O princípio e a intenção são justos e nobres. As políticas
de cotas raciais têm por mote corrigir injustiças históricas, fazer frente a um
passado de atrocidades cometidas contra as populações negras escravizadas, no
Brasil, durante quatro séculos. Intencionam, principalmente, diminuir as
desigualdades raciais e combater o racismo. Quem pode ser contra tais
objetivos? Qualquer pessoa com um mínimo de sentimento de solidariedade e
justiça social abraça de bom grado tais causas. É ainda indiscutível que o
Brasil só será um país bom de se viver, efetivamente, quando tivermos sido
capazes de reduzir a patamares mínimos esta e outras desigualdades. Por essas
razões, é tão fácil demonizar todos aqueles que tentam argumentar contra as
políticas de cotas raciais. O caminho mais óbvio e frequentemente utilizado é
desqualificar as vozes contrárias, rotulando-as de reacionárias, conservadoras,
elitistas etc. Eis o que em retórica se chama falácia da autoridade. Quem não é
vítima do racismo e da desigualdade racial não tem o direito de se pronunciar
sobre o assunto (especificamente se for contrário à política de cotas). Os
argumentos adversos nem chegam a ser examinados, nem muito menos debatidos,
visto seus emissores não merecerem crédito, apenas desprezo.
Esta semana o STF deve pronunciar-se sobre a política de
cotas raciais. Espera-se que a Suprema Corte expresse alguma razoabilidade e
consiga, de fato, discutir o tema,
antes de emitir um parecer. Talvez o princípio constitucional da isonomia
encerre a questão. Afinal, nossa Lei Magna não admite que o Estado estabeleça
distinções de qualquer natureza entre os cidadãos. Eis um argumento
suficientemente forte para colocar em cheque, do ponto de vista jurídico, as
políticas de cotas raciais. Há vários outros, merecedores de entrar na pauta de
uma desejável discussão nacional. Note-se bem que estou advogando pelo direito de
discutirmos, de fato e honestamente,
esse tema, que considero crucial em termos de nosso projeto de nação. O Brasil
do futuro está sendo definido hoje.
Para começar, então, com o princípio da isonomia,
imaginem-se dois meninos, moradores da favela do Coque, uma das principais
zonas de risco do Recife, com problemas graves de drogas e criminalidade.
Chamam-se Pedro e João. Pedro é negro, tataraneto de escravos. João é branco,
de olhos azuis, embora também tenha um pé na senzala; um aventureiro holandês
emprenhou uma escrava e legou a João a cabeleira cor de milho e as contas dos
olhos. Pedro e João são vizinhos. Estudaram nas mesmas escolas públicas
xexelentas, com teto caindo, carteiras sem braço e professores desestimulados e
mal preparados. Os pais dos dois são semi-analfabetos, vivem de biscates, as
mães são empregadas domésticas. A despeito das condições adversas, conseguiram,
milagrosamente, manter os dois amigos longe da vida louca. João e Pedro viram muitos de seus companheiros de
infância morrerem por conta do crack. Às dezenas eles sucumbiram, quando a vida
ainda era uma promessa, vítimas do vício ou das dívidas não pagas. Mantidos sob
o rígido controle familiar, João e Pedro escaparam às estatísticas sinistras.
Sob estímulo paterno, sempre foram estudiosos e estavam entre os primeiros
alunos da classe. Chega, então, o momento de prestar vestibular. Os dois
estudam loucamente, porém, trata-se de luta inglória. Falta-lhes a base. Não
podem concorrer com os Tiagos e Andrés, formados nos bancos das melhores
escolas particulares do Recife. Suas notas são insuficientes para garantir o
acesso à universidade pública. Quando a infame lista é publicada, João chora o
futuro desperdiçado. Chora os sonhos, enterrados precocemente, de uma vida
melhor para si e sua família, que tanto investira nele. Pedro tem mais sorte. A
pele negra pode evitar o infortúnio que atingiu João. Pedro se inscrevera na
política de cotas. Selecionado por uma comissão de doutos professores, a partir
de sua fotografia, vê um futuro promissor descortinando-se à sua frente. E
agora? Como Pedro vai olhar o amigo João nos olhos? Em nome exatamente de quê,
João merece ficar condenado a reproduzir a vida miserável de seus antepassados,
negros e brancos, ao passo que a Pedro se garante a oportunidade de sair de uma
situação de exclusão? O exercício hipotético é facilmente constatável na
realidade das favelas brasileiras. E expõe o mais gritante dos paradoxos das
políticas de cotas: é justo corrigir uma injustiça social gerando outra?
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