sábado, 24 de março de 2012

A Era de Narciso e a liberdade da cultura


Duas cenas contemporâneas. Semana passada fiquei sabendo de uma moça que correu para uma clínica de imagem ao observar ligeira reentrância numa de suas nádegas. Só sossegaria depois de o radiologista assinar, com firma reconhecida em cartório, um diagnóstico negativo de celulite. Poucos anos atrás, minha irmã me surpreendeu ao telefone com a informação de que uma amiga em comum, mulher linda, magra e malhada, havia feito uma lipoaspiração. Como assim???!!! Onde estavam essas gorduras sobrando que eu nunca havia visto? Ah! Eram uns pneuzinhos impossíveis de se eliminar na malhação. Diante do meu juízo sobre a insensatez de tal procedimento cirúrgico, ouvi uma resposta categórica: Se ela não se sentia bem com o seu corpo, tinha todo o direito! Claro que tinha. A questão não é de direito à felicidade, mas de concepção a esse respeito: o que leva uma mulher bonita, assediadíssima, magra (sob qualquer ponto de vista), a não se sentir bem com um 1cm de pneuzinho na altura do quadril???!!! Eu sou a louca ou está todo mundo enlouquecendo? Ainda desconheço a resposta para tal pergunta. Às vezes tenho a sensação de que sou eu a figura fora do lugar.
A reportagem de capa da Veja desta última semana (As leis da atração) parece confirmar: a desajustada sou eu. A busca da beleza e da perfeição nos parceiros amorosos faz parte do processo de evolução, é um mecanismo da seleção natural, logo, estão explicados e justificados os dois exemplos relatados acima: instinto de fêmea para garantir a conquista do melhor reprodutor possível. Pela mesma lógica, nada existe de errado com os casais que proliferam na camada A da nossa sociedade: homens de 70 anos ou mais, donos de gordas contas bancárias, com mulheres de no máximo 30, corpos esculturais, aperfeiçoados em horas diárias de labuta muscular, e feições indiscutivelmente belas, cabelos lisos, sedosos, brilhantes. Muito pelo contrário. Ambos, homens e mulheres, seguem apenas uma espécie de pragmatismo evolucionário, ou evolutivo.
Tudo bem. A herança genética tem um peso inegável no comportamento humano. Todavia, ainda sou dos antropólogos que reputam um peso maior à cultura que à biologia. Valores, de qualquer espécie ou em qualquer domínio, são culturalmente construídos. As próprias noções de beleza e perfeição são mutáveis, seja no tempo, seja no espaço. Em lugar de naturalizarmos esse culto a um certo padrão de beleza (cinturas finas, coxas grossas, bundas arrebitadas, peitos fartos, cabelos lisos e compridos, no caso das mulheres, e músculos salientes, barriga tanquinho, ombros largos, estatura elevada, no caso dos homens), gostaria de chamar a atenção para o fato de que há características atitudinais tão ou mais importantes no mercado das relações amorosas. Ainda me remetendo à reportagem da Veja, noto que nos casos desviantes em relação ao padrão biológico mais propício à seleção natural, apontados pela própria revista, são atitudes e posturas os elementos buscados e valorizados pelas parceiras – com destaque para duas das maiores lideranças políticas mundiais, os presidentes Obama e Sarkosy. E aí, sim, acho que adentramos um terreno menos pantanoso. Homens que oferecem a sensação de segurança são mais sedutores. Ok. Estou cada vez mais convencida disso. Atente-se, porém, que homens baixinhos, magros e feios também podem transmitir essa sensação. Quanto às mulheres, não seriam justamente qualidades de cuidadoras as mais atraentes, quando se pensa em relacionamento, e não apenas na atividade sexual? As feministas que me perdoem a franqueza.
Em todo caso, me parece que em cultura, tudo que não é pode vir a ser e vice-versa. Se a natureza nos puxa para um lado, a cultura pode nos levar para outras direções. Se a natureza nos leva a valorizar a aparência, a cultura nos permite apreciarmos a essência. Eis um tipo de liberdade que só a espécie humana tem.

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