quarta-feira, 6 de junho de 2012

Diário de viagem: Manaus, parte 10


Acordei, de madrugada, super enjoada. Não consegui mais dormir. Lá pelas nove, desci e tomei um café preto. Decidi não dar bola pro enjôo, para não deixar de fazer o passeio programado com Vivi.
Antes que ela chegasse, corri na esquina para observar um prédio que havia achado muito interessante. Tem uma fachada peculiar, com cruzes de malta e detalhes de decoração imitando o estilo manuelino. Rendilhado e cordas. Obviamente é uma edificação que abrigou alguma entidade lusa. Indago à volta, e um senhor me responde que era o antigo luso-esporte clube. Me agrada o rosa chá das paredes, em contraste com o branco das janelas e portas. Os umbrais são arredondados, em lugar do formato de ogiva, bem comum por aqui. As calhas também são uma graça. Trazem, na parte superior, o desenho da cruz de malta.
Defronte está um belo casarão, de 1909. Fachada sóbria. Enormes janelões com varandinhas em ferro fundido. Verde inglês. Há algo que me agrada muito no restauro de alguns prédios históricos aqui em Manaus. Um diálogo bem resolvido com o moderno. Como há em Lisboa. No prédio em questão, hoje sede do Centro de Artes da Universidade Estadual, a madeira de portas e janelas foi substituída pelo vidro. O efeito é bonito. Modernização sem descaracterizar muito.
Peguei Vivi no hotel e começamos nosso passeio a pé, pelo centro histórico. Descemos a Av. Eduardo Ribeiro e enveredamos por umas ruazinhas menores, até chegarmos ao Palacete Provincial. Essa caminhada pelo centro foi um misto de contentamento e frustração. O comércio cresceu desordenadamente por ali, à reboque da Zona Franca. O resultado é uma paisagem bastante poluída, sonora e visualmente. Muita sujeira na rua, esgoto correndo no meio-fio. Dezenas de camelôs nas calçadas, disputando espaço com os pedestres. Nada muito diferente do Recife. No entanto, a qualquer momento a pessoa pode ser surpreendida com a vista de belos sobrados, a maior parte do final do século XIX, embora também os haja mais antigos. Cada casa mais encantadora que a outra. Algumas com  detalhes que denunciam a influência inglesa. Charmosas varandas de ferro, com o acabamento do telhado em madeira rendilhada. Uma graça! Vimos uma caixa d’água linda. Exatamente assim. Com telhadinho e beiral dessa madeira trabalhada. Também há casas mais imponentes, com escadarias e balcões de pedra, de inspiração neoclássica. Dentre estas, quase todas viraram prédios públicos. Em muitas, funcionam escolas. Foram revitalizadas pelo projeto Belle Époque, do Robério Braga.
As marcas de um tempo em que o bom e o belo faziam mais sentido estão por toda parte, ainda que perdidas em meio à profusão de letreiros, cartazes, postes e fios de eletricidade. Aliás, essa é uma diferença expressiva entre Recife e Manaus. No Recife, os prédios históricos estão concentrados em áreas específicas da cidade. Fora dessas áreas, tudo é moderno. Raramente é possível surpreender edifícios históricos isolados. Recife, assim como Olinda, impressiona sobretudo pelo conjunto arquitetônico. Já em Manaus, os edifícios antigos perdem-se em meio ao caos. Estão cercados por frias armações de concreto, a maior parte de gosto duvidoso, e cheias de letreiros. Avistamos uma edificação com arquitetura dos anos 40 ou 50, espremida entre dois sobradinhos coloniais! Um crime. O fato é que quem for caminhando distraído é capaz de nem se aperceber das charmosas casas avarandadas, tamanho o vuco-vuco e a confusão. Porém, para os caminhantes atentos, cada trecho de uma rua, cada esquina cruzada pode revelar uma pérola, não só arquitetônica, mas histórica. São outros mundos, outros tempos, outras vidas encerrados naquelas enormes janelas de madeira. Produz-se, na sensibilidade do caminhante, um curioso efeito. O contraste com a confusão, a sujeira e a pobreza plástica do entorno, faz com que a visão inesperada de uma dessas casas, erguidas no princípio do século passado, ou no retrasado, funcione como um pequeno alumbramento. Triste é ver alguns sobrados convertidos em meras ruínas abandonadas. Dá uma dor no coração vê-los, assim, entregues a musgos e ervas daninhas.
O Palacete Provincial foi construído, no finalzinho do XIX, para ser uma residência e acabou passando às mãos do Estado. Seu penúltimo destino foi ser quartel da Polícia Militar. Foi abandonado pela PM e restaurado nos últimos anos, tornando-se um centro cultural que abriga vários museus e a Pinacoteca do Estado. A restauração é meio duvidosa. Inclusive as cores da fachada são de gosto questionável (as paredes são de um vermelho intenso e os umbrais de portas e janelas são amarelos). Os museus é que são legais. Eles têm, por exemplo, uma incrível coleção de numismática. Na Pinacoteca vimos um projetor de cinema que funcionava com carvão! E uma câmera fotográfica daquelas que demandavam pólvora para o flash. Pode ser preconceito meu, mas tenho de confessar que me surpreende a qualidade dos equipamentos culturais de Manaus. Tudo organizadíssimo, climatizado, com guias simpáticos e bem preparados. Creio que esses espaços estão melhor estruturados do que os do Recife. A pracinha em frente ao Palacete é uma graça. Super arborizada e com um belo coreto em estilo inglês, só que pouco sóbrio. Uma profusão de luminárias redondas e gradis muitos trabalhados conferem-lhe um certo ar afrancesado, rococó. Talvez o mais correto seja dizer, eclético. Super belle époque.
De lá, caminhamos até um outro centro cultural, na orla do rio Negro, chamado Usina Chaminé. Estava fechado. O prédio é bem bonito. Mais uma imponente construção do início do século passado. Tem uma grande chaminé ao lado, porque destinava-se a ser uma estação de tratamento de esgotos. A Usina fica em frente a um igarapé, já bem pertinho do rio Negro, propriamente dito. Do lado de lá, palafitas se amontoam, à beira da água imunda. As casinhas de madeira, paupérrimas, parecem trepadas umas nas outras. É um triste cenário. Do lado de cá talvez seja ainda pior. Alguns barquinhos, parados no meio do lixo flutuante, foram convertidos em casas fluviais. Há, também, umas duas casinhas flutuantes, que mal de pode distinguir em meio aos barcos e à sujeira. O cheiro, fétido, chega ao alto da murada, de onde observamos, tristemente, mulheres que lavam a roupa naquela água imunda. Uma delas, do alto do barco, recolhe uma lata com água, sabe-se lá para quê. Quem sabe se para cozinhar! Crianças brincando pelas margens. Uma mulher parece estar catando o lixo. A cena é desoladora. É com pesar que retomamos nosso passeio. Também começamos a sentir mais o calor. Meu enjôo volta com intensidade. Passamos pelo mercado municipal. Mais uma obra inglesa. Todo em ferro fundido. Devia ser uma coisa linda. No momento, quase não é possível avistá-lo. Sua frente está completamente tomada por barracas. A sensação visual de confusão e caos é grande. Mal se vislumbram as estruturas de ferro do telhado.
Mais adiante está o prédio da alfândega. Paredes brancas. Janelas e portas emolduradas por tijolos aparentes. Tem um ar distinto das outras construções de princípios do XX. Nem neoclássica, nem inglesa. Subimos a rua que nos leva à praça da Matriz. A igreja é muito sóbria. Lembra a Sé de Olinda. Traços retos. Branca com poucos detalhes em amarelo. Fechada. Não conseguimos ver o interior. Já não posso mais com o enjôo. Passamos numa farmácia. Compro um remédio e começamos a caminhar de volta para o hotel.

Depois da caminhada, ainda acompanhei as meninas ao restaurante, embora não fosse capaz de comer nada. Passei o resto do dia prostrada. Dormi profundamente à tarde. À noite tive um pouco de febre e uma forte dor-de-cabeça, inclusive sobre os olhos. Segundo Verônica, há uma possibilidade de que esteja com dengue. Será preciso aguardar o comportamento do meu organismo nos próximos dias.

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