quarta-feira, 21 de março de 2012

Hécuba e o Brasil


A soberana de Tróia, esposa do falecido rei Príamo, é reduzida à humilhação do cativeiro, após a derrota para os gregos, na talvez mais famosa guerra da História. Hécuba, a rainha feita escrava, amarga não somente as penas do cativeiro, mas a incomensurável dor de perder seus filhos. Eis o enredo da peça homônima, encenada no último final de semana aqui no Recife. A montagem é lindíssima. Os recursos cênicos, até econômicos, são usados com tanto bom-gosto, criatividade e talento, que a peça é puro deleite estético. O figurino é um dos pontos fortes da montagem dessa milenar tragédia, agora assinada por Gabriel Villela e Walderez de Barros. A combinação de elementos andinos, tecidos coloridos, colares e bonecas, com as máscaras de Shicó do Mamulengo, remetendo ao próprio teatro grego, é de um resultado impressionantemente belo. A linguagem corporal, a música, o coro cantando “em grego” (???), tudo se encaixa de tal modo que cada fala, gesto e ação adquire grande força expressiva. As interpretações são igualmente intensas, sentidas, impactantes. A Hécuba de Walderez é comovente, pura dor, muito mais que ira. E ainda que Eurípedes nos apresente a face aterradora e torpe da vingança (qualquer assassinato é incompatível com a dignidade humana), não há como evitar uma inquietante indagação: que mãe não seria capaz de transformar-se em monstro impiedoso quando a vida de um filho lhe é roubada pelo motivo mais vil? Polimestor, soberano da Trácia, antigo aliado de Príamo, mandara matar seu hóspede, Polidoro, filho de Hécuba, de modo a ficar com o tesouro de Tróia. Apelando ao senso de Justiça de Agamêmenon, Hécuba consegue executar sua vingança, levando as fiéis troianas a matarem os dois filhos de Polimestor e a perfurarem as pupilas do rei traidor. Dentre as muitas questões suscitadas pela peça, uma cena em particular ficou reverberando no meu espírito. Cego, Polimestor pede, ele próprio, Justiça a Agamêmenon, pronunciando um eloquente discurso em sua própria defesa, no qual procura justificar o assassinato de Polidoro por meio de intenções pretensamente nobres. A resposta de Hécuba é incisiva: belas palavras não devem ser usadas para justificar atos vis. Entre os atos e as palavras são os primeiros a medida mais segura para ajuizar o valor de uma pessoa. Indignada, Hécuba acrescenta, à preciosa e irônica lição: belas palavras só deveriam ser usadas para sublinhar atos nobres. Saí do teatro pensando no Brasil. Se esta fosse uma espécie de lei natural da polis, tendo por consequência imediata a aniquilação dos infratores, nosso Planalto Central seria escassamente povoado! Nossas instituições seriam mais sólidas e a Justiça teria para nós palpabilidade e sentido, em lugar de parecer-nos quimera ou simples engodo.

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