sexta-feira, 16 de março de 2012

O Brasil como escolha

Faz tempo que as instituições e vida política deste país me causam indignação, nojo e, sobretudo, uma profunda tristeza. Quase todos os dias, quando confrontada com o noticiário televisivo ou impresso, penso com meus botões que o Brasil não tem jeito mesmo. Charles de Gaulle é que estava certo: não somos um país sério, e, pelo andar atual da carruagem, nos afastamos celeremente de qualquer possibilidade de um dia virmos a sê-lo. Por isso, não tenho como recriminar nossos compatriotas que, após alguma temporada vivendo fora do Brasil, seja na Europa, seja nos Estados Unidos, ou mesmo no hermano Chile, começam a aspirar a uma mudança definitiva de ares, ou se decidem de imediato a adotar uma nova vida, em paragens mais “civilizadas”. Impossível não reconhecer a sedução de sociedades onde o cotidiano ocorre sem grandes sobressaltos, onde tomar um ônibus para chegar ao trabalho é uma atividade corriqueira, posto ser organizada, ordeira, regular, ou seja, algo muito distante da batalha inglória, estressante e imprevisível em que converteu o uso do transporte público, em qualquer grande cidade brasileira. Imagine-se a maravilha de andar pelas ruas sem olhar para os lados o tempo todo, desprovido do medo de ser assaltado ou de tornar-se vítima de uma bala (perdida ou com endereço); ou a tranquilidade de colocar uma carta no correio e ter a certeza de que ela chegará a seu destino; ou ainda a delícia de dirigir em estradas bem pavimentadas, sinalizadas, logo, seguras e confortáveis. E o que dizer da satisfação de sentir que cada tostão pago em taxas e impostos está sendo bem empregado, pois a contrapartida em termos de educação pública e saúde pode ser vivenciada no seu dia-a-dia?
Enfim, compreendo perfeitamente a sedução de sociedades onde cada cidadão tem ciência dos seus direitos, mas também se empenha em cumprir com seus deveres, onde não há engraçadinhos tentando furar filas; onde jovens espertalhões -- e plenamente saudáveis -- não estacionam nas vagas para idosos e deficientes; onde ninguém tenta se valer de um primo ou conhecido para conseguir um empréstimo num banco oficial a taxas camaradas, ou para furar a fila da ressonância magnética no hospital público; onde as pessoas não conversam no cinema e nem saem dando cotoveladas nos outros para conseguirem subir no ônibus antes de todo mundo.
Reconheço que nosso cotidiano no Brasil não é fácil. Na realidade, é frequentemente desgastante, frustrante, estressante e todos os “antes” que se possa lembrar. No entanto, eu mesma não poderia viver em outro lugar do mundo. Morei seis anos e meio na Califórnia, mais precisamente, na Baía de São Francisco (Bay Area), que é o melhor lugar dos Estados Unidos para qualquer estrangeiro morar. A cidade e seu entorno são deslumbrantes. Os americanos da Bay Area são normalmente pessoas abertas, progressistas, descontraídas, hospitaleiras. E gente do mundo inteiro desfila por lá, usando seus sáris, burcas, chapéus de palha em forma de cone, biquínis, ou qualquer outro adorno étnico-cultural. A atmosfera é de cordialidade, entendimento, celebração da diversidade. Berkeley, a universidade onde estudei, é um sonho para qualquer acadêmico. Só a biblioteca seria motivo suficiente para um intelectual decidir se mudar de mala e cuia pra lá.
Fui muito feliz nos EUA e sou muito agradecida à cidade que me acolheu, aos amigos conquistados, à Universidade incrível onde concluí minha formação acadêmica. Porém, devo confessar que o último ano e meio em Berkeley já me pesou, afetivamente. Comecei a sofrer intensamente de saudades e a contar os dias restantes até meu regresso definitivo ao Brasil. Pouco antes de voltar, recebi uma proposta quase irrecusável para trabalhar nas terras do Tio Sam. Não era na Bay Area, mas ainda assim, tratava-se de uma cidade universitária charmosíssima, nas montanhas de estado vizinho. No último minuto, recusei o emprego. Senti que não poderia viver minha vida longe do Brasil, que não aguentaria a saudade, seria fatalmente vencida pelo banzo.
Quando finalmente depositei minha tese e pude voltar ao Brasil, não cabia em mim mesma de tanta felicidade. Meus primeiros dias em casa foram de pura alegria. Comecei a trabalhar rapidamente e logo já tinha minha rotina reestabelecida. Quando conhecidos e amigos me perguntavam como estava indo a “readaptação” eu me surpreendia. Como assim? Que readaptação? Eu pertenço a isso aqui. Esse é o meu lugar, desde sempre. Por que eu precisaria me readaptar ao que, na verdade, sempre carreguei comigo?
Já lá se vão quase seis anos desde que eu voltei ao Brasil. Desde então, devo confessar que muitas coisas ruins aconteceram. Minhas ilusões ideológicas se desmancharam como castelos de areia, vi minhas convicções políticas virarem de ponta cabeça, me decepcionei e sofri muito sendo obrigada a reconhecer o cenário de terra arrasada em que se transformaram as nossas instituições políticas. No entanto, meu amor pelo Brasil não sofreu nenhum abalo. Quando as pessoas me perguntam se eu me arrependo de ter voltado pra cá, de não ter aceito o tal emprego, respondo com a mais profunda convicção que eu não só tomei a decisão certa, mas a única possível para mim. E costumo contar, então, dois episódios sucedidos logo do meu retorno. O primeiro consistiu em que um dia, ao entrar no elevador do meu prédio, senti um perfume absurdamente forte de: abacaxi! O elevador estava vazio. Só estávamos eu e o rastro da fruta que ali fora transportada. Talvez só quem viveu em países temperados – onde nossas frutas tropicais não cheiram!!!! -- consiga compreender a emoção que me tomou. Eu não conseguia conter nem as lágrimas, nem a alegria de me sentir inebriada com o perfume de um abacaxi! O segundo caso, passou-se numa cidade da região metropolitana de João Pessoa. Eu havia ido fazer um trabalho à noite, numa sala de reuniões situada na avenida mais movimentada do lugar. Cheguei, verifiquei se estava tudo em ordem e como teria uma longa noite de trabalho pela frente, resolvi comer alguma coisa. A fome já apertava. Andei alguns metros e vi uma barraquinha de tapioca. Pedi uma tapioca e perguntei se não havia café. Infelizmente, não havia. Não sei se terá sido minha cara de desapontamento, o fato é que a senhora me disse: Não se preocupe, moro aqui perto e vou mandar minha filha passar um cafezinho pra você. Dentro em pouco, chega o copo de café fresquinho, cheiroso e fumegante. Fiz meu lanche deliciada. Na hora de pagar, a senhora se recusou a me cobrar o café. Me despedi comovida. Lembro-me ter pensado comigo mesma: Eis porque eu voltei e viverei aqui para sempre.
Quando terminou seu Mestrado em Columbia, Gilberto Freyre foi assaltado por dúvidas aflitivas. Seus professores e conselheiros, dentre eles o então Embaixador Oliveira Lima e o Prof. Andrew Armstrong, insistiam em que ele ficasse nos Estados Unidos, pois ali, escrevendo em língua inglesa, seu talento e genialidade teriam muito maiores possibilidades de expressão e reconhecimento. Jovem de 23 anos, Gilberto hesitava. Amigos também lhe diziam que caso quisesse mesmo voltar ao Brasil, ao menos fosse para o Rio de Janeiro, ou para São Paulo. Tudo menos enterrar-se na província pernambucana. Quando finalmente tomou uma decisão, Gilberto escreveu para Oliveira Lima dizendo algo mais ou menos assim: “Decidi voltar para o Brasil, e mais especificamente para o Recife, pois esse é o lugar do mundo onde posso ser mais verdadeiramente eu mesmo”. Ao ler essa frase, justamente quando estava concluindo minha tese e me preparando para voltar para casa, encontrei nela a expressão mais perfeita do meu próprio sentimento em relação ao Brasil. Não poderia viver na Bay Area ou em qualquer outro lugar do mundo fora do vasto território tupiniquim, simplesmente porque esta é a porção do mundo onde posso SER mais plenamente.
Eu falo alto, gesticulo muito, sou super afetuosa, adoro abraçar, beijar, fazer cafuné, tocar as pessoas, olhar no fundo dos olhos. Gosto do contato espontâneo das pessoas nas filas, nos coletivos. Aprecio odores, sabores e cores fortes, vivos, intensos. Aliás, só concebo um jeito de viver a vida: intensamente. Gosto de dançar, de sentir o suor escorrendo pelo corpo enquanto meus braços, pernas e ancas se movem ritmados, ao som de alfaias de maracatu, ou dos acordes metálicos de um frevo. Aprecio o riso franco e frouxo numa mesa de bar. Adoro sentir o sol queimando a minha pele, num sábado de praia lotada. Me alegro com o simples pensamento de que meus amigos estão ao alcance de um simples telefonema, e de que a qualquer hora do dia ou da madrugada posso contar com eles, de que posso visitá-los sem protocolos e sem aviso prévio. Gosto até do fato de que nossa amizade implica tanta intimidade que nos damos o direito de nos metermos na vida uns dos outros (de vez em quando), sempre com as melhores intenções e sentimentos. Fico feliz, muito feliz, de ter meus pais e irmãs pertinho de mim e de poder compartilhar com eles todos os momentos da minha vida. Adoro os sentidos brasileiros de família, amizade e privacidade (certamente promíscua e invasiva para padrões anglo-saxões). Suspeito de que quando eu nasci minha babá enterrou meu umbigo bem enterradinho debaixo de alguma gameleira. E é por isso, e porque sou assim, exuberante -- como diz um amigo muito querido -- que mesmo reconhecendo os encantos da civilidade, não posso viver em terras sem selo brasileiro.

Um comentário:

  1. Val:que bom saber que você afinal aderiu à blogsfera, ou coisa que o valha. Como previa, seu blog está à altura dos melhores que leio. A única coisa que lastimo é o fato de saber que você é mais uma concorrente, e das melhores. Mas o prazer de a ler se sobrepõe à convicção indesejável de que você me roubará parte dos poucos leitores que amealhei depois de mais de dois anos no batente. Comecei por este texto e mais tarde passarei aos demais. Beijos e boas vindas,
    Fernando.

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