Um terceiro argumento interessante de ser analisado nos leva
a um debate mais propriamente intelectual: recuperar a noção de raça e escolher o caminho da oposição entre brancos e pretos,
adotado pelos movimentos negros americanos, dá sobrevida a um modelo de
pensamento que já deveria estar morto e enterrado. Como assinala o antropólogo
Peter Fry, a luta pela ação afirmativa cria um paradoxo: tem de evocar
precisamente aquilo que deseja abolir, a desigualdade entre pessoas de cores
diferentes. E para que se veja que Fry não está sozinho nesse barco, observe-se
bem o que diz o intelectual e militante negro, Paul Gilroy (autor do livro Atlântico Negro): “eu estou sugerindo
que a única resposta apropriada a essa incerteza é demandar liberação não
apenas da supremacia branca, por mais que esta seja urgentemente requerida, mas
de toda racialização e pensamento raciológico, da visão racial, do pensamento
racializado e do pensamento racializado sobre o pensamento”. Por outros
caminhos, que passam pela associação do preconceito racial ao nazismo, Gilroy
chega à mesma conclusão de Peter Fry: usar o conceito de raça para combater o
racismo serve apenas para dar sobrevida ao paradigma que divide a humanidade em
categorias essenciais, conforme a cor da pele. Não bastasse a lógica interna do
argumento de Gilroy e Fry, de validade universal, há que se levar em conta a
especificidade do contexto brasileiro. Adotar um modelo purista, que quer
separar o que está, na prática, misturado, parece ser duplamente anacrônico.
Deveríamos ter o óbvio cuidado com a “importação” irrefletida de categorias e
de soluções para problemas que têm dimensões diferentes, conforme cada lugar.
Ademais, se ao menos se pudesse constatar o sucesso estrondoso
do modelo americano de combate às desigualdades raciais, valeria a pena
considerá-lo mais cuidadosamente. No entanto, as estatísticas dizem outra
coisa. De acordo com os dados do US
Census Bureau, em 2004, 12,7% da população americana viviam abaixo da linha
de pobreza. Entre os afro-americanos, esse percentual subia para 24,7% (não
consegui encontrar esse cruzamento de dados para o censo de 2010, em pesquisa
rápida, mas duvido que haja diferenças muito significativas). Na Universidade
da California, Berkeley, a melhor universidade pública do país, que manteve
durante anos uma política conhecida no sentido de favorecer a diversidade
étnica da sua população, em 2004, apenas 3,5% dos estudantes eram
afro-americanos e o percentual de “Acadêmicos” — que inclui os professores —
apresentava a minúscula cifra de 2,6%. Carlos Hasenbalg denunciava, em 1993,
que os casamentos interétnicos no Brasil atingiam uma taxa de apenas 20% do
total de casamentos contraídos na população. Ora, nos Estados Unidos, em 2004
(!), essa taxa era de apenas 2%. Embora esses dados sejam relativos a momentos
diferentes, como nada se passou no Brasil que produzisse movimento contrário,
pode-se supor sem muita margem de erro, que em 2004 o quadro brasileiro pelo
menos se mantivesse estável.
Diria mais. Embora boa parte da população afro-americana se
situe acima da linha da pobreza, ela vive em guetos que se formam
“naturalmente” nas principais cidades do país. Em sua ampla maioria os negros
moram nas casas mais pobres, estudam nas piores escolas, e por isso mesmo têm
muito mais dificuldade de chegar à universidade. Quando residi em Berkeley,
pude constatar isso muito facilmente. Bastava tomar qualquer ônibus do trajeto
Oakland-Richmond para observar que pelo menos 80% dos passageiros eram negros.
Não a toa, tratava-se das duas vizinhanças mais pobres e mais inseguras da Bay
Area. Alguém pode até argumentar: as políticas de cotas nos EUA deram certo,
sim, sem elas, a situação era e seria bem pior. Incontestável. A questão é que
os índices brasileiros associados à cor também melhoraram progressivamente ao
longo do século XX. Aliás, um estudo comparativo (Brasil-EUA) da progressão de índices
de escolaridade e pobreza entre a população negra seria muito bem vindo, pois
poderia nos tirar do terreno do idealismo e da suposição. De minha parte,
apostaria minhas fichas na hipótese de que sem políticas de cotas conseguimos,
aqui no Brasil, progressos sociais no mínimo similares aos americanos.
A crescente exposição dos afro-americanos na mídia, que
contam com TV Shows onde 98% do
elenco é negro, a eleição de um presidente negro, e a existência de uma classe
média afro-americana mais visível que a brasileira devem ser analisados com
muito cuidado, pois alimentam um outro mito: o de que a igualdade legal
conquistada pelos movimentos negros e a igualdade de oportunidades “inerente” à
sociedade do self-made man garantem
as bases do igualitarismo racial – esse é o senso comum americano. Contra essa
suposição, em artigo publicado na época da eleição de Obama, na revista Piauí, o teórico americano Walter Benn
Michaels argumentava, com base nas estatísticas de distribuição de renda, que
“depois de meio século de antiracismo e antifeminismo, os Estados Unidos são
menos igualitários do que a sociedade racista e machista da segregação”. Completava
assegurando ser mais fácil a um negro americano ascender socialmente se ele se
mudasse para a Alemanha. Por que, então, ao invés de procurar espelhamento em
um modelo que não solucionou o
racismo e as desigualdade raciais, o Brasil não busca, dentro de sua própria
tradição, formas criativas para resolver um problema que incomoda a todos nós?
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