quarta-feira, 11 de abril de 2012

Diário de viagem: Manaus, parte 5


Manaus, 30 de janeiro

Sinto-me radiante hoje! Luminosa como o céu, que novamente se vestiu de azul. Ao menos em alguns pedaços, já que nuvens pesadas estão muito próximas. É como se as nuvens tivessem se esgarçado justamente para fazer esse clarão sobre o Teatro Amazonas e o Palácio da Justiça, que vejo da minha janela. Agora há pouco a visão da cúpula do Teatro estava bela como nunca. O colorido dos ladrilhos brilhantes destacado contra o fundo anil. A ponta de ferro que encima a cúpula parecia fazer parte da paisagem aérea. Vasos – espécies de ânforas gregas, com penachos —assentados no teto do Palácio da Justiça, situado bem diante da minha janela, também estavam lindos, o amarelo mais aceso. Pareciam flutuar na matéria azul.
No entanto, pressente-se que a paisagem pode mudar a qualquer instante, ao capricho dos ventos. O dia, inclusive, tinha amanhecido cinzento. Com jeito de chuva. Eu e Guida fomos tomar café na feira de rua que há todos os domingos pertinho do hotel. A feira acontece numa larga avenida, movimentadíssima em dia de semana (Av. Eduardo Ribeiro). Parte dela fica bloqueada ao trânsito nos domingos. Barraquinhas ficam dispostas dos dois lados da rua. Logo de início estão as de comida, depois as de artesanato, por fim, há uma espécie de sulanca (eliminada do nosso passeio!). Fomos logo comer. Pedi tapioca com queijo e tucumã. A tucumã é uma fruta estranha. Não tem açúcar nenhum, e tampouco é azeda. Diria que é quase salgada. Amarelíssima.
Depois do café, demos uma volta nas barraquinhas de artesanato. Comprei chocolates, geléias, biscoitos, sabonetes e produtos de banho. Um dos chocolates era recheado de araçá-boi. A fruta, em exposição na barraca, tem uma textura de veludo, absolutamente sedutora. Uma delícia passá-la sobre a pele. Fruta enganosa, sedutora por fora e azedíssima por dentro. Na barraca de sabonetes procurei as essências de madeiras e raízes da Amazônia. A vendedora me sugeriu levar o de morango: “o melhor de todos”. Imagine se iria levar um sabonete de morango! Não faria isso na Victoria Secrets, imagine numa feira de rua, em plena Manaus! Trouxe os de breu-branco, andiroba, mulateiro, copaíba. Ao menos rescendem a terra.
Mas o que realmente me deixou radiante, hoje, foram os quadros que comprei a dois artistas locais. João Bosco e Raymond (!!!). Ao último comprei um quadro lindíssimo, de um peixe amazônico chamado aruanã. Apaixonei-me pelo quadro, primitivista. É tão cheio de detalhes que não ouso descrevê-lo. Só posso dizer que é lindo, cheio de cor e de vida. Fiz par com um menor, em que três mocinhas passeiam de barco. Um sombreiro azul, gigante, enfeitado com bolinhas, confunde-se com um sol multicor. Uma oncinha vai deitada na popa do barco, e uma garça, com a asa rendilhada de azul, segue junto à proa. Uma gracinha de cena. Já os quadros de João Bosco fazem referência à vida nos igarapés. São pequeninos e delicados, como a vida a que dão expressão. Fiquei numa felicidade só com esses quadros.
Almoçamos na Peixada do Canto. Restaurante familiar, tradicionalíssimo. Trinta e sete anos de existência. Dizem que é a melhor costela de tambaqui da cidade. De fato, uma delícia!!!! As costelas, assadas na brasa, chegam à mesa em espetos de churrasco. São enormes. Suculentas. Estava começando a comer quando o dono do restaurante, um senhor simpático e falante, acercou-se da mesa, bateu-me nas costas e me intimou a comer a costela com as mãos. Obedeci-lhe prontamente, e com o maior gosto. Há coisas que é realmente muito melhor comer com as mãos. Também provei ovas de pirarucu. Eu nem gosto de ovas de peixe, mas até que são boazinhas as do pirarucu.
No restaurante, Guida fez como eu faço sempre. Perguntou o nome do garçom e passou a chamá-lo pelo nome. Suspeito que ela começou a perceber as vantagens de tratar as pessoas não apenas com educação, mas com interesse e doçura.
Parênteses: mal acabo de escrever estas linhas e o céu já está novamente encoberto. Chove fininho.
Esta noite assistimos a um recital no Palácio de Justiça. Mais uma dessas construções com fachada neoclássica, enormes, imponentes, do início do século passado. Adoro os pés direitos altíssimos! Os salões são amplos, o piso em madeira corrida, bicolor. A decoração do teto é que parecia neobarroca. Fomos eu e Vivi. O pianista tinha apenas 16 aninhos! Jô Farah. Uma fofidade. Tocou divinamente. Prelúdios de Bach, a Sonata ao Luar, de Beethoven, Villa-Lobos e Ernesto Nazareth. A Sonata ao Luar já é melancólica, mas desta feita me pareceu ainda mais queixosa. Há uma dubiedade nela. Desconheço as circunstâncias em que Beethoven a compôs, porém, sinto que é um lamento de amor. Nada de dor dilacerante. Pelo contrário. Me sugere alguém que ao mesmo tempo celebra a existência de um amor imenso, e se entristece porque ele não é mais possível. O amor não acabou. Apenas não é mais o tempo de vicejar. Será puro delírio meu?
Depois do recital fomos ao Largo de São Sebastião tomar tacacá. Foi a primeira vez que provei essa sopa tão típica daqui. Tenho de confessar que foi uma experiência estranhíssima. Trata-se de algo bastante inusitado para o meu paladar. Aliás, o estranhamento começou pelo cheiro, esquisito, parece que a comida está azedada. E eles colocam uma goma visguenta e transparente (goma de mandioca), no caldo de tucupi. A sopa tem mesmo um leve sabor de comida azedada. E é também um pouco ácida. Gostei foi das folhas de jambu. Já não me lembrava do formiguamento gostoso que causam na língua. Creio, inclusive, que quando comi pato no tucupi, há doze anos, não senti o efeito do jambu com tanta intensidade. Eu e Vivi não conseguimos terminar a cuia. Acho que é um prato que precisa ser provado várias vezes, até que o paladar se habitue ao inusitado. A praça estava repleta de pais, crianças e namorados. Algumas crianças andavam em umas carrocinhas quadradas, como se imitassem palanquins... decoradas com fitas, pareciam mesmo uns palanquins sobre rodas. As caixinhas enfeitadas encaixam-se numa bicicleta, que rapazes franzinos penam para levar adiante. Outras criancinhas soltavam bolhas de sabão. Como não havia vento, montes de bolhas subiam juntinhas e lentamente, fazendo a noite escura brilhar, bem na altura da vista. Estava um clima tão de pracinha do interior, que não resisti e comi pipoca e algodão-doce. Até as carrocinhas de pipoca aqui têm desenho inglês!
Descobri uma coisa surpreendente hoje. O desenho do calçadão de Copacabana teria sido copiado ao do Largo de São Sebastião, que é de 1900. E representa o encontro das águas dos rios Negro e Solimões! Quem iria imaginar que um dos símbolos máximos do Rio de Janeiro possa ter sido emprestado à capital do remoto Estado do Amazonas. De volta ao hotel, preparo-me para uma madrugada de trabalho. Preciso terminar um relatório da Universidade. E não tenho mais nenhuma disposição de espírito para debruçar-me sobre essas coisas acadêmicas. Tem sido um sofrimento trabalhar nisso, sobretudo depois de uma noite inspirada pela Sonata ao Luar.

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