Saindo do plano simbólico e voltando ao das políticas
públicas, devo declarar minha simpatia pelas cotas sociais. Por exemplo, apoio
com veemência as cotas para escolas públicas no acesso às universidades
federais e estaduais. Eis um caminho mais justo para vencermos as desigualdades
deste país, inclusive as raciais. A lógica é simples. Se a maior parte dos
negros estão situados nas camadas sociais mais baixas, eles serão
automaticamente beneficiados por quaisquer políticas de inclusão social, e sem
gerar situações injustas com quem é tão pobre e lascado como eles, mas tem a
pele clara.
Aqui, um último adendo nessa discussão se faz necessário. Se
quisermos vencer o preconceito e a desigualdade raciais precisamos ser honestos
intelectual e politicamente. Agride a minha inteligência que a leitura dos
dados populacionais seja feita conforme a conveniência das análises. Refiro-me
ao gesto cretino (por melhor intencionado) de juntar as categorias “negros” e
“pardos” quando isso ajuda a acentuar as situações de desigualdade. Em primeiro
lugar, juntar “negros” e “pardos” é uma arrogância que desrespeita, conforme a
conveniência, a tão proclamada importância da autodeclaração. Eu mesma, no
Censo, me incluo na categoria “parda”, e me sinto profundamente desrespeitada
quando sou empurrada na categoria
“negros”, de modo a justificar argumentos alheios. Sinto-me desrespeitada em
termos de minha identidade social, pois me
sinto mestiça e não dou a seu ninguém o direito de me rotular nem como
“negra”, nem como “branca”. Pior ainda,
suspeito seriamente de que a inclusão -- ou a soma -- dos “pardos” na categoria
“negros” vincula-se ao pressuposto de que somos todos uns alienados e por isso
não assumimos nossa identidade “negra”. Visto não termos capacidade crítica para
definir nossa real identidade “étnica”, os intelectuais e burocratas
iluminados, redentores e libertadores dos oprimidos, nos salvam dessa situação
de autoengano.
Em segundo lugar, tal procedimento mascara uma real
compreensão de nossos paradoxos, dicotomias, mazelas e desigualdades. Mais uma
vez flagra-se uma contradição. Se as vítimas de preconceito, que podem ter suas
oportunidades na vida social prejudicadas pela cor escura da pele (os
autodeclarados “negros”) são postos no mesmo balaio que os “pardos”, dentre os
quais se incluem pessoas de tez clara, a exemplo de mim mesma, como
conseguiremos discernir com acuidade as correlações significativas entre cor da
pele, situação social e possibilidades de ascensão? Quando o IBGE anuncia que
entre os analfabetos brasileiros, 70% são pretos e pardos, não nos permite
saber exatamente qual é o percentual de negros nesse universo. E se os pardos
representarem 90% desses 70%? Esse tipo de leitura dos dados só faria sentido,
se as políticas de cotas também incluíssem os pardos. E não incluem. Ou se
pudéssemos assumir que todos os pardos também têm seu prestígio social e suas
oportunidades limitados pela cor da pele. Isso tampouco é verdade. Ademais, com
frequência, os textos de discussão dos dados demográficos falam em dado momento
só nos “pretos” versus “brancos”, para poucas linhas depois falarem em “pretos e pardos”, gerando uma evidente
confusão de leitura de cenário, que inviabiliza uma compreensão global, segundo
padrão único.
Encerro essa longa reflexão, reiterando que precisamos
compreender melhor nosso legado histórico, em sua complexidade, e a partir
desse conhecimento, respeitando as especificidades do contexto das relações
raciais no Brasil, pensar em formas criativas e próprias de erradicação do
preconceito racial e das desigualdades raciais. O Brasil pode escolher entre
acompanhar o ritmo e assumir a agenda
da globalização planejada por outros, ou pode abraçar o legado da mestiçagem,
da plasticidade, da antropofagia, não como mito, mas como caminho para a realização de uma utopia de fraternidade. Se ela ainda está longe da realidade, que
a democracia racial seja um sonho a se alcançar, um ponto de convergência de
esforços, um horizonte para o qual brasileiros de todas as cores possam olhar.
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