domingo, 22 de abril de 2012

Cotas raciais: uma reflexão (parte 1)


O princípio e a intenção são justos e nobres. As políticas de cotas raciais têm por mote corrigir injustiças históricas, fazer frente a um passado de atrocidades cometidas contra as populações negras escravizadas, no Brasil, durante quatro séculos. Intencionam, principalmente, diminuir as desigualdades raciais e combater o racismo. Quem pode ser contra tais objetivos? Qualquer pessoa com um mínimo de sentimento de solidariedade e justiça social abraça de bom grado tais causas. É ainda indiscutível que o Brasil só será um país bom de se viver, efetivamente, quando tivermos sido capazes de reduzir a patamares mínimos esta e outras desigualdades. Por essas razões, é tão fácil demonizar todos aqueles que tentam argumentar contra as políticas de cotas raciais. O caminho mais óbvio e frequentemente utilizado é desqualificar as vozes contrárias, rotulando-as de reacionárias, conservadoras, elitistas etc. Eis o que em retórica se chama falácia da autoridade. Quem não é vítima do racismo e da desigualdade racial não tem o direito de se pronunciar sobre o assunto (especificamente se for contrário à política de cotas). Os argumentos adversos nem chegam a ser examinados, nem muito menos debatidos, visto seus emissores não merecerem crédito, apenas desprezo.
Esta semana o STF deve pronunciar-se sobre a política de cotas raciais. Espera-se que a Suprema Corte expresse alguma razoabilidade e consiga, de fato, discutir o tema, antes de emitir um parecer. Talvez o princípio constitucional da isonomia encerre a questão. Afinal, nossa Lei Magna não admite que o Estado estabeleça distinções de qualquer natureza entre os cidadãos. Eis um argumento suficientemente forte para colocar em cheque, do ponto de vista jurídico, as políticas de cotas raciais. Há vários outros, merecedores de entrar na pauta de uma desejável  discussão nacional. Note-se bem que estou advogando pelo direito de discutirmos, de fato e honestamente, esse tema, que considero crucial em termos de nosso projeto de nação. O Brasil do futuro está sendo definido hoje.
Para começar, então, com o princípio da isonomia, imaginem-se dois meninos, moradores da favela do Coque, uma das principais zonas de risco do Recife, com problemas graves de drogas e criminalidade. Chamam-se Pedro e João. Pedro é negro, tataraneto de escravos. João é branco, de olhos azuis, embora também tenha um pé na senzala; um aventureiro holandês emprenhou uma escrava e legou a João a cabeleira cor de milho e as contas dos olhos. Pedro e João são vizinhos. Estudaram nas mesmas escolas públicas xexelentas, com teto caindo, carteiras sem braço e professores desestimulados e mal preparados. Os pais dos dois são semi-analfabetos, vivem de biscates, as mães são empregadas domésticas. A despeito das condições adversas, conseguiram, milagrosamente, manter os dois amigos longe da vida louca. João e Pedro viram muitos de seus companheiros de infância morrerem por conta do crack. Às dezenas eles sucumbiram, quando a vida ainda era uma promessa, vítimas do vício ou das dívidas não pagas. Mantidos sob o rígido controle familiar, João e Pedro escaparam às estatísticas sinistras. Sob estímulo paterno, sempre foram estudiosos e estavam entre os primeiros alunos da classe. Chega, então, o momento de prestar vestibular. Os dois estudam loucamente, porém, trata-se de luta inglória. Falta-lhes a base. Não podem concorrer com os Tiagos e Andrés, formados nos bancos das melhores escolas particulares do Recife. Suas notas são insuficientes para garantir o acesso à universidade pública. Quando a infame lista é publicada, João chora o futuro desperdiçado. Chora os sonhos, enterrados precocemente, de uma vida melhor para si e sua família, que tanto investira nele. Pedro tem mais sorte. A pele negra pode evitar o infortúnio que atingiu João. Pedro se inscrevera na política de cotas. Selecionado por uma comissão de doutos professores, a partir de sua fotografia, vê um futuro promissor descortinando-se à sua frente. E agora? Como Pedro vai olhar o amigo João nos olhos? Em nome exatamente de quê, João merece ficar condenado a reproduzir a vida miserável de seus antepassados, negros e brancos, ao passo que a Pedro se garante a oportunidade de sair de uma situação de exclusão? O exercício hipotético é facilmente constatável na realidade das favelas brasileiras. E expõe o mais gritante dos paradoxos das políticas de cotas: é justo corrigir uma injustiça social gerando outra?

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