domingo, 22 de abril de 2012

A costumização da felicidade


Quantas vezes olhamos com inveja para as crianças, desejando ter delas a mesma alegria franca e despreocupada? Qual é o segredo da felicidade fácil e tão mais constante do que a nossa? A resposta está na ponta da língua: crianças ainda estão dispensadas da pesada carga de responsabilidades e obrigações da vida adulta. No entanto, também há adultos que exibem frequentemente a felicidade no rosto, ainda que vivam em casinhas minúsculas, cujo aluguel pagam com dificuldade, localizadas em vizinhanças sem a menor infra-estrutura, esgoto correndo na porta, água na torneira só de quando em vez. Alienação, nos explicam os intelectuais. Ao passo que nós, classe média (velha e nova) ou elite, apesar da geladeira farta, do carro na garagem, da vista para o mar, dos guarda-roupas sortidos, vivemos um cotidiano em que as frustrações, ansiedades e o estresse deixam reduzido espaço para a felicidade, e mesmo para alegrias mais intensas e duradouras.
A felicidade é um estado de espírito, dizem os filósofos. Crescemos condicionados a viver para alcançar esse estado. Queremos que seja permanente, que se transforme numa situação de vida. Quando crescemos e nos tornamos adultos, nossas vidas se transformam, sem nem nos darmos conta, numa espécia de saga em busca da felicidade. Estamos sempre a persegui-la. O que tampouco percebemos é o quanto desse sonho de felicidade é socialmente construído. Em nossas sociedades ocidentais, a felicidade começa por um casamento (irrelevante que seja formalizado). Por isso tanto empenho em encontrarmos nossa cara metade, o príncipe ou princesa que nos completará e nos fará felizes para sempre. Logo deve vir a prole, por meio da qual legaremos nosso código genético e deixaremos nossos vestígios na história da humanidade. Bons empregos e estabilidade financeira também são componentes essenciais do pacote da felicidade. Acho que até o final do século passado os principais parâmetros eram estes, o que já representava tarefa hercúlea, literalmente. Mais fácil roubar o pomo de ouro do Jardim das Hespérides. Ocorre que neste século XXI ser feliz tornou-se ainda mais dificultoso. Nem Jasão com seus Argonautas dariam conta da tarefa. Além de príncipe encantado para sempre, filhos, emprego e estabilidade, nossas metas de felicidade passaram a incluir um corpo perfeito e sempre jovem, sucesso profissional estrondoso e o consumo de bens super sofisticados, cujo prestígio seja incontestável e imediatamente reconhecido por nossos pares. Trata-se, obviamente, de um poço sem fundo.
Resultado, vivemos eternamente frustrados. Colecionamos alegrias momentâneas, que se extinguem com a garrafa de Bordeaux, com o pouso do avião que nos trouxe de volta de Miami, com o amanhecer que encerra a noite de intensos prazeres sexuais. Nunca temos o suficiente. Os guarda-roupas estão atulhados, porém, falta aquela bolsa azul da Hermés. O carro na garagem é novo e confortável, mas bem que poderia ser um Mercedes. Os maridos são até bons amantes, homens de bem, batalhadores, mas falta-lhes o romantismo desejado, ou a disposição para discutir a relação, ou o interesse pelas tarefas domésticas. As esposas são carinhosas, boas mães, leais, só que já não têm o mesmo sex appeal, são um tanto controladoras, cobram demais. O amor aos filhos é incondicional. No entanto, bem que eles podiam ser mais obedientes e responsáveis com suas poucas obrigações. Melhor ainda se eles se dispusessem a realizar nossos próprios sonhos profissionais e familiares.
Descobri, não sem antes acumular e sofrer boas doses de frustração, que a felicidade é uma questão de expectativas. Poucos indivíduos podem alcançar as expectativas que a sociedade globalizada estabeleceu para a felicidade. Logo, ou ficamos condenados a viver a saga infrutífera desse santo graal, ou reajustamos nossas expectativas de felicidade. Parece mais sábio optar pela segunda alternativa. Para usar uma palavra do momento, é preciso costumizar as nossas expectativas de felicidade, adaptá-las às nossas reais possibilidades. Depositemos, pois, nossas demandas em objetos (lato sensu) ao alcance da nossa mão.
Uma estratégia básica que utilizo é estabelecer expectativas modestas, seja na vida amorosa, profissional, financeira ou de qualquer outro tipo. Quando consigo alcançá-las, fico feliz. Se as supero, minha felicidade é ainda mais intensa. Nem por isso deixo de batalhar e crescer. Agora, raramente fico frustrada. Também é interessante mudar o foco dos grandes prazeres e realizações, para os pequenos, aqueles que efetivamente podem fazer parte do nosso dia-a-dia. E aqui, volto às crianças. Por que elas nos parecem mais felizes? Não é por não terem responsabilidades e obrigações. Muitas crianças, inclusive, as têm. É porque suas expectativas são mais modestas (ou costumavam ser; o consumo está transformando também a realidade infantil). Seu olhar sobre o mundo é despretensioso. Assim, tudo se lhes afigura como uma dádiva. Descobrem encantamento nas mínimas coisas, como numa flor colorida, num inseto diferente, num cata-vento que se move ao efeito -- para elas misterioso -- do impalpável ar. E alegram-se com esses pequenos acontecimentos, como se fossem grandes milagres. Antes que a infância mude de todo, seria bom aprendermos com as crianças a apreciar o mistério, a buscar a felicidade aonde é mais factível encontrá-la.

Um comentário:

  1. A felicidade material? Fico imaginando certas pessoas se afogando no próprio dinheiro. Uma imagem alucinada.

    Percorrer seus textos, Valéria, me leva a estabelecer um novo parâmetro entre a leitura e a confecção das imagens em meu cérebro. Uma experiência encantadora.

    Beijo,
    Ivanildo

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