quinta-feira, 26 de abril de 2012

Cotas raciais: uma reflexão (parte final)


Saindo do plano simbólico e voltando ao das políticas públicas, devo declarar minha simpatia pelas cotas sociais. Por exemplo, apoio com veemência as cotas para escolas públicas no acesso às universidades federais e estaduais. Eis um caminho mais justo para vencermos as desigualdades deste país, inclusive as raciais. A lógica é simples. Se a maior parte dos negros estão situados nas camadas sociais mais baixas, eles serão automaticamente beneficiados por quaisquer políticas de inclusão social, e sem gerar situações injustas com quem é tão pobre e lascado como eles, mas tem a pele clara.
Aqui, um último adendo nessa discussão se faz necessário. Se quisermos vencer o preconceito e a desigualdade raciais precisamos ser honestos intelectual e politicamente. Agride a minha inteligência que a leitura dos dados populacionais seja feita conforme a conveniência das análises. Refiro-me ao gesto cretino (por melhor intencionado) de juntar as categorias “negros” e “pardos” quando isso ajuda a acentuar as situações de desigualdade. Em primeiro lugar, juntar “negros” e “pardos” é uma arrogância que desrespeita, conforme a conveniência, a tão proclamada importância da autodeclaração. Eu mesma, no Censo, me incluo na categoria “parda”, e me sinto profundamente desrespeitada quando sou empurrada na categoria “negros”, de modo a justificar argumentos alheios. Sinto-me desrespeitada em termos de minha identidade social, pois me sinto mestiça e não dou a seu ninguém o direito de me rotular nem como “negra”, nem como “branca”. Pior ainda, suspeito seriamente de que a inclusão -- ou a soma -- dos “pardos” na categoria “negros” vincula-se ao pressuposto de que somos todos uns alienados e por isso não assumimos nossa identidade “negra”. Visto não termos capacidade crítica para definir nossa real identidade “étnica”, os intelectuais e burocratas iluminados, redentores e libertadores dos oprimidos, nos salvam dessa situação de autoengano.
Em segundo lugar, tal procedimento mascara uma real compreensão de nossos paradoxos, dicotomias, mazelas e desigualdades. Mais uma vez flagra-se uma contradição. Se as vítimas de preconceito, que podem ter suas oportunidades na vida social prejudicadas pela cor escura da pele (os autodeclarados “negros”) são postos no mesmo balaio que os “pardos”, dentre os quais se incluem pessoas de tez clara, a exemplo de mim mesma, como conseguiremos discernir com acuidade as correlações significativas entre cor da pele, situação social e possibilidades de ascensão? Quando o IBGE anuncia que entre os analfabetos brasileiros, 70% são pretos e pardos, não nos permite saber exatamente qual é o percentual de negros nesse universo. E se os pardos representarem 90% desses 70%? Esse tipo de leitura dos dados só faria sentido, se as políticas de cotas também incluíssem os pardos. E não incluem. Ou se pudéssemos assumir que todos os pardos também têm seu prestígio social e suas oportunidades limitados pela cor da pele. Isso tampouco é verdade. Ademais, com frequência, os textos de discussão dos dados demográficos falam em dado momento só nos “pretos” versus “brancos”, para poucas linhas depois falarem em “pretos e pardos”, gerando uma evidente confusão de leitura de cenário, que inviabiliza uma compreensão global, segundo padrão único.
Encerro essa longa reflexão, reiterando que precisamos compreender melhor nosso legado histórico, em sua complexidade, e a partir desse conhecimento, respeitando as especificidades do contexto das relações raciais no Brasil, pensar em formas criativas e próprias de erradicação do preconceito racial e das desigualdades raciais. O Brasil pode escolher entre acompanhar o ritmo e assumir a agenda da globalização planejada por outros, ou pode abraçar o legado da mestiçagem, da plasticidade, da antropofagia, não como mito, mas como caminho para a realização de uma utopia de fraternidade. Se ela ainda está longe da realidade, que a democracia racial seja um sonho a se alcançar, um ponto de convergência de esforços, um horizonte para o qual brasileiros de todas as cores possam olhar.

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