Quantas vezes olhamos com inveja para as crianças, desejando
ter delas a mesma alegria franca e despreocupada? Qual é o segredo da
felicidade fácil e tão mais constante do que a nossa? A resposta está na ponta
da língua: crianças ainda estão dispensadas da pesada carga de
responsabilidades e obrigações da vida adulta. No entanto, também há adultos
que exibem frequentemente a felicidade no rosto, ainda que vivam em casinhas
minúsculas, cujo aluguel pagam com dificuldade, localizadas em vizinhanças sem
a menor infra-estrutura, esgoto correndo na porta, água na torneira só de
quando em vez. Alienação, nos explicam os intelectuais. Ao passo que nós,
classe média (velha e nova) ou elite, apesar da geladeira farta, do carro na
garagem, da vista para o mar, dos guarda-roupas sortidos, vivemos um cotidiano
em que as frustrações, ansiedades e o estresse deixam reduzido espaço para a
felicidade, e mesmo para alegrias mais intensas e duradouras.
A felicidade é um estado de espírito, dizem os filósofos.
Crescemos condicionados a viver para alcançar esse estado. Queremos que seja
permanente, que se transforme numa situação de vida. Quando crescemos e nos
tornamos adultos, nossas vidas se transformam, sem nem nos darmos conta, numa
espécia de saga em busca da felicidade. Estamos sempre a persegui-la. O que
tampouco percebemos é o quanto desse sonho de felicidade é socialmente
construído. Em nossas sociedades ocidentais, a felicidade começa por um casamento
(irrelevante que seja formalizado). Por isso tanto empenho em encontrarmos
nossa cara metade, o príncipe ou princesa que nos completará e nos fará felizes
para sempre. Logo deve vir a prole, por meio da qual legaremos nosso código
genético e deixaremos nossos vestígios na história da humanidade. Bons empregos
e estabilidade financeira também são componentes essenciais do pacote da
felicidade. Acho que até o final do século passado os principais parâmetros
eram estes, o que já representava tarefa hercúlea, literalmente. Mais fácil
roubar o pomo de ouro do Jardim das Hespérides. Ocorre que neste século XXI ser
feliz tornou-se ainda mais dificultoso. Nem Jasão com seus Argonautas dariam
conta da tarefa. Além de príncipe encantado para sempre, filhos, emprego e
estabilidade, nossas metas de felicidade passaram a incluir um corpo perfeito e
sempre jovem, sucesso profissional estrondoso e o consumo de bens super
sofisticados, cujo prestígio seja incontestável e imediatamente reconhecido por
nossos pares. Trata-se, obviamente, de um poço sem fundo.
Resultado, vivemos eternamente frustrados. Colecionamos
alegrias momentâneas, que se extinguem com a garrafa de Bordeaux, com o pouso
do avião que nos trouxe de volta de Miami, com o amanhecer que encerra a noite
de intensos prazeres sexuais. Nunca temos o suficiente. Os guarda-roupas estão
atulhados, porém, falta aquela bolsa azul da Hermés. O carro na garagem é novo
e confortável, mas bem que poderia ser um Mercedes. Os maridos são até bons
amantes, homens de bem, batalhadores, mas falta-lhes o romantismo desejado, ou
a disposição para discutir a relação, ou o interesse pelas tarefas domésticas.
As esposas são carinhosas, boas mães, leais, só que já não têm o mesmo sex appeal, são um tanto controladoras, cobram
demais. O amor aos filhos é incondicional. No entanto, bem que eles podiam ser
mais obedientes e responsáveis com suas poucas obrigações. Melhor ainda se eles
se dispusessem a realizar nossos próprios sonhos profissionais e familiares.
Descobri, não sem antes acumular e sofrer boas doses de
frustração, que a felicidade é uma questão de expectativas. Poucos indivíduos
podem alcançar as expectativas que a sociedade globalizada estabeleceu para a felicidade.
Logo, ou ficamos condenados a viver a saga infrutífera desse santo graal, ou
reajustamos nossas expectativas de felicidade. Parece mais sábio optar pela
segunda alternativa. Para usar uma palavra do momento, é preciso costumizar as nossas expectativas de
felicidade, adaptá-las às nossas reais possibilidades. Depositemos, pois, nossas
demandas em objetos (lato sensu) ao
alcance da nossa mão.
Uma estratégia básica que utilizo é estabelecer expectativas
modestas, seja na vida amorosa, profissional, financeira ou de qualquer outro
tipo. Quando consigo alcançá-las, fico feliz. Se as supero, minha felicidade é
ainda mais intensa. Nem por isso deixo de batalhar e crescer. Agora, raramente
fico frustrada. Também é interessante mudar o foco dos grandes prazeres e
realizações, para os pequenos, aqueles que efetivamente podem fazer parte do
nosso dia-a-dia. E aqui, volto às crianças. Por que elas nos parecem mais
felizes? Não é por não terem responsabilidades e obrigações. Muitas crianças,
inclusive, as têm. É porque suas expectativas são mais modestas (ou costumavam
ser; o consumo está transformando também a realidade infantil). Seu olhar sobre
o mundo é despretensioso. Assim, tudo se lhes afigura como uma dádiva.
Descobrem encantamento nas mínimas coisas, como numa flor colorida, num inseto
diferente, num cata-vento que se move ao efeito -- para elas misterioso -- do
impalpável ar. E alegram-se com esses pequenos acontecimentos, como se fossem
grandes milagres. Antes que a infância mude de todo, seria bom aprendermos com
as crianças a apreciar o mistério, a buscar a felicidade aonde é mais factível
encontrá-la.
A felicidade material? Fico imaginando certas pessoas se afogando no próprio dinheiro. Uma imagem alucinada.
ResponderExcluirPercorrer seus textos, Valéria, me leva a estabelecer um novo parâmetro entre a leitura e a confecção das imagens em meu cérebro. Uma experiência encantadora.
Beijo,
Ivanildo