segunda-feira, 7 de maio de 2012

À beira do caminho, de Breno Silveira: visão de uma leiga


O filme de Breno Silveira, À beira do caminho, exibido num sábado de Cine PE, deixou-me profundamente comovida. Com toda a justiça, foi o grande ganhador do festival. Por isso mesmo, surpreendeu-me quando, vasculhando a internet, li as críticas de alguns especialistas na sétima arte. Lá estava o filme qualificado de piegas, cafona e coisas do gênero. Até a atuação de João Miguel foi acidamente criticada. Como diz uma amiga: fiquei bege. Estavam eles falando do mesmo filme por mim assistido?! Quanta distância frente à minha própria experiência com À beira do caminho! Achei importante alertar o leitor deste texto para tal fenômeno. Inclusive porque, contrariamente ao senso comum, acredito que gosto se discute, sim.
A linha básica do roteiro até pode sugerir pieguice. Um caminhoneiro amargurado e um órfão em busca do pai se esbarram e empreendem, juntos, uma viagem pelas estradas do Brasil. Quando o filme começou, tive uma sensação de déja vu. Lembrei-me imediatamente de Central do Brasil e pensei: que falta de originalidade! (tal qual as críticas lidas). Conclusão precipitada a minha. À beira do caminho é um filme belíssimo, delicado, e conta histórias de perdas, dores e reencontros de modo absolutamente particular. É verdade: embalado pelas boas canções de Roberto Carlos, o filme tangencia a breguice, e tem precisamente o grande mérito de não cair nela, nem resvalar no melodrama. É um primor: de roteiro, de fotografia e, sobretudo, de interpretação. João Miguel está soberbo no papel de João. A dor  que lhe dilacera a alma e impossibilita a existência é vivida pelo ator de um modo que eu só poderia chamar de visceral. Sua casmurrice é autêntica. Machado de Assis o aplaudiria e talvez até lhe tivesse tomado emprestada alguma inspiração para compor seu Casmurro. Vinicius Nascimento, na pele de Duda -- cuja mãe morreu, e que parte para São Paulo, em busca de um pai que ele conhece por uma pequena fotografia P&B --, é uma figura muito cativante. Olhos expressivos, cílios longos, carisma quase irresistível. A teimosia afetuosa de Duda vai lentamente vencendo a rabugice de João. A dor de um é o espelho invertido da dor do outro. E é esse espelhamento que permite a João encontrar uma saída para seu desespero. Trata-se de um filme todo composto de sutilezas, que encontram perfeita expressão nos gestos contidos de João. Às vezes há um mero levantar de sobrancelhas, ou um cenho franzido, em lugar de uma linha de texto. E aí, realmente, João Miguel fez toda a diferença. Aliás, minha impressão foi exatamente oposta à de certo crítico, para quem o ator sentiu-se constrangido com o texto. No filme que eu vi, João Miguel estava inteiramente entregue a João. Se João tivesse existido na vida real, sua dor não seria tão intensa como a de João Miguel, neste filme.
Para concluir, preciso estabelecer uma última contraposição às críticas que me pareceram injustas com o filme de Breno Silveira. À beira do caminho não é uma imitação inferior de Central do Brasil. É outra coisa. Porém, se for para compará-los, à parte a grande admiração que tenho por Walter Salles Jr., para ser honesta comigo mesma, devo dizer que achei À beira do caminho um filme melhor. Para mim, Central do Brasil tem uma certa dimensão fabular. É um momento de transição numa espécie de percurso entre a realidade e o mito, que Walter Salles realiza entre Terra Estrangeira e Diários de Motocicleta. Subjacente à história de Dora e Josué existe um discurso sobre o Brasil. Trata-se de uma viagem de descoberta, seja de si mesmos, seja de um Brasil profundo (muito já se escreveu a respeito). A cidade grande, inóspita e desumana, contrapõem-se à autenticidade, ao colorido, à afetividade do Interior. São flagrantes a mudança de colorido e de abertura do plano de imagem quando Dora e Josué deixam o ambiente urbano e começam a adentrar o Brasil.
À beira do caminho não tem nada disso. O país é secundário, é um adorno, um pano de fundo. A viagem entre Juazeiro e São Paulo poderia se dar entre quaisquer dois pontos distantes do mapa-múndi A principal “paisagem” do filme é a boléia do caminhão de João, e o que ele mais vê à sua frente são as traseiras de outros caminhões, com as frases prontas tão típicas, penduradas ao pé das rodas. João e Duda são duas figuras ordinárias, profundamente humanas, universais. Eis um belo filme sobre a fragilidade da vida, do amor, da vontade humana. Não somos senhores dos nossos destinos. Mas precisamos aprender a ser mestres da nossa vontade, e a suportar o risco e o peso de amar.  Como diz o pequeno Duda, numa das cenas mais fofas do filme: A gente tem que ser que nem caminhoneiro; olhar sempre pra frente. Na minha percepção de leiga, À beira do caminho bem seria merecedor de uma indicação ao Oscar. Me representaria com muito orgulho.

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