segunda-feira, 23 de abril de 2012

Cotas raciais: uma reflexão (parte 2)


Um segundo argumento a ser ponderado num debate genuíno sobre as políticas de cotas raciais é de ordem estritamente pragmática. Quais critérios serão utilizados para definir quem é negro e quem não é? Seja com base na autodeclaração ou na escolha por uma comissão de prestigiados professores universitários, os critérios serão sempre controversos, porque subjetivos. No primeiro caso estamos lidando com o sentimento de pertencer a uma dada “etnia”, no segundo, com percepções sobre cor da pele e outros traços fisionômicos. Os dois critérios, na tradição histórico-cultural brasileira, são flexíveis, mutáveis, subjetivos. Comecemos pela cor da pele. Há, sem dúvida, uma parcela da população brasileira, de pele bem escura, em relação à qual todos concordaríamos com sua inclusão na categoria “negra”. No entanto, suspeito que a grande maioria dos autodeclarados “negros” não seriam qualificados como tal por seus concidadãos. O teste é fácil de ser realizado. Já fiz isso algumas vezes em sala de aula. Peça-se a qualquer grupo aleatório de 40 pessoas que autodeclarem sua cor, em cédula de papel. Logo, peça-se a todos que indiquem quantos “negros” reconhecem no ambiente. Confrontem-se os dados. Ou pegue-se uma fotografia de um autodeclarado “negro”, de pele não tão escura assim, e saia-se com ela pelas ruas, perguntando às pessoas qual é a cor daquele indivíduo (fornecendo as opções do IBGE: branco, preto, pardo, amarelo). Garanto-lhes que o resultado desse tipo de experiência vai evidenciar as ambiguidades da cor na sociedade brasileira. Para ilustrar essa linha de argumentação, poderia me remeter à clássica história dos gêmeos idênticos que reivindicaram a inclusão nas cotas, pela UNB. Um foi considerado elegível, logo, negro, o outro, não. Quem defende as cotas raciais, alega, com frequência: mas a polícia sabe quem é negro. A solução seria, então, montar comitês de policiais militares para avaliação das candidaturas às políticas de cotas? Espera-se que não. Em todo caso, é relevante prestar atenção a essas ambiguidades, pois só há a situação de preconceito e discriminação quando o outro inclui você na categoria discriminada.
Ter fronteiras de cor ambíguas significa que não somos um país racista? Não. De modo algum. Isso significa apenas que não somos um país dual como os Estados Unidos ou a África do Sul. Significa que é muito difícil estabelecer os limites entre o preto e o branco, o que torna qualquer política de cotas raciais muito problemática e potencialmente injusta, no caso brasileiro. Somos um país onde o cinza predomina sobre o branco ou o preto. Isso não é apenas uma invenção de intelectuais perversos e aristocratas, ideólogos da democracia racial. A mestiçagem, no Brasil, não é apenas um fato genético e fisionômico (não é a toa que os passaportes brasileiros valem ouro no mercado negro), mas um valor social. Se um sujeito muito escuro pode ser xingado de “tição”, um sujeito muito claro pode ser xingado de “aguado”, “insosso” e “branco azedo”.
Mais importante ainda é entendermos que essa mestiçagem – genética, social e cultural – gerou a coexistência de padrões múltiplos no relacionamento entre pessoas de cores distintas. O racismo, o preconceito e a discriminação constituem um desses padrões, e convivem com padrões opostos, de afetividade, respeito e solidariedade. Mais ainda, as hierarquias entre cores podem sofrer inversões, conforme a situação social. Indivíduos mestiços, não raramente, podem optar por filiar-se a grupos de cor opostos, conforme lhes seja mais conveniente, na situação Y ou Z. Podem fazer isso, inclusive, “naturalmente”, sem cálculo explícito. Esse aspecto da dinâmica social brasileira nos permite perceber a fragilidade do critério da autodeclaração também.
Lembro-me da história de uma moça de pele bem escura que concorreu ao Itamaraty, recentemente. Como, ao longo de sua vida, ela nunca havia se sentido discriminada pela cor da pele, não se incluiu na política de cotas. Dançou. Perdeu a vaga para outras pessoas que fizeram essa opção e talvez fossem mais claras que ela. Não estou querendo dizer que os beneficiários da política de cotas não tenham sido discriminados ao longo de suas vidas, mas apenas mostrar como o peso da cor da pele é social e culturalmente relativo. Na sociedade brasileira, o preconceito e a desigualdade de oportunidades são uma possibilidade, que pode ou não assumir concretude na vida das pessoas. Claro que a mera possibilidade de existência do preconceito deve ser combatida. Isso é indiscutível. O que está em discussão é o caminho para vencer o preconceito e a desigualdade. Felizmente, nossa tradição histórica nos oferece outras alternativas, distintas do sistema de cotas inventado nos Estados Unidos, onde são claras as fronteiras étnicas, valendo o princípio da gota de sangue negro.

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