quarta-feira, 20 de junho de 2012

Diário de viagem: Manaus, parte 13 (fim)


Manaus, 13 de fevereiro

Uma semana transcorreu sem novidades. Encerramos o trabalho e chegamos ao último dia dessa aventura amazonense. Acordei bem cedo para fazer as malas. Eu e Vivi deixamos a bagagem no quarto de Guida e saímos para fazer nosso passeio de barco. No caminho, liguei pro barqueiro, que nos deu um bolo. Inventou que estava com dengue. De todo modo, resolvemos caminhar até o porto, na esperança de achar alguém que nos levasse a passear. Descobrimos que já era tarde para ir fazer o passeio que inclui o mergulho com os botos vermelhos (Tenório me esclareceu que esse negócio de boto cor-de-rosa é invenção de Jacques Cousteau; a denominação local é boto vermelho). Só para chegar no Ariaú, onde há treinadores e animais já acostumados com turistas, é uma hora e meia de viagem. Ficamos bem decepcionadas. O capitão nos propôs um tour pelo encontro das águas, e igarapés, porém não simpatizamos com ele – muito cheio de bossa -- e seguimos adiante. Encontramos um capitão de um pequeno barquinho, que nos pareceu uma gracinha de pessoa. Um senhor com cara de índio, pele morena e olhos cinzentos. A doçura que havia em seu olhar nos seduziu. Seu Severino deve ter uns cinquenta anos, embora aparente mais idade. Tem a pele curtida de sol. Nos propôs um passeio até o encontro das águas e disse que poderíamos tentar mergulhar com os botos que ficam nadando por lá. Perguntamos se não haveria perigo, nadar com botos, assim, no meio do rio. Ele disse que não. Perguntei se ele mergulharia conosco e ele respondeu que sim. Lá fomos nós.
A primeira parada foi num posto de gasolina flutuante. BR. Penso em como a Amazônia é um outro mundo. A relação primordial das pessoas é com a água. Toda a vida se organiza em torno dos rios e igarapés. Tudo depende da vontade deles. O comportamento de suas águas determina o ritmo da vida humana, inclusive o da produção e circulação de bens e pessoas. Botos, vermelhos e tucuxis aparecem, de vez em quando, à tona d’água. Para nossa frustração, nenhum deles se aproxima do barco. Nos damos conta de que deveríamos ter trazido peixe fresco a bordo, para atrai-los. Ainda estamos muito perto do porto e as águas são imundas.
O tempo resolveu colaborar. Os sinais de uma possível chuva estão muito distantes no horizonte. Por cima de nossas cabeças, o céu está cheio de flocos de algodão. Por entre as nuvens claras e fofinhas, alguns clarões de azul. Nos afastamos do porto, seguindo à esquerda, em direção ao encontro das águas. À nossa direita, até aonde a vista pode alcançar, um imenso tapete de água escura, bordejado pela franja verde da floresta. Ainda margeamos o leito esquerdo do rio, onde se sucedem portos: graneleiro, cargas, Marinha, Petrobras. Vemos cilos, guindastes, contêineres, cargueiros, tanques imensos. Não trouxemos máquina fotográfica. Será preciso registrar tudo na memória, e nas páginas do caderninho onde vou anotando essas impressões.
Afinal nos afastamos da margem esquerda, e chegamos ao famoso encontro das águas. Colocamos as mãos nas águas dos dois rios: de um lado, o Negro, mais quente e calmo, de outro, o Solimões, de águas mais claras, na realidade, barrentas, frias e bem mais revoltas. Seu Severino pára o barco. Queremos mergulhar. Na hora do pega para capar, ele se mostra temeroso. Nos fala de crocodilos, peixes enormes e piranhas. Hesitamos. Dois rapazes se aproximam numa canoa. Trazem um filhote de bicho-preguiça e uma grande sucuri. Vivem de mostrar esses bichinhos aos turistas, em troca de alguns tostões. Nem deveríamos, mas acabamos fazendo “negócio”. Pego a sucuri nos braços. É linda. O couro macio. As escamas de uma geometria rigorosa e bela. Tons suaves de amarelo fazem desenhos bonitos, em contraste com o verde e o preto, predominantes. Seguro sua cabeça e miro seus olhos. Ela põe a língua preta, bipartida na ponta, para fora. Sinto-me mal. Tudo aquilo é de uma judiação sem tamanho. Observo seu corpo, cheio de feridas. Machucam-me, ainda que sejam superficiais. Certamente decorrem do manuseio, do tempo excessivo passado dentro da canoa. Passo a mão sobre seu corpo suavemente, como se meu gesto de carinho pudesse oferecer-lhe algum consolo. Procuro racionalizar a situação. O sacrifício daquela cobra representa o ganha-pão dos rapazes e suas famílias. É disso que vivem. De saciar a curiosidade de turistas fascinados com o exótico. Também tomo a preguiça nos braços. Aconchego-a junto ao peito e deito sua cabecinha no meu ombro. Move-me o mesmo desejo de ampará-la. É muito fofinha. E parece mais afeita ao chamego. Acaricio-lhe a barriguinha e ela fecha os olhinhos. Tem dois aninhos e estatura ainda pequena. Devolvemos os bichinhos aos rapazes. Demo-lhes algum dinheiro. Continuo me sentindo mal com a situação. Uma predadora da natureza. Antes que a canoa se afaste, pergunto aos meninos se há algum perigo em mergulhar ali, no meio do rio. Eles dizem que não. Criamos coragem e mergulhamos. Estamos muito próximas ao encontro das águas, mas nadamos no lado do rio Negro. É mais tranquilo, mais quente, logo, bem mais convidativo. O que faz medo é a escuridão. Não se vê sequer um palmo abaixo da linha d’água. Seu Severino, para não quebrar a promessa, pula também. Porém, nota-se que está apreensivo. Achamos sua inquietação muito divertida. Viviane se afasta, nadando. Seu Severino logo volta ao barco. Subo e ele leva o barco ao encontro de Viviane. Pulo novamente na água. Ainda temerosa. Seu Severino nos avisa que dois botos-tucuxis se aproximam do barco. Só que estão do outro lado, e não vêm até nós. A sensação de mergulhar nesse rio, enorme, escuro e misterioso é sensacional. Tenho medo e ao mesmo tempo estou fascinada. A água fresca e doce envolvendo todo o corpo é uma delícia. A poucos metros, o revolto Solimões. Seu Severino, no barco, está apreensivo. Para não abusar muito da sorte, decidimos encerrar o mergulho. De algum modo, esse banho no rio nos compensou da frustração de não nadarmos com os botos, como era nosso plano inicial.
Seguimos o passeio, tomando a direção da margem direita. Nos aproximamos da floresta. Na entrada de um igarapé paramos numa casinha onde é possível simular uma pesca de pirarucu. A situação – por sua artificialidade -- não me parece animadora, porém, Viviane e Seu Severino insistem. Subimos numa plataforma que circunda tanques, onde estão pirarucus, tambaquis e aruanãs. O tanque dos pirarucus está lotado. O rapaz amarra peixes pequenos num barbante e lançamos a vara. Os pirarucus mordem a isca e entramos numa queda de braço. Fazendo força, é possível levantá-los acima da água. O que vale é a experiência de sentir o peso considerável deles. São enormes e lindos. Sobretudo na parte posterior, onde o cinza-chumbo se entremeia com um rosa-choque intenso.
Dali seguimos para o parque ecológico. Longo trajeto. Vamos acompanhando a margem, bem pertinho da floresta anfíbia. Começa literalmente dentro d’água. Olhando para as copas das árvores, o que vemos é um emaranhado de galhos, folhas, cipós, trepadeiras. Trata-se de uma visão curiosíssima. Lembrei-me do título de um livro que nunca li, de Candace Slater: Entangled. Definição perfeita do que vejo. É uma paisagem ao mesmo tempo monótona e diversa. Sempre aquela franja verde, ao pé do rio. No entanto, cada trecho é formado de árvores todas diferentes umas das outras. São várias as tonalidades de verde, os desenhos das folhas, a grossura dos troncos, a altura das copas. A sensação predominante é de emaranhado mesmo. Tudo enroscado, confuso, imperfeito. Essa impressão de inacabado e de imprevisível me agrada muitíssimo. Em certos trechos, dentre as copas avistam-se as pontas de algum tipo de palmeira. Devem ser altíssimas. Na parte mais baixa, já dentro do rio, aqui e acolá uma garça, impávida. Dentro d’água, predomina um tipo de capim alto. Seu Severino informa que são canaranas. Essa vegetação flutuante forma tapetes verdes em largos trechos, criando a ilusão de terra firme. Basta passar um barco mais rápido e o tapete ondula, fazendo crer que a terra se move, que é fluida, flexível. Muito legal.
Sobre a floresta, muitas nuvens escuras. Vemos uma coluna de fumaça negra ao longe. Alguma queimada. Acima de nós, o céu permanece azul, com lindos flocos de algodão. A essa altura, estou sentada na proa estreita do barco. Sinto-me feliz, sentadinha ali, sentindo o vento e a água sob os pés, que de vez em quando ponho para fora do barco. Adoro a sensação da água passando ligeira sob eles, massageando-os. Se acreditasse em reencarnação, diria que em outra vida fui um pescador. Simplesmente adoro sentar na proa de um barco. Viviane abriga-se do sol sob a coberta do barco. Avistamos um boto vermelho, impressionante, enorme. Paramos o barco, mas ele se afasta, some no meio das canaranas. Várias gaiolas passam por nós: Suely Gomes, Célia Cristina, Saulo Ribeiro.... As redinhas penduradas, com passageiros bem aboletados nelas. Um dia ainda farei uma viagem num barco desses. Quem sabe vou de Manaus a Belém, cruzando o Amazonas.... Suely Gomes nos dá um banho fenomenal. Ficamos ensopadas, e nossas bolsas idem.
Gaivotas de rio mergulham, caçando peixes. Sobrevoam nosso barquinho. São brancas e têm as pontas das asas negras. Dir-se-ia raquíticas, se comparadas às suas primas de São Francisco, ou do Canal da Mancha. Quase pigméias, feita essa injusta comparação. Na realidade, são pequeninas e muito elegantes. Nota dissonante: garrafas plásticas boiando entre as canaranas.
Passamos por comunidades ribeirinhas. Essas casinhas flutuantes têm um incrível charme. São feitas de tábuas de madeira, dispostas transversalmente. Algumas coloridas, outras em madeira natural, já opaca pela ação da intempérie. As perninhas finas, próprias das palafitas, dão-lhes um ar de improbabilidade. Parece até uma pobreza decente, se isso existir (e não for mera construção de poetas e sociólogos). Em uma varanda, uma senhorinha se balança na cadeira. Mais adiante, uma casa-bar, flutuante, toca um desses bregas pavorosos. Um velhinho passa por nós numa canoa. Parece quase cego. Responde com imensa alegria ao nosso boa tarde. Sua simplicidade me comove profundamente.
Chegamos ao parque ecológico. Tem um restaurante cheio de turistas. Dispensamos o almoço, o centro de artesanato, e seguimos pela plataforma de madeira que adentra a floresta. No caminho, escutamos um toc-toc. Paramos. É um belíssimo pica-pau. A plumagem do corpo é negra, com uma tira transversal branca em cada asa. A cabeça de um vermelho intenso. Um penacho charmoso, tipo Tin Tin. O lago das vitórias-régias é um cenário impressionante. Damos a sorte de encontrar apenas um casal de turistas no local, que já está de saída. Podemos, então, contemplar o cenário em paz. Boa parte da superfície do lago está tomada por enormes vitórias-régias. Estão florindo, embora as flores, cor-de-rosa por fora, estejam fechadas. Diz seu Severino que elas só desabrocham à noite, e que são alvíssimas por dentro. Há vitórias-régias menores, de todos os tamanhos. Nota-se que quanto menores, mais enrugadas. Só as grandes têm a superfície bem esticada. Em meio a elas, exatamente abaixo da plataforma onde nos encontramos, um jacaré descansa à beira d’água. Imóvel. Só pisca o olho quando algum inseto lhe pousa em cima.
O lago está cercado pela floresta verde. Dentro dele há vários troncos sem uma única folha, esbranquiçados, alguns pela metade. Essas árvores fantasmagóricas parecem formar uma floresta morta, aquática. Impressionante a altura da marca do nível da água nos troncos. Nos damos conta de que em tempo de cheia braba estaríamos submersos. Fecho os olhos para escutar os barulhinhos da mata. São múltiplos, profusos. Pássaros, insetos, anfíbios. De repente, tem início um concerto de rãs. Um coaxar lindo, inusitado para mim. Fico encantada. Param do mesmo modo súbito com que iniciaram a cantoria. Observando a parte do lago que não está coberta pelas vitórias-régias, avistamos aruanãs (o peixe do meu quadro). Há muita vegetação flutuante, formando pequenas ilhas. São umas plantinhas delicadas, de folhinhas redondas e pequeninas. Como se fossem miniaturas de vitória-régia. Duas jaçanãs ciscam num desses tapetes. São super graciosas. Pescoço preto, bem fininho, assim como as perninhas. O corpo é redondinho, de um marrom alaranjado. Uma delas levanta vôo e eu chamo a atenção de Vivi para o branco das asas abertas (com as pontinhas pretas). Lindo! Porém, mais lindo é o comentário de seu Severino. Ele me pergunta: “São brancas ou são amarelas?” Obviamente que são amarelas! De um amarelo bem suave, como venho a confirmar depois. Foi o jeito mais delicado que eu já vi de alguém corrigir o outro! A delicadeza de seu Severino me mareja os olhos.
Voltamos pela plataforma de madeira. Descemos dela para adentrar um pouquinho a selva. Caminhamos até uma enorme samaúma. Imponente na sua aparente imperfeição. Seu tronco, até certa altura, lembra uma imensa raiz de árvore. Espinhos grossos lhe revestem a casca. Voltamos para o barco. No caminho, cruzamos com uma legião de turistas, a caminho do lago das vitórias-régias. Alguns bufam e perguntam ao guia se será preciso andar muito! Uma mulher comenta com o marido que ali é tudo igual. Deus do Céu, o que fazem aquelas criaturas ali? Certamente estão no lugar errado. Por que não foram para Nova York ou Miami, fazer compras?
Entramos no barco e seguimos em busca de um pequeno igarapé, desses que entram pela floresta. Navegamos bastante no mesmo igarapé largo em que estávamos antes. Vários barcos com turistas e ribeirinhos passam por nós. Sigo sentada na proa. Passa por nós uma canoa com uma velhinha e uma menina linda. Nos cumprimentam sorridentes. Vez por outra avistamos um boto e paramos o barco, na esperança inútil de que algum deles se aproxime de nós. A verdade é que não me sinto mais frustrada. Ainda que não possa tocá-los, me alegra muito contemplá-los em seu habitat natural, em sua vida ordinária. Finalmente encontramos um igarapezinho navegável. Entramos na floresta. A vegetação abundante, dentro d’água, nos obriga a desligar o motor. Temos de remar. Viviane assume o comando do remo e até que se sai bem. Estamos sozinhos ali. Nós e a floresta, com seus habitantes misteriosos, de cuja presença podemos nos aperceber apenas pelos ruídos. Um grilo pousa nas costas de Viviane. Como é belo! O corpo é verde-musgo, com listras finíssimas, em verde fluorescente. As perninhas coloridas por listras horizontais, em marrom-alaranjado e preto. No rosto, listrado de verde, sobressaem-se os olhinhos de um preto intenso. Olho para ele e surpreende-me a nítida sensação de que ele está me encarando. Admiro sua leveza, desafiando a gravidade. Viviane o espanta com as mãos. Seu Severino vira o barco e começamos a viagem de volta.
Deixamos a floresta e retornamos ao igarapé maior. A caminho do rio Negro, contemplo pela última vez aquela paisagem. Sempre sentada na proa. O olhar passeando em volta, e parando na linha do horizonte. Por cima de nós, as gaivotas. Aos lados, nas canaranas, garças e jaçanãs ensaiam vôos curtos. Estou encantada com o colorido das jaçanãs. Avistamos dois gaviões belíssimos. Majestosamente pousados em troncos de árvores mortas. A plumagem é marrom e branca. Têm as garras negras e uma faixa também preta na altura dos olhos. Como se estivessem mascarados. Paz e alegria é o que sinto.
O tempo fecha. Nuvens negras, carregadas, cobrem Manaus e parecem cada vez mais próximas de nós. Uma tempestade se anuncia. Começo a torcer para que cheguemos logo ao porto, antes que a chuva nos apanhe em pleno rio. Quando isso acontece, formam-se ondas enormes para o tamanho do barquinho em que estamos. Vivi isso da última vez em que estive aqui. Chamam-se banzeiros.
Entramos no rio Negro. À medida em que nos aproximamos do porto de Manaus, o lixo flutuante se multiplica. A água começa a cheirar mal. Hora de abandonar meu lugarzinho na proa do barco. Sento junto de Viviane. Sábia decisão. Duas lanchas rápidas passam por nós e encharcam a proa do barco. Teria tomado um banho de água suja. Desembarcamos. Agradecemos fervorosamente a seu Severino. Pagamos além do acordado. Peço-lhe permissão para um abraço. Sua simplicidade e alegria me aquecem o coração.
Caminhamos ligeiro, subindo a Av. Eduardo Ribeiro. Queremos chegar ao hotel antes da chuva, mas ela nos apanha a dois quarteirões de nosso destino. A água cai do céu com vontade. Grossos pingos nos deixam completamente molhadas. No entanto, não podemos nos queixar. O passeio foi maravilhoso. Isso é o de menos. Chegamos, tomamos banho e saímos para almoçar com Guida. O único lugar aberto às cinco da tarde é o shopping. Alimentadas, voltamos ao hotel e estamos fazendo hora, até que chegue o momento de ir para o aeroporto. Parto feliz com o que o vivi aqui, embora já seja tempo de voltar para casa.

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