domingo, 15 de abril de 2012

O Mestre Gilberto Velho


“Morreu hoje, no Rio, o antropólogo Gilberto Velho, um dos maiores cientistas sociais brasileiros”. Acho que foi mais ou menos essa a notícia enunciada por Heraldo Pereira, no Jornal Nacional de ontem. Orientando de Ruth Cardoso, por quem nutriu sempre profunda admiração e carinho, Gilberto é certamente um dos principais responsáveis pela iniciação das Ciências Sociais brasileiras na tradição fenomenológica e interacionista, de origem americana, com raízes germânicas. Era um especialista em Georg Simmel e na Escola de Chicago. Talvez ninguém no Brasil conhecesse melhor a obra de Howard Becker, com quem mantinha uma amizade à distância. Gilberto Velho era também um exímio etnógrafo. Foi um pioneiro em pesquisas de campo urbanas, e talvez seja de sua autoria o primeiro estudo sobre comportamentos e valores das classes médias brasileiras, com foco, inclusive, no consumo de entorpecentes (Nobres & anjos). Mas não é do pesquisador e pensador que desejo falar. Nos próximos dias creio que muitos dos seus pares vão enaltecer, com toda justiça, o antropólogo excepcional e pioneiro da chamada Antropologia Urbana.
Quero falar do Mestre Gilberto Velho, do professor dedicado, do orientador atento e cuidadoso, da figura humana que se escondia por trás dos modos austeros e da voz grave. Meu primeiro contato com Gilberto Velho deu-se por meios de seus livros. Fazia minha graduação na UFPE quando li capítulos de Subjetividade e sociedade e Individualismo e cultura. Fiquei encantada. Por causa dele resolvi fazer a seleção para o Mestrado do PPGS, no Museu Nacional. Logo no primeiro semestre tive a sorte de me inscrever na sua disciplina sobre pensamento social brasileiro. Um novo mundo se descortinou para mim. Nesse único semestre, aprendi, com Gilberto -- e com o também Mestre Luiz Fernando Duarte -- o que quatro anos de graduação não me haviam ensinado. Devo a ele a descoberta de Gilberto Freyre, a quem eu até então via com mil reticências, considerando-o o ideólogo da democracia racial. Leitora, na graduação, dos críticos paulistas de Gilberto Freyre, nunca havia lido os textos do próprio. Assim, estudar Casa-grande & senzala e Sobrados e Mucambos, conduzida pelas mãos do Gilberto carioca foi uma experiência surpreendente e encantadora. Eu nem sabia disso na ocasião, mas esse evento mudaria o curso da minha vida intelectual.
Na sala de aula, como aliás em todos os outros ambientes, Gilberto Velho era um misto de sisudez e riso irônico. Era sério, compenetrado, rigorosíssimo com horários e compromissos. Ai de quem não lesse os textos (abundantes) para as aulas. Acho que ninguém nem se atrevia a entrar na sala sem as leituras devidamente realizadas. Faltar era melhor que submeter-se ao severo olhar de reprovação. E nem sei o que era pior, se não ler os textos, se chegar atrasado às aulas. Gilberto tinha uma relação inglesa com a pontualidade. Das muitas histórias que compõem seu anedotário de figura idiossincrática, é emblemática a de um jantar em sua casa em que os convidados chegaram com uns quinze minutos de atraso, todos juntos. O anfitrião abriu-lhes a porta em robe de chambre e informou-os, com muito pesar, que o suflê já havia murchado.
Mas voltando à figura do professor, é imprescindível dizer que Gilberto se doava a seus alunos na mesma medida em que exigia deles. Estava sempre disponível para conversas e orientações. Nas discussões em sala de aula, estimulava a participação de todos, acompanhava as apresentações de seminários com toda a atenção (desde que bem preparadas), fazia belíssimas introduções, indicava leituras pertinentes, procurava saber e instigar interesses e curiosidades individuais. Quando não estava em sala de aula, era certo encontrá-lo em seu gabinete -- com vista para o Jardim das Princesas --, disponível para os alunos, desde que devidamente agendados, pois não abria mão das formalidades.
Chegava ao Museu Nacional cedíssimo, antes mesmo dos funcionários. Quem ligasse para o PPGS antes das oito da manhã, certamente ouviria sua voz ao telefone, talvez fosse até vítima de uma de suas clássicas brincadeiras (não posso comprovar, mas dizem que ele se fazia passar por certas almas penadas, inclusive de sangue azul). Pois Gilberto era também um gozador, um trocista de marca. O porte altivo, aristocrático, os gestos contidos, a voz grave, a barba branca transmitiam uma impressão de severidade que contrastava gritantemente com sua natureza irônica e brincalhona. Era quase um oxímoro em forma de gente. Quem com ele tivesse apenas um contato superficial não imaginaria o apreço pela gozação. Gilberto era dessas criaturas capazes de perder um amigo para não perder a piada. Eram clássicos os seus trotes, os sustos que ele gostava de pregar aos desavisados que andassem pelos corredores do velho Palácio da Boa Vista, muito cedo ou já com o dia morto. Adorava inventar histórias embaraçosas sobre seus amigos, e sobre a fauna acadêmica em geral. Contava-as com tanta seriedade que qualquer pessoa seria capaz de reproduzi-las em juízo, como o mais cristalino dos fatos. Lembro-me bem de uma história sobre um professor da USP que teria avançado na orelha de outro, em razão de chifres postos, num desses colóquios científicos. A graça era ouvi-lo contando essas histórias com toda a compenetração.
Mal pude crer quando Gilberto Velho aceitou ser meu orientador de dissertação. Foi a glória no céu para um jovem antropóloga da província, como eu. Haviam me advertido sobre seus humores, temperamento difícil, rigor excessivo e até sobre seu estrelismo. Confesso ter ficado meio receosa a princípio. Fazia sentido que uma das mais prestigiadas figuras das Ciências Sociais brasileiras fosse um sujeito difícil e reservado no trato pessoal. Qualquer um que tenha passado por um Mestrado ou Doutorado, em qualquer instituição do mundo, já acompanhou ou viveu experiências traumáticas com orientadores: descaso, desinteresse, descompromisso, meses para dar uma resposta sobre um capítulo, para não falar de situações de assédio moral, frequentemente desastrosos para a auto-estima. Pois tive com Gilberto Velho a melhor das experiências. Com ele aprendi tudo o que sei sobre etnografia, pesquisa de campo. Com ele aprendi o ofício do antropólogo. Nunca deixou de me receber uma única vez, e com toda presteza. Acompanhou a evolução da minha dissertação com interesse e compromisso. Era rigoroso, sem dúvida. Estabelecia prazos e metas. Cobrava leituras e resultados. Em contrapartida, me dava todo o suporte possível. Nunca demorou mais que uma semana para me dar retorno sobre cada capítulo escrito. Era preciso nos comentários e indicações de leituras complementares. Foi atento ao meu trabalho de campo e pôs à minha disposição sua própria rede de relações, de modo a facilitar meu ingresso no mundo da Academia Brasileira de Letras, meu objeto de estudo. Foi sempre paciente e generoso com a aprendiz de cientista.
Felizmente, tive a oportunidade de dizer a ele, muitos anos depois, como ele foi importante na minha trajetória intelectual. Gilberto Velho não me legou apenas os fundamentos epistemológicos com os quais opero até hoje. Sua lição mais preciosa para mim me veio da sua postura de Mestre. Eis uma figura rara nos meios acadêmicos de hoje. Compromisso, interesse, disponibilidade, cobrança com apoio, rigor com estímulo, paixão pelo seu objeto, são características de um verdadeiro Professor, desses com “p” maiúsculo. Assim era Gilberto Velho.
Para encerrar essa longa homenagem, relato um episódio que me marcou pelo inusitado. Num dia normal de semana, ao final de uma reunião em seu gabinete, voltávamos de carro para a Zona Sul, eu, Cristina Patriota e João Felipe Gonçalves, seus três orientandos da turma de 1997, com Gilberto à frente, no banco do passageiro. Ao pararmos num sinal de Ipanema, um vendedor de balas aproximou-se da janela. Entabularam uma breve conversa e já não me lembra se Gilberto comprou-lhe as balas. O fato é que poucos segundos antes do sinal abrir, o vendedor exclamou: Mas vocês parecem uma família imperial! Talvez tenham sido o porte altivo e a barba branca e abundante do nosso Mestre os motivadores de tal comentário. O fato é que quando Cristina arrancou com o carro, nós três estávamos nos acabando de rir. Gilberto Velho pôs-se vermelho feito um pimentão, mas não conseguiu evitar o sorriso. No fundo, sabíamos nós, ficara contente com tal observação. Muito justa, aliás, para alguém de natureza tão nobre e rara. Sua partida precoce deste mundo me lembra uma frase do “Retábulo de Santa Joana Carolina”: Morreu no fim do inverno. Nascerá outra igual na próxima estação?.

Nenhum comentário:

Postar um comentário