Alguns sábados atrás fui jantar com um casal de amigos muito
querido. O encontro foi motivado pelo desejo mútuo de matar saudades e pôr a
conversa em dia. Além disso, é preciso dizer que Clarissa cozinha divinamente.
Portanto, eu estava muito feliz com a perspectiva da noitada. Chegando lá, vi mesa
posta para quatro. Para minha surpresa, daí a pouco chegaria um outro amigo
comum. Vinha acompanhado do seu filho. Gabriel tem 6 anos e é uma criança
absolutamente adorável. Como gosto muito de crianças, rapidamente me
familiarizei com ele e brincamos juntos durante boa parte da noite.
Além de todos os atrativos comuns às crianças –
espontaneidade, alegria, ingenuidade, imaginação, vivacidade – Gabriel tem
características cada vez mais raras entre seus pares. É uma criança doce e
obediente! Como qualquer pessoinha da sua idade, ele procura garantir seus
espaços e tenta satisfazer seus desejos, porém, quando contrariado, atende às
razões dos adultos e obedece! Sem bico, sem cara feia, sem choro, sem birra.
Fiquei absolutamente maravilhada com Gabriel. E dei parabéns efusivos ao pai
pela educação (infelizmente) extra-ordinária do filho. Cumprimentos extensivos
à mãe, claro, que não conheço. Digo infelizmente, porque essa deveria ser a
regra. Não deveria haver nada de fora do comum no comportamento de Gabriel.
A infância vem mudando vertiginosamente. Isso é inegável e inevitável.
Como todas as demais fases da vida, a infância é socialmente construída. Seus
sentidos, valores, sua importância e todo o leque de comportamentos tidos por adequados
e inadequados a esta fase do desenvolvimento humano variam conforme o tempo e o
lugar. Ser criança no Recife, hoje, é algo distinto de ter sido criança na
Europa Medieval, ou do que é ser criança entre os Kayapó. O fato é que o
sentido e as vivências da infância estão mudando mais uma vez, nas nossas
sociedades ocidentais. Entre outras mudanças, a infância tende a sofrer um
encurtamento. Não quero emitir juízos de valor a respeito. A mudança faz parte
da dinâmica social. Porém, tenho, sim, um problema com certas tendências que se
vão cristalizando.
Vários analistas já vêm apontando o excesso de liberdades
concedidas às crianças, e a concomitante dificuldade dos pais de estabelecerem
limites e controlarem seus filhos. Muitas crianças vão se tornando pequenos
tiranos. Cheios de vontades, não conseguem ouvir um não sem que isso desencadeie
uma crise pontuada por cara feia, choro, gritos, esperneio ou outras cenas piores.
O desfecho, com frequência, consiste em pais cedendo às vontades infantis. Ou
seja, enquanto tiverem seus desejos satisfeitos, muitas crianças parecem anjos
de candura, mas basta uma pequena contrariedade e o céu vem abaixo. Qual é o
efeito mais preocupante dessa realidade? Ora, a infância, independentemente do
contexto ou de sua duração, é sempre um período de preparação para a vida
adulta. É o início do processo de aprendizagem social, quando vamos adquirindo
as ferramentas necessárias ao desempenho de papéis que exerceremos ao longo da
vida. Cada vez mais as ciências, nas suas disciplinas biológicas e humanas, vão
enfatizando a importância das primeiras experiências como conformadoras das
pessoas que viremos a ser, quando adultos. Portanto, a infância é o momento
para aprendermos e incorporarmos valores como respeito, generosidade,
solidariedade, compromisso, responsabilidade. Quando os pais não conseguem
impor limites e dizer não a seus filhos, que adultos estão formando? Essa é a
questão que angustia e preocupa. Os indícios são mesmo assustadores: alunos
indisciplinados, professores abandonando o magistério por não conseguirem mais obter
respeito na sala de aula, jovens que saem pelas madrugadas agredindo domésticas
em pontos de ônibus, ou ateando fogo em mendigos debaixo dos viadutos. A lista de
comportamentos inadequados, abusivos e, inclusive, criminosos poderia ser
exaustiva.
Gostaria muito de poder acreditar que os gabriéis são a
regra (e devo registrar que para minha alegria tenho alguns sobrinhos nesse perfil). No entanto,
vejo multiplicarem-se os exemplos contrários. Pior, conheço muita gente boa,
pais bem preparados, pessoas íntegras e sensatas, munidos de concepções
acertadas sobre educação, e que diante do choro e da vontade imperativa de seus
pimpolhos, acabam por sucumbir. Cada um que acenda sua luz amarela. O mundo em
que nossas crianças viverão há de ser o reflexo delas mesmas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário