quarta-feira, 4 de abril de 2012

Elis, Rita e Osman: de corpo e alma


A música popular brasileira é de uma riqueza impressionante, e não creio que seria mero bairrismo se a chamasse de incomparável. A conjugação de qualidade propriamente musical com poesia do mais alto nível talvez seja mesmo ímpar no panorama mundial (há excelente artigo do Prof. Luciano Oliveira a respeito, deixando-me bem respaldada). O show de Maria Rita cantando Elis Regina, realizado neste último domingo, no Recife, foi uma prova disso. Confirmação também de que contamos com intérpretes do mais alto nível, verdadeiras Divas da canção, capazes de hipnotizar o público sem coreografias elaboradas, nem corpos desnudos ou efeitos de pirotecnia. Contam apenas com o essencial: bons músicos, voz marcante e muita sensibilidade. Dizer que o show foi comovente é dizer pouco. Quem foi, se arrepiou e foi para casa de coração leve.
Maria Rita é fisicamente muito distinta da mãe. Para dizer o principal, é um mulherão, enquanto Elis fazia o tipo mignon. Vestida num macacão branco, a imagem da moça no palco era pura sensualidade. (Para felicidade das pobres mortais, Maria Rita parece assumir suas curvas abundantes com muita segurança.) Aproximando-as, de modo absolutamente impressionante -- para além de um ou outro trejeito de braços e expressões faciais –, a voz. Todos os amantes da MPB, mesmo os muito jovens, estão familiarizados com a voz poderosa de Elis Regina. São muitas as suas interpretações inesquecíveis, algumas das quais foram revividas pela filha. Não é só a semelhança do timbre da voz, fenômeno meramente físico, mas suas modulações que impressionavam, pela profunda parecença, em vários momentos do show. À parte juízos comparativos entre as duas intérpretes (a própria filha afirmou a insuperabilidade da mãe), vendo Maria Rita interpretar Elis tive a certeza de algo que percebia, porém nunca havia formulado com essa clareza: as duas, mãe e filha, cantam com a alma e com o corpo. Estão inteiras em cada palavra pronunciada, como se por um efeito misterioso, alquímico, elas se transformassem – espírito e matéria – em sons, palavras e melodia. Por isso o que cantam vai fundo na nossa alma e arrepia os pelos.
Só tenho dois poréns a registrar. Ambos com relação ao público. Vi muitas mãos levantadas, máquinas fotográficas em punho, disparando freneticamente. Ao meu lado, uma moça passou quase todo o show mais empenhada em filmá-lo que em curti-lo. O fenômeno lembrou-me um conto de Osman Lins, de título “O vitral”. No conto, uma mulher deseja a todo custo tirar uma fotografia especial para registrar o aniversário de vinte anos de casamento. Acredita que o retrato haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre seus cânticos. Ao final da história, a personagem compreende que viver o momento é o essencial, pois se trata de uma experiência única, incomparável, irreprodutível: Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. “Que esse momento me possua, me ilumine e desapareça – pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo.” Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral. Máquinas digitais são aparelhinhos fabulosos, todavia entristece-me ver como vão se tornando mediadores imperativos na relação das pessoas com a vida.
Minha segunda adversativa vem de lição aprendida com minha irmã. Certa vez, estávamos assistindo juntas a um especial de Elis, e quando eu e nossa irmã caçula ensaiamos soltar a voz para acompanhar o Furacão, Verônica sentenciou categórica: quando Elis canta, só nos resta calar a boca. Ela própria havia escutado isso num espetáculo de Marília Pêra. Pois bem, domingo, mais que nunca entendi o valor dessa lição. Como gostaria de ter podido escutar Maria Rita cantando O Bêbado e o Equilibrista, ou Fascinação, em lugar de ser obrigada a suportar os gritos quase histéricos do público em redor. Certamente, o entusiasmo coletivo serve de atenuante, mas não custa registrar a queixa, acreditando num improvável efeito “civilizatório”.

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