terça-feira, 20 de março de 2012

Diário de Viagem: Manaus, parte 3

Manaus, 28 de janeiro

Ainda que de carro, transito por novas áreas do centro. Belas praças, cheias de verde. Encantadoras. Uma outra cidade vai se revelando aos meus olhos. Sinto-me acolhida e contente. Experiência bem distinta da primeira.
Parênteses: A Manaus moderna, sintonizada com o Brasil e o mundo, por razões óbvias, me desagrada. Me soa a Ribeirão Preto, uns 15 anos atrás. Ou seja, poderia ser qualquer cidade em desenvolvimento, em qualquer lugar do país (cheia de novos ricos, deslumbrados com o poder do dinheiro). Encanta-me é a Manaus das praças arborizadas, que descubro aos poucos, a Manaus dos ingleses e mesmo a do “brilho falso” da borracha. Ao menos há ali ecos de uma história densa e trágica.
Sento-me num banquinho de madeira, em charmoso parque, defronte ao Palácio Rio Negro. Belo cenário. À minha frente, uma escadaria de pedra e alvenaria, em estilo neoclássico, com duas estátuas brancas na parte mais elevada da mureta. Uma delas parece fazer alusão à Maçonaria. Não tenho certeza. A distância não me permite ver os detalhes com precisão. Por entre árvores frondosas (lindas, parecem umas samambaias gigantes, encaixadas em altíssimos troncos) avisto os fundos do palácio. O parque onde estou é uma das áreas de igarapé urbanizadas pelo último governo. Pessoas fazem caminhada. Também há eventuais transeuntes, evitando o tumulto das calçadas. Estamos no coração de Manaus. Por isso mesmo, a tranquilidade e a paz desse lugar são surpreendentes. O trinado dos passarinhos, bem próximo, faz contraponto ao ruídos dos motores, oriundos da pista, poucos metros acima. Os bancos de madeira estão dispotos em caramanchões inspirados na arquitetura inglesa de finais do XIX. Aliás, é fortíssima a presença desses traços ingleses nas construções, antigas e novas, da cidade.
Mais ao longe avisto uma enorme e imponente bandeira do estado do Amazonas. Ironia: urubus, aos montes, parecem voar ao seu redor, prestando-lhe reverência. Ilusão de ótica, certamente. Algo pútrido, situado na direção do mastro, deve atrair as aves. Serão igarapés ainda não urbanizados, onde o lixo, abundante, convive com crianças subnutridas???
Faço a visita guiada ao Palácio Rio Negro. A construção data de princípios do XIX (como quase toda a paisagem urbana que vale a pena apreciar por aqui). O conjunto é imponente. No entanto, há algo dissonante no estilo neoclássio grandiloquente (chamam-no estilo eclético; predomina a inspiração greco-romana). Imagino aquele palácio, com suas colunas e estátuas gregas, no meio da mata, cento e dez anos atrás... Me encanto mesmo é com a varanda, nos fundos, em ferro trabalhado, verde musgo, estilo inglês. Parece-me bem mais charmosa que a fachada frontal, clássica e imponente. A varanda é menos pretensiosa e mais integrada à paisagem de entorno. O guia aponta-me um pátio, logo abaixo, onde carros estão estacionados. Ali, no início do século passado, havia um pier, onde ancoravam barcos chegados pelo igarapé. O palacete do barão da borracha, alemão emigrado, tinha aos fundos um bracinho do rio Negro, justo esse igarapé que hoje compõe o cenário do parque Senador Jefferson Peres (justa homenagem a um raro político de bem). Fecho os olhos e fico imaginando o cenário: a varanda inglesa, as árvores habitadas por inúmeros animaizinhos e o igarapé, de águas límpidas e travessas. Cenário tão diferente do igarapezinho domesticado e turvo de sujeira que hoje corta o parque – cartão-postal e marca de governo. Outro charme da edificação: o teto tem uma espécie de friso de madeira esculpida, vazada, por onde entravam, outrora, luz e ar. Agora, o caminho da ventilação natural foi tapado, porque os split tornaram desnecessária a engenhosa e bela estratégia arquitetônica, que permitia um melhor convívio com o clima tropical (Gilberto Freyre teria adorado esses frisos). A escadaria do salão principal é bela, toda em madeira encaixada. Firme em seu lugar por mais de um século, sem um único prego.
À noite, eu, Vivi e Guida assitismos a um concerto de Câmara, no Teatro Amazonas. Incrível experiência. Emocionante. A primeira peça foi  o ‘Divertimento para Marimba e Orquestra de Cordas’, composto em 1973 pelo carioca Radamés Gnatalli. Eu nunca tinha visto ou ouvido uma marimba. O instrumento é belo, como objeto. Assemelha-se a um xelofone, só que com tubos de ferro para baixo. Visto da platéia, parece uma enorme flauta andina, em metal, assentada sobre quatro pés. Exige uma coordenação motora incrível. Em cada mão, o maestro e instrumentista segurava duas baquetas(????), manejadas ao mesmo tempo!!! Pareceu-me obra quase miraculosa tocar aquilo com tanta habilidade. A segunda peça foi um concerto de Béla Bartók, para cordas e percussão. Lindíssimo. Pela primeira vez escutei Bartók no teatro. Sempre tive dele a iamgem de um Villa-Lobos húngaro. Fiquei muito emocionada. E o cenário era, obviamente, precioso. Eu já não guardava na memória as nuances do charme do teatro. Formato típico de lira. O teto é extraordinário; de todos, o detalhe mais belo, junto com o revestimento externo da cúpula. No seu centro, há uma espécie de arabesco em metal, folheado a ouro, de onde pende o lustre. Esse arabesco, em forma de losango, divide o teto em quatro partes. Em cada uma delas, uma cena com motivo clássico (uma das cenas está apagada; o que se vê é apenas o fundo azul; provavelmente a restauração não conseguiu resgatar a pintura original; tenho de reconhecer que esse tipo de dissonância, causa-me satisfação; relativiza a perfeição do lugar, talvez...). Nas colunas que fazem o entorno da platéia e demarcam as frisas, máscaras inspiradas no teatro grego encimam escudos com nomes de poetas e filósofos: Schiller, Goethe, Aristóteles... As caretas causam uma certa sensação de desconforto e estranhamento. Não sei bem porque. Pesam no ambiente. Feita a ressalva, reitero que o teatro é belo. De fora é que ele me impressiona menos. Sinto o mesmo misto de encantamento e estranhamento experimentado frente ao Palácio Rio Negro. Há algo de dissonante naquele portento neoclássico junto à igreja gótica de São Sebastião e ao despretensioso casario colonial da praça. A cúpula é que é linda e sedutora. Tampouco ela combina muito com o prédio salmão de colunas e frisos brancos. Mas é tão bela, que rouba a cena e eleva o conjunto da obra. Como era noite de espetáculo, as luzes internas da cúpula estavam acesas. Assim é possível ver-se melhor o efeito do círculo de vitrais, dividindo a cúpula em duas metades – a que se encaixa no telhado, e a que aponta para o céu. Detalhe funesto: puseram, por dentro dos vitrais, umas luzinhas azuis que piscam intermitentemente! Feito luzes de decoração de Natal. Um horror.
Após uma sopa quentinha e um delicioso creme de cupuaçu, voltei para “casa” leve e contente.

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