Um segundo argumento a ser ponderado num debate genuíno
sobre as políticas de cotas raciais é de ordem estritamente pragmática. Quais
critérios serão utilizados para definir quem é negro e quem não é? Seja com
base na autodeclaração ou na escolha por uma comissão de prestigiados
professores universitários, os critérios serão sempre controversos, porque
subjetivos. No primeiro caso estamos lidando com o sentimento de pertencer a
uma dada “etnia”, no segundo, com percepções sobre cor da pele e outros traços
fisionômicos. Os dois critérios, na tradição histórico-cultural brasileira, são
flexíveis, mutáveis, subjetivos. Comecemos pela cor da pele. Há, sem dúvida,
uma parcela da população brasileira, de pele bem escura, em relação à qual
todos concordaríamos com sua inclusão na categoria “negra”. No entanto, suspeito
que a grande maioria dos autodeclarados “negros” não seriam qualificados como
tal por seus concidadãos. O teste é fácil de ser realizado. Já fiz isso algumas
vezes em sala de aula. Peça-se a qualquer grupo aleatório de 40 pessoas que
autodeclarem sua cor, em cédula de papel. Logo, peça-se a todos que indiquem
quantos “negros” reconhecem no ambiente. Confrontem-se os dados. Ou pegue-se
uma fotografia de um autodeclarado “negro”, de pele não tão escura assim, e
saia-se com ela pelas ruas, perguntando às pessoas qual é a cor daquele
indivíduo (fornecendo as opções do IBGE: branco, preto, pardo, amarelo).
Garanto-lhes que o resultado desse tipo de experiência vai evidenciar as
ambiguidades da cor na sociedade brasileira. Para ilustrar essa linha de
argumentação, poderia me remeter à clássica história dos gêmeos idênticos que
reivindicaram a inclusão nas cotas, pela UNB. Um foi considerado elegível,
logo, negro, o outro, não. Quem defende as cotas raciais, alega, com
frequência: mas a polícia sabe quem é
negro. A solução seria, então, montar comitês de policiais militares para
avaliação das candidaturas às políticas de cotas? Espera-se que não. Em todo
caso, é relevante prestar atenção a essas ambiguidades, pois só há a situação
de preconceito e discriminação quando o outro
inclui você na categoria
discriminada.
Ter fronteiras de cor ambíguas significa que não somos um
país racista? Não. De modo algum. Isso significa apenas que não somos um país
dual como os Estados Unidos ou a África do Sul. Significa que é muito difícil estabelecer
os limites entre o preto e o branco, o que torna qualquer política de cotas
raciais muito problemática e potencialmente injusta, no caso brasileiro. Somos
um país onde o cinza predomina sobre o branco ou o preto. Isso não é apenas uma
invenção de intelectuais perversos e aristocratas, ideólogos da democracia
racial. A mestiçagem, no Brasil, não é apenas um fato genético e fisionômico
(não é a toa que os passaportes brasileiros valem ouro no mercado negro), mas
um valor social. Se um sujeito muito escuro pode ser xingado de “tição”, um
sujeito muito claro pode ser xingado de “aguado”, “insosso” e “branco azedo”.
Mais importante ainda é entendermos que essa mestiçagem –
genética, social e cultural – gerou a coexistência de padrões múltiplos no
relacionamento entre pessoas de cores distintas. O racismo, o preconceito e a
discriminação constituem um desses padrões, e convivem com padrões opostos, de
afetividade, respeito e solidariedade. Mais ainda, as hierarquias entre cores
podem sofrer inversões, conforme a situação social. Indivíduos mestiços, não
raramente, podem optar por filiar-se a grupos de cor opostos, conforme lhes
seja mais conveniente, na situação Y ou Z. Podem fazer isso, inclusive,
“naturalmente”, sem cálculo explícito. Esse aspecto da dinâmica social
brasileira nos permite perceber a fragilidade do critério da autodeclaração
também.
Lembro-me da história de uma moça de pele bem escura que
concorreu ao Itamaraty, recentemente. Como, ao longo de sua vida, ela nunca
havia se sentido discriminada pela cor da pele, não se incluiu na política de
cotas. Dançou. Perdeu a vaga para outras pessoas que fizeram essa opção e
talvez fossem mais claras que ela. Não estou querendo dizer que os
beneficiários da política de cotas não tenham sido discriminados ao longo de
suas vidas, mas apenas mostrar como o peso da cor da pele é social e
culturalmente relativo. Na sociedade brasileira, o preconceito e a desigualdade
de oportunidades são uma possibilidade,
que pode ou não assumir concretude na vida das pessoas. Claro que a mera
possibilidade de existência do preconceito deve ser combatida. Isso é
indiscutível. O que está em discussão é o caminho para vencer o preconceito e a
desigualdade. Felizmente, nossa tradição histórica nos oferece outras alternativas,
distintas do sistema de cotas inventado nos Estados Unidos, onde são claras as
fronteiras étnicas, valendo o princípio da gota de sangue negro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário