cousteau; a denominação local é boto vermelho). Só para chegar no
Ariaú, onde há treinadores e animais já acostumados com turistas, é uma hora e
meia de viagem. Ficamos bem decepcionadas. O capitão nos propôs um tour pelo encontro das águas, e
igarapés, porém não simpatizamos com ele – muito cheio de bossa -- e seguimos
adiante. Encontramos um capitão de um pequeno barquinho, que nos pareceu uma
gracinha de pessoa. Um senhor com cara de índio, pele morena e olhos cinzentos.
A doçura que havia em seu olhar nos seduziu. Seu Severino deve ter uns
cinquenta anos, embora aparente mais idade. Tem a pele curtida de sol. Nos
propôs um passeio até o encontro das águas e disse que poderíamos tentar
mergulhar com os botos que ficam nadando por lá. Perguntamos se não haveria
perigo, nadar com botos, assim, no meio do rio. Ele disse que não. Perguntei se
ele mergulharia conosco e ele respondeu que sim. Lá fomos nós.
A primeira parada foi num posto de gasolina flutuante. BR. Penso
em como a Amazônia é um outro mundo. A relação primordial das pessoas é com a
água. Toda a vida se organiza em torno dos rios e igarapés. Tudo depende da
vontade deles. O comportamento de suas águas determina o ritmo da vida humana,
inclusive o da produção e circulação de bens e pessoas. Botos, vermelhos e
tucuxis aparecem, de vez em quando, à tona d’água. Para nossa frustração,
nenhum deles se aproxima do barco. Nos damos conta de que deveríamos ter
trazido peixe fresco a bordo, para atrai-los. Ainda estamos muito perto do
porto e as águas são imundas.
O tempo resolveu colaborar. Os sinais de uma possível chuva
estão muito distantes no horizonte. Por cima de nossas cabeças, o céu está
cheio de flocos de algodão. Por entre as nuvens claras e fofinhas, alguns
clarões de azul. Nos afastamos do porto, seguindo à esquerda, em direção ao
encontro das águas. À nossa direita, até aonde a vista pode alcançar, um imenso
tapete de água escura, bordejado pela franja verde da floresta. Ainda margeamos
o leito esquerdo do rio, onde se sucedem portos: graneleiro, cargas, Marinha,
Petrobras. Vemos cilos, guindastes, contêineres, cargueiros, tanques imensos. Não
trouxemos máquina fotográfica. Será preciso registrar tudo na memória, e nas
páginas do caderninho onde vou anotando essas impressões.
Afinal nos afastamos da margem esquerda, e chegamos ao
famoso encontro das águas. Colocamos as mãos nas águas dos dois rios: de um
lado, o Negro, mais quente e calmo, de outro, o Solimões, de águas mais claras,
na realidade, barrentas, frias e bem mais revoltas. Seu Severino pára o barco.
Queremos mergulhar. Na hora do pega para capar, ele se mostra temeroso. Nos
fala de crocodilos, peixes enormes e piranhas. Hesitamos. Dois rapazes se
aproximam numa canoa. Trazem um filhote de bicho-preguiça e uma grande sucuri.
Vivem de mostrar esses bichinhos aos turistas, em troca de alguns tostões. Nem
deveríamos, mas acabamos fazendo “negócio”. Pego a sucuri nos braços. É linda.
O couro macio. As escamas de uma geometria rigorosa e bela. Tons suaves de
amarelo fazem desenhos bonitos, em contraste com o verde e o preto,
predominantes. Seguro sua cabeça e miro seus olhos. Ela põe a língua preta,
bipartida na ponta, para fora. Sinto-me mal. Tudo aquilo é de uma judiação sem
tamanho. Observo seu corpo, cheio de feridas. Machucam-me, ainda que sejam superficiais.
Certamente decorrem do manuseio, do tempo excessivo passado dentro da canoa.
Passo a mão sobre seu corpo suavemente, como se meu gesto de carinho pudesse
oferecer-lhe algum consolo. Procuro racionalizar a situação. O sacrifício
daquela cobra representa o ganha-pão dos rapazes e suas famílias. É disso que
vivem. De saciar a curiosidade de turistas fascinados com o exótico. Também
tomo a preguiça nos braços. Aconchego-a junto ao peito e deito sua cabecinha no
meu ombro. Move-me o mesmo desejo de ampará-la. É muito fofinha. E parece mais
afeita ao chamego. Acaricio-lhe a barriguinha e ela fecha os olhinhos. Tem dois
aninhos e estatura ainda pequena. Devolvemos os bichinhos aos rapazes. Demo-lhes
algum dinheiro. Continuo me sentindo mal com a situação. Uma predadora da
natureza. Antes que a canoa se afaste, pergunto aos meninos se há algum perigo
em mergulhar ali, no meio do rio. Eles dizem que não. Criamos coragem e
mergulhamos. Estamos muito próximas ao encontro das águas, mas nadamos no lado
do rio Negro. É mais tranquilo, mais quente, logo, bem mais convidativo. O que
faz medo é a escuridão. Não se vê sequer um palmo abaixo da linha d’água. Seu
Severino, para não quebrar a promessa, pula também. Porém, nota-se que está
apreensivo. Achamos sua inquietação muito divertida. Viviane se afasta,
nadando. Seu Severino logo volta ao barco. Subo e ele leva o barco ao encontro
de Viviane. Pulo novamente na água. Ainda temerosa. Seu Severino nos avisa que
dois botos-tucuxis se aproximam do barco. Só que estão do outro lado, e não vêm
até nós. A sensação de mergulhar nesse rio, enorme, escuro e misterioso é
sensacional. Tenho medo e ao mesmo tempo estou fascinada. A água fresca e doce
envolvendo todo o corpo é uma delícia. A poucos metros, o revolto Solimões. Seu
Severino, no barco, está apreensivo. Para não abusar muito da sorte, decidimos
encerrar o mergulho. De algum modo, esse banho no rio nos compensou da
frustração de não nadarmos com os botos, como era nosso plano inicial.
Seguimos o passeio, tomando a direção da margem direita. Nos
aproximamos da floresta. Na entrada de um igarapé paramos numa casinha onde é
possível simular uma pesca de pirarucu. A situação – por sua artificialidade --
não me parece animadora, porém, Viviane e Seu Severino insistem. Subimos numa
plataforma que circunda tanques, onde estão pirarucus, tambaquis e aruanãs. O
tanque dos pirarucus está lotado. O rapaz amarra peixes pequenos num barbante e
lançamos a vara. Os pirarucus mordem a isca e entramos numa queda de braço.
Fazendo força, é possível levantá-los acima da água. O que vale é a experiência
de sentir o peso considerável deles. São enormes e lindos. Sobretudo na parte
posterior, onde o cinza-chumbo se entremeia com um rosa-choque intenso.
Dali seguimos para o parque ecológico. Longo trajeto. Vamos
acompanhando a margem, bem pertinho da floresta anfíbia. Começa literalmente
dentro d’água. Olhando para as copas das árvores, o que vemos é um emaranhado
de galhos, folhas, cipós, trepadeiras. Trata-se de uma visão curiosíssima.
Lembrei-me do título de um livro que nunca li, de Candace Slater: Entangled. Definição perfeita do que
vejo. É uma paisagem ao mesmo tempo monótona e diversa. Sempre aquela franja
verde, ao pé do rio. No entanto, cada trecho é formado de árvores todas
diferentes umas das outras. São várias as tonalidades de verde, os desenhos das
folhas, a grossura dos troncos, a altura das copas. A sensação predominante é
de emaranhado mesmo. Tudo enroscado, confuso, imperfeito. Essa impressão de
inacabado e de imprevisível me agrada muitíssimo. Em certos trechos, dentre as
copas avistam-se as pontas de algum tipo de palmeira. Devem ser altíssimas. Na
parte mais baixa, já dentro do rio, aqui e acolá uma garça, impávida. Dentro
d’água, predomina um tipo de capim alto. Seu Severino informa que são
canaranas. Essa vegetação flutuante forma tapetes verdes em largos trechos,
criando a ilusão de terra firme. Basta passar um barco mais rápido e o tapete
ondula, fazendo crer que a terra se move, que é fluida, flexível. Muito legal.
Sobre a floresta, muitas nuvens escuras. Vemos uma coluna de
fumaça negra ao longe. Alguma queimada. Acima de nós, o céu permanece azul, com
lindos flocos de algodão. A essa altura, estou sentada na proa estreita do
barco. Sinto-me feliz, sentadinha ali, sentindo o vento e a água sob os pés,
que de vez em quando ponho para fora do barco. Adoro a sensação da água
passando ligeira sob eles, massageando-os. Se acreditasse em reencarnação,
diria que em outra vida fui um pescador. Simplesmente adoro sentar na proa de
um barco. Viviane abriga-se do sol sob a coberta do barco. Avistamos um boto
vermelho, impressionante, enorme. Paramos o barco, mas ele se afasta, some no
meio das canaranas. Várias gaiolas passam por nós: Suely Gomes, Célia Cristina,
Saulo Ribeiro.... As redinhas penduradas, com passageiros bem aboletados nelas.
Um dia ainda farei uma viagem num barco desses. Quem sabe vou de Manaus a
Belém, cruzando o Amazonas.... Suely Gomes nos dá um banho fenomenal. Ficamos
ensopadas, e nossas bolsas idem.
Gaivotas de rio mergulham, caçando peixes. Sobrevoam nosso
barquinho. São brancas e têm as pontas das asas negras. Dir-se-ia raquíticas,
se comparadas às suas primas de São Francisco, ou do Canal da Mancha. Quase pigméias,
feita essa injusta comparação. Na realidade, são pequeninas e muito elegantes. Nota
dissonante: garrafas plásticas boiando entre as canaranas.
Passamos por comunidades ribeirinhas. Essas casinhas
flutuantes têm um incrível charme. São feitas de tábuas de madeira, dispostas
transversalmente. Algumas coloridas, outras em madeira natural, já opaca pela
ação da intempérie. As perninhas finas, próprias das palafitas, dão-lhes um ar
de improbabilidade. Parece até uma pobreza decente, se isso existir (e não for
mera construção de poetas e sociólogos). Em uma varanda, uma senhorinha se
balança na cadeira. Mais adiante, uma casa-bar, flutuante, toca um desses
bregas pavorosos. Um velhinho passa por nós numa canoa. Parece quase cego.
Responde com imensa alegria ao nosso boa tarde. Sua simplicidade me comove
profundamente.
Chegamos ao parque ecológico. Tem um restaurante cheio de
turistas. Dispensamos o almoço, o centro de artesanato, e seguimos pela
plataforma de madeira que adentra a floresta. No caminho, escutamos um toc-toc.
Paramos. É um belíssimo pica-pau. A plumagem do corpo é negra, com uma tira
transversal branca em cada asa. A cabeça de um vermelho intenso. Um penacho
charmoso, tipo Tin Tin. O lago das vitórias-régias é um cenário impressionante.
Damos a sorte de encontrar apenas um casal de turistas no local, que já está de
saída. Podemos, então, contemplar o cenário em paz. Boa parte da superfície do
lago está tomada por enormes vitórias-régias. Estão florindo, embora as flores,
cor-de-rosa por fora, estejam fechadas. Diz seu Severino que elas só
desabrocham à noite, e que são alvíssimas por dentro. Há vitórias-régias
menores, de todos os tamanhos. Nota-se que quanto menores, mais enrugadas. Só
as grandes têm a superfície bem esticada. Em meio a elas, exatamente abaixo da
plataforma onde nos encontramos, um jacaré descansa à beira d’água. Imóvel. Só
pisca o olho quando algum inseto lhe pousa em cima.
O lago está cercado pela floresta verde. Dentro dele há
vários troncos sem uma única folha, esbranquiçados, alguns pela metade. Essas
árvores fantasmagóricas parecem formar uma floresta morta, aquática. Impressionante
a altura da marca do nível da água nos troncos. Nos damos conta de que em tempo
de cheia braba estaríamos submersos. Fecho os olhos para escutar os barulhinhos
da mata. São múltiplos, profusos. Pássaros, insetos, anfíbios. De repente, tem
início um concerto de rãs. Um coaxar lindo, inusitado para mim. Fico encantada.
Param do mesmo modo súbito com que iniciaram a cantoria. Observando a parte do
lago que não está coberta pelas vitórias-régias, avistamos aruanãs (o peixe do
meu quadro). Há muita vegetação flutuante, formando pequenas ilhas. São umas
plantinhas delicadas, de folhinhas redondas e pequeninas. Como se fossem
miniaturas de vitória-régia. Duas jaçanãs ciscam num desses tapetes. São super
graciosas. Pescoço preto, bem fininho, assim como as perninhas. O corpo é
redondinho, de um marrom alaranjado. Uma delas levanta vôo e eu chamo a atenção
de Vivi para o branco das asas abertas (com as pontinhas pretas). Lindo! Porém,
mais lindo é o comentário de seu Severino. Ele me pergunta: “São brancas ou são
amarelas?” Obviamente que são amarelas! De um amarelo bem suave, como venho a
confirmar depois. Foi o jeito mais delicado que eu já vi de alguém corrigir o
outro! A delicadeza de seu Severino me mareja os olhos.
Voltamos pela plataforma de madeira. Descemos dela para
adentrar um pouquinho a selva. Caminhamos até uma enorme samaúma. Imponente na
sua aparente imperfeição. Seu tronco, até certa altura, lembra uma imensa raiz
de árvore. Espinhos grossos lhe revestem a casca. Voltamos para o barco. No
caminho, cruzamos com uma legião de turistas, a caminho do lago das
vitórias-régias. Alguns bufam e perguntam ao guia se será preciso andar muito!
Uma mulher comenta com o marido que ali é tudo igual. Deus do Céu, o que fazem
aquelas criaturas ali? Certamente estão no lugar errado. Por que não foram para
Nova York ou Miami, fazer compras?
Entramos no barco e seguimos em busca de um pequeno igarapé,
desses que entram pela floresta. Navegamos bastante no mesmo igarapé largo em
que estávamos antes. Vários barcos com turistas e ribeirinhos passam por nós.
Sigo sentada na proa. Passa por nós uma canoa com uma velhinha e uma menina
linda. Nos cumprimentam sorridentes. Vez por outra avistamos um boto e paramos
o barco, na esperança inútil de que algum deles se aproxime de nós. A verdade é
que não me sinto mais frustrada. Ainda que não possa tocá-los, me alegra muito
contemplá-los em seu habitat natural, em sua vida ordinária. Finalmente
encontramos um igarapezinho navegável. Entramos na floresta. A vegetação
abundante, dentro d’água, nos obriga a desligar o motor. Temos de remar.
Viviane assume o comando do remo e até que se sai bem. Estamos sozinhos ali.
Nós e a floresta, com seus habitantes misteriosos, de cuja presença podemos nos
aperceber apenas pelos ruídos. Um grilo pousa nas costas de Viviane. Como é
belo! O corpo é verde-musgo, com listras finíssimas, em verde fluorescente. As
perninhas coloridas por listras horizontais, em marrom-alaranjado e preto. No
rosto, listrado de verde, sobressaem-se os olhinhos de um preto intenso. Olho
para ele e surpreende-me a nítida sensação de que ele está me encarando. Admiro
sua leveza, desafiando a gravidade. Viviane o espanta com as mãos. Seu Severino
vira o barco e começamos a viagem de volta.
Deixamos a floresta e retornamos ao igarapé maior. A caminho
do rio Negro, contemplo pela última vez aquela paisagem. Sempre sentada na
proa. O olhar passeando em volta, e parando na linha do horizonte. Por cima de
nós, as gaivotas. Aos lados, nas canaranas, garças e jaçanãs ensaiam vôos
curtos. Estou encantada com o colorido das jaçanãs. Avistamos dois gaviões
belíssimos. Majestosamente pousados em troncos de árvores mortas. A plumagem é
marrom e branca. Têm as garras negras e uma faixa também preta na altura dos
olhos. Como se estivessem mascarados. Paz e alegria é o que sinto.
O tempo fecha. Nuvens negras, carregadas, cobrem Manaus e
parecem cada vez mais próximas de nós. Uma tempestade se anuncia. Começo a
torcer para que cheguemos logo ao porto, antes que a chuva nos apanhe em pleno
rio. Quando isso acontece, formam-se ondas enormes para o tamanho do barquinho
em que estamos. Vivi isso da última vez em que estive aqui. Chamam-se
banzeiros.
Entramos no rio Negro. À medida em que nos aproximamos do
porto de Manaus, o lixo flutuante se multiplica. A água começa a cheirar mal.
Hora de abandonar meu lugarzinho na proa do barco. Sento junto de Viviane.
Sábia decisão. Duas lanchas rápidas passam por nós e encharcam a proa do barco.
Teria tomado um banho de água suja. Desembarcamos. Agradecemos fervorosamente a
seu Severino. Pagamos além do acordado. Peço-lhe permissão para um abraço. Sua
simplicidade e alegria me aquecem o coração.
Caminhamos ligeiro, subindo a Av. Eduardo Ribeiro. Queremos
chegar ao hotel antes da chuva, mas ela nos apanha a dois quarteirões de nosso
destino. A água cai do céu com vontade. Grossos pingos nos deixam completamente
molhadas. No entanto, não podemos nos queixar. O passeio foi maravilhoso. Isso
é o de menos. Chegamos, tomamos banho e saímos para almoçar com Guida. O único
lugar aberto às cinco da tarde é o shopping. Alimentadas, voltamos ao hotel e estamos
fazendo hora, até que chegue o momento de ir para o aeroporto. Parto feliz com
o que o vivi aqui, embora já seja tempo de voltar para casa.
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