Tinha dado o assunto das cotas raciais por encerrado, após
escrever cinco textos a respeito. No entanto, um amigo querido enviou-me artigo
de Frei David Santos, recém publicado nO
Globo (“O sucesso das cotas nas universidades”). O artigo tem dois argumentos
centrais. Acentua que as políticas de cotas incrementaram o ingresso de negros
no ensino superior e alegra-se com o fato de os cotistas terem desempenho
melhor que o dos demais alunos, por sentirem-se, supõe o autor, muito motivados
com a oportunidade conquistada. Provocada por meu amigo, senti-me compelida a escrever
este adendo.
Primeiramente, a reflexão de Frei David responde a um tipo
de argumento frequentemente utilizado para criticar as cotas e que eu concordo
ser muito frágil, superficial, para não dizer, cretino. E consiste justamente
em pressupor que os cotistas têm desempenho inferior aos demais alunos, pois
como normalmente vêm de escolas públicas, não têm a mesma base dos coleguinhas
oriundos das escolas particulares. Conjugado a este, apresenta-se – também com
frequência -- o argumento de que as cotas são ruins porque subestimam a
capacidade dos negros, pressupondo-os menos inteligentes, logo, incapazes de
chegar à universidade por méritos próprios, e por aí vai. Sempre achei esses
argumentos primários. Inclusive porque sou super a favor das cotas para alunos
de escolas públicas! Nem sei se as afirmações de Frei David procedem ou não
(ele infelizmente não cita números, nem fontes de dados), mas não importa. Não
é o sucesso ou insucesso dos cotistas que deve ser usado como critério para
decidir se essa é uma boa política ou não, para o Brasil. De minha parte,
acredito plenamente na capacidade de pessoas motivadas para vencerem obstáculos.
Paralelamente, acho que cabe às universidades oferecer aos cotistas o apoio
necessário para preencher eventuais lacunas. Além disso, é óbvio que a adoção
de cotas raciais leva necessariamente ao aumento da presença de negros no
ensino superior! Nunca soube de ninguém que colocasse esse resultado em
questão. Esta é uma polêmica sobre meios, não sobre fins.
Na minha perspectiva, o problema com as cotas raciais tem a
ver com 3 questões cruciais, discutidas em cinco textos anteriormente postados
neste blog. A primeira é que cotas raciais corrigem uma injustiça histórica
criando outra, presente. Entre dois jovens pobres, favelados e sem muita
perspectiva de futuro, por que será dada ao de pele escura a possibilidade de
mudar suas circunstâncias enquanto seu vizinho de pele mais clara ficará
condenado à mesma exclusão de sempre? (Vide “Cotas raciais: parte 1”, neste
blog).
A segunda é de natureza prática: não há critérios objetivos
para o estabelecimento de quem é negro ou branco, no Brasil. As cotas raciais
funcionam nos Estados Unidos porque lá há, de fato, duas "raças". E
basta uma gota de sangue negro para que alguém seja incluído na raça negra.
Agora, no Brasil, o que temos são categorias de cor. E a definição da cor da
pele é altamente subjetiva, como comprovam todas as pesquisas empíricas (Vide “Cotas
raciais: parte 2”, neste blog). E por favor não venham me dizer que essa é uma
leitura meramente ideológica! Logo, considerados esses dois aspectos, a margem
para o cometimento de injustiças com as políticas de cotas raciais, no Brasil, é considerável.
Minha terceira razão é de natureza histórica, cultural e
intelectual. Me dá ojeriza a ideia de estarmos sempre "importando"
soluções alheias, para problemas com configurações particulares nossas. Nossa
história nos oferece possibilidades de solução do racismo e da desigualdade
racial que passam por vias distintas da segregação. (Vide “Cotas raciais: parte
4”, neste blog). Devo citar ainda um argumento de natureza filosófica. As cotas
raciais dão sobrevida a um paradigma que criou divisões artificiais entre a
espécie humana. Usar o conceito de raça para combater o racismo é um
contrasenso que pode e deve ser superado ( Vide “Cotas raciais: parte 3”, neste
blog).
Isto posto, devo declarar minha integral e enfática
concordância com Frei David, quando ele diz o seguinte: “A justiça se aproximará do seu ideal quando definirmos as cotas
de outra forma: que a percentagem máxima de ingressos de alunos provenientes da
rede particular de ensino seja a mesma dos que terminam o ensino médio: 12%. Com
isso, automaticamente definiremos que 88% das vagas seriam destinadas aos
alunos da rede pública! Esta atitude irá revolucionar a rede pública.”. Esse,
sim, me parece ser um caminho muito mais sensato e justo com todas os jovens
brasileiros que hoje estão “naturalmente” excluídos do ensino superior, logo,
de possibilidades efetivas de uma vida melhor e distinta das de seus pais, avós,
bisavós e tataravós, não importa qual seja a tonalidade de sua pele.
Mas o que eu penso é, no fundo, irrelevante. Hoje teremos
decisão definitiva do Supremo a respeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário