Acordei, de madrugada, super enjoada. Não consegui mais
dormir. Lá pelas nove, desci e tomei um café preto. Decidi não dar bola pro
enjôo, para não deixar de fazer o passeio programado com Vivi.
Antes que ela chegasse, corri na esquina para observar um
prédio que havia achado muito interessante. Tem uma fachada peculiar, com
cruzes de malta e detalhes de decoração imitando o estilo manuelino. Rendilhado
e cordas. Obviamente é uma edificação que abrigou alguma entidade lusa. Indago
à volta, e um senhor me responde que era o antigo luso-esporte clube. Me agrada
o rosa chá das paredes, em contraste com o branco das janelas e portas. Os
umbrais são arredondados, em lugar do formato de ogiva, bem comum por aqui. As
calhas também são uma graça. Trazem, na parte superior, o desenho da cruz de
malta.
Defronte está um belo casarão, de 1909. Fachada sóbria.
Enormes janelões com varandinhas em ferro fundido. Verde inglês. Há algo que me
agrada muito no restauro de alguns prédios históricos aqui em Manaus. Um
diálogo bem resolvido com o moderno. Como há em Lisboa. No prédio em questão,
hoje sede do Centro de Artes da Universidade Estadual, a madeira de portas e
janelas foi substituída pelo vidro. O efeito é bonito. Modernização sem
descaracterizar muito.
Peguei Vivi no hotel e começamos nosso passeio a pé, pelo
centro histórico. Descemos a Av. Eduardo Ribeiro e enveredamos por umas
ruazinhas menores, até chegarmos ao Palacete Provincial. Essa caminhada pelo
centro foi um misto de contentamento e frustração. O comércio cresceu
desordenadamente por ali, à reboque da Zona Franca. O resultado é uma paisagem bastante
poluída, sonora e visualmente. Muita sujeira na rua, esgoto correndo no
meio-fio. Dezenas de camelôs nas calçadas, disputando espaço com os pedestres.
Nada muito diferente do Recife. No entanto, a qualquer momento a pessoa pode
ser surpreendida com a vista de belos sobrados, a maior parte do final do século
XIX, embora também os haja mais antigos. Cada casa mais encantadora que a
outra. Algumas com detalhes que
denunciam a influência inglesa. Charmosas varandas de ferro, com o acabamento
do telhado em madeira rendilhada. Uma graça! Vimos uma caixa d’água linda.
Exatamente assim. Com telhadinho e beiral dessa madeira trabalhada. Também há
casas mais imponentes, com escadarias e balcões de pedra, de inspiração
neoclássica. Dentre estas, quase todas viraram prédios públicos. Em muitas,
funcionam escolas. Foram revitalizadas pelo projeto Belle Époque, do Robério Braga.
As marcas de um tempo em que o bom e o belo faziam mais
sentido estão por toda parte, ainda que perdidas em meio à profusão de
letreiros, cartazes, postes e fios de eletricidade. Aliás, essa é uma diferença
expressiva entre Recife e Manaus. No Recife, os prédios históricos estão
concentrados em áreas específicas da cidade. Fora dessas áreas, tudo é moderno.
Raramente é possível surpreender edifícios históricos isolados. Recife, assim
como Olinda, impressiona sobretudo pelo conjunto arquitetônico. Já em Manaus, os
edifícios antigos perdem-se em meio ao caos. Estão cercados por frias armações
de concreto, a maior parte de gosto duvidoso, e cheias de letreiros. Avistamos
uma edificação com arquitetura dos anos 40 ou 50, espremida entre dois
sobradinhos coloniais! Um crime. O fato é que quem for caminhando distraído é
capaz de nem se aperceber das charmosas casas avarandadas, tamanho o vuco-vuco
e a confusão. Porém, para os caminhantes atentos, cada trecho de uma rua, cada
esquina cruzada pode revelar uma pérola, não só arquitetônica, mas histórica.
São outros mundos, outros tempos, outras vidas encerrados naquelas enormes
janelas de madeira. Produz-se, na sensibilidade do caminhante, um curioso efeito.
O contraste com a confusão, a sujeira e a pobreza plástica do entorno, faz com
que a visão inesperada de uma dessas casas, erguidas no princípio do século
passado, ou no retrasado, funcione como um pequeno alumbramento. Triste é ver alguns
sobrados convertidos em meras ruínas abandonadas. Dá uma dor no coração vê-los,
assim, entregues a musgos e ervas daninhas.
O Palacete Provincial foi construído, no finalzinho do XIX, para
ser uma residência e acabou passando às mãos do Estado. Seu penúltimo destino
foi ser quartel da Polícia Militar. Foi abandonado pela PM e restaurado nos
últimos anos, tornando-se um centro cultural que abriga vários museus e a
Pinacoteca do Estado. A restauração é meio duvidosa. Inclusive as cores da
fachada são de gosto questionável (as paredes são de um vermelho intenso e os
umbrais de portas e janelas são amarelos). Os museus é que são legais. Eles
têm, por exemplo, uma incrível coleção de numismática. Na Pinacoteca vimos um
projetor de cinema que funcionava com carvão! E uma câmera fotográfica daquelas
que demandavam pólvora para o flash. Pode
ser preconceito meu, mas tenho de confessar que me surpreende a qualidade dos
equipamentos culturais de Manaus. Tudo organizadíssimo, climatizado, com guias
simpáticos e bem preparados. Creio que esses espaços estão melhor estruturados
do que os do Recife. A pracinha em frente ao Palacete é uma graça. Super
arborizada e com um belo coreto em estilo inglês, só que pouco sóbrio. Uma
profusão de luminárias redondas e gradis muitos trabalhados conferem-lhe um
certo ar afrancesado, rococó. Talvez o mais correto seja dizer, eclético. Super
belle époque.
De lá, caminhamos até um outro centro cultural, na orla do
rio Negro, chamado Usina Chaminé. Estava fechado. O prédio é bem bonito. Mais
uma imponente construção do início do século passado. Tem uma grande chaminé ao
lado, porque destinava-se a ser uma estação de tratamento de esgotos. A Usina
fica em frente a um igarapé, já bem pertinho do rio Negro, propriamente dito.
Do lado de lá, palafitas se amontoam, à beira da água imunda. As casinhas de
madeira, paupérrimas, parecem trepadas umas nas outras. É um triste cenário. Do
lado de cá talvez seja ainda pior. Alguns barquinhos, parados no meio do lixo
flutuante, foram convertidos em casas fluviais. Há, também, umas duas casinhas
flutuantes, que mal de pode distinguir em meio aos barcos e à sujeira. O
cheiro, fétido, chega ao alto da murada, de onde observamos, tristemente,
mulheres que lavam a roupa naquela água imunda. Uma delas, do alto do barco,
recolhe uma lata com água, sabe-se lá para quê. Quem sabe se para cozinhar!
Crianças brincando pelas margens. Uma mulher parece estar catando o lixo. A
cena é desoladora. É com pesar que retomamos nosso passeio. Também começamos a
sentir mais o calor. Meu enjôo volta com intensidade. Passamos pelo mercado
municipal. Mais uma obra inglesa. Todo em ferro fundido. Devia ser uma coisa linda.
No momento, quase não é possível avistá-lo. Sua frente está completamente
tomada por barracas. A sensação visual de confusão e caos é grande. Mal se vislumbram
as estruturas de ferro do telhado.
Mais adiante está o prédio da alfândega. Paredes brancas.
Janelas e portas emolduradas por tijolos aparentes. Tem um ar distinto das
outras construções de princípios do XX. Nem neoclássica, nem inglesa. Subimos a
rua que nos leva à praça da Matriz. A igreja é muito sóbria. Lembra a Sé de
Olinda. Traços retos. Branca com poucos detalhes em amarelo. Fechada. Não
conseguimos ver o interior. Já não posso mais com o enjôo. Passamos numa
farmácia. Compro um remédio e começamos a caminhar de volta para o hotel.
Depois da caminhada, ainda acompanhei as meninas ao
restaurante, embora não fosse capaz de comer nada. Passei o resto do dia
prostrada. Dormi profundamente à tarde. À noite tive um pouco de febre e uma
forte dor-de-cabeça, inclusive sobre os olhos. Segundo Verônica, há uma
possibilidade de que esteja com dengue. Será preciso aguardar o comportamento
do meu organismo nos próximos dias.
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