Boa noite, Nica!
Hoje tive um dia mais
leve. Acabei saindo de Roncesvalle apenas às 11 da manhã, depois de rezar um
pouco na Igreja. A Igreja do Mosteiro tem uma imagem lindíssima da Virgem de
Roscenvalles, do século XIII, em madeira toda coberta de prata. Ela está
sentada, olhando para o Menino Jesus que está no seu colo. Há algo de muito
terno e especial na imagem, que apesar de não ser grande, “domina” completamente
a grande nave da Igreja. Os olhos da gente são como que “chamados” pela imagem,
o tempo todo. A Igreja é igualmente bela, com enormes vitrais por detrás do altar,
e uma espécie de dossel de madeira que pende do teto, sobre a imagem da Virgem.
Acabei que saí do Mosteiro sem conseguir tomar meu chá. Descobri que a área da cozinha só reabre
depois das duas da tarde. Paciência. Comi um pedacinho do delicioso queijo de
ovelha que comprei ontem e pus o pé na estrada.
Quando se sai de Roscenvalles,
toma-se uma estradinha no meio de um bosque, que corre paralela à rodovia. É
muito agradável caminhar no meio das árvores. Pouco metros após a saída da
cidade, há uma bela Cruz de pedra, do século XIV, já naquela altura dedicada
aos peregrinos. Depois da Cruz, a gente continua andando pelo pequeno e
simpático bosque, que margeia a autoestrada. Poucos quilômetros adiante, está
uma pequena vilazinha chamada Burguete. Bem na esquina, à entrada da vila, há
um mercadinho. Parei para comprar frutas, iogurte e pão, já que não havia
tomado café. No mercado conheci um irlandês que é justamente da cidadezinha
onde eu morei, Cavan!!! Incrível, né?! Cavan é um ovinho, perdido no coração da
Irlanda, e em pleno Caminho de Santiago eu vou encontrar justamente um sujeito
de Cavan! Após fazermos as compras, eu e Padrick (com “d”mesmo) nos sentamos
numas mesas de pedra que há num gramado bem em frente ao mercadinho. Tivemos
uma conversa muito interessante enquanto comíamos. Padrick havia partido de
Saint Jean de manhã cedo! Fiquei impressionadíssima, claro. Ele está “correndo”
o Caminho. Terminado o café da manhã, ele seguiu em sua corrida e eu continuei
no meu ritmo, lento e contínuo. Disse a Padrick que se ele encontrar Jean em
Cavan, mande lembranças minhas! Seria muito divertido....
Estou decidida a
respeitar o ritmo do meu organismo. Ontem, quando cheguei em Roncesvalle,
estava exausta. Meus pés, sem as botas, doíam até para caminhar entre a cabana
e o banheiro. Confesso que tive receio se seria capaz de caminhar hoje. Para
minha surpresa, ao colocar as botas (que têm uma palmilha especial), o desconforto
desapareceu. E como coloquei jornais dentro das botas, à noite, elas amanheceram
sequinhas! Pus um par de meias secas e caminhei numa boa. As costas me doíam um
pouco. Dor muscular. Me alonguei bem antes de iniciar a caminhada do dia, e pus
o creme (hot/cold), que, como eu te
disse, distrai o cérebro. Ao longo do dia de hoje, ainda senti um pouco a
coluna, mas bem menos que ontem. É tão engraçado como o medo trava a gente. A
gente fica achando que não vai dar conta, e acaba que se surpreende com nosso
próprio desempenho.
Burguete, como todas
as cidadezinhas que tenho visto aqui no País Basco, é formada por um punhado de
sólidos casarões brancos, de dois ou três andares, com janelões em madeira
vermelha ou ocre. Alguns tem flores nas sacadas. As portas são enormes, com
fachadas em pedra. Alguns casarões têm placas ou incrustações nas paredes, que
indicam a data de construção: século VXIII, mais frequentemente. As paredes
brancas com as janelas encarnadas parecem ser um padrão. Saint Jean também é
assim. Essa padronização gera uma delicada sensação de harmonia. Numa determinada
esquina de Burguete (onde há uma agência do Santander), a sinalização do
Caminho nos orienta em direção a uma pontezinha que passa sobre um pequeno
riacho. O peregrino sai da cidade e passa a caminhar em meio a pastos, onde
belas vacas cor de creme pastam pachorrentamente. Quando comecei a caminhar
nessa estradinha, senti que um perfume doce e gostoso tomava conta do ar. Desde
ontem havia sentido esse perfume, mas não conseguia atinar o que era. Hoje,
descobri. É camomila. Seu arbusto cresce ao longo do caminho, como mato. De
vez em quando o vento trazia o perfume, que me deixava encantada. Completando o
cenário bucólico, os chocalhos das vacas, assim como os das ovelhas ao longo do
dia de ontem, criavam uma trilha sonora perfeita para o contexto.
Caminhar nessas
condições foi literalmente um prazer, tanto mais que fez um dia agradabilíssimo
hoje. No início, até pensei que fosse chover. No entanto, o tempo se firmou, o
sol saiu e mesmo sentindo um pouco de calor de vez em quando, diria que o tempo
esteve perfeito. Tinha posto minha roupa molhada pendurada do lado de fora da
mochila e precisava mesmo do sol para secá-las. De vez em quando, ao me voltar
para trás, me deliciava com a vista das montanhas ao redor. E assim fui
seguindo o caminho, que, nesse trecho, varia entre as pastagens das fazendas ao
redor, e pequenos trechos de bosques. Sempre muito agradável. Não encontrei
nenhum dos cachorros que costumam incomodar os peregrinos nesse trecho.
Como saí mais tarde de
Roncesvalle, encontrei bem menos gente pelo Caminho. Ainda assim, sempre tinha gente
à frente e atrás de mim. A dinâmica do Caminho é muito interessante. As pessoas
acabam se aproximando de você, entabulando alguma rápida conversa, e depois
seguem em frente. Lá adiante pode ser que você se reencontre com a mesma
criatura. Foi o que aconteceu com Katherine, uma americana nos seus cinquenta
anos, que está fazendo o Caminho sozinha, como eu. Nos encontramos após
Burguete, no meio dos pastos, mas ela ia num passo acelerado, e acabamos nos
reencontrando em Bizkarreta, como vou te contar já, já.
Caminhei mais alguns
quilômetros, passei por uma outra cidadezinha basca, do jeitinho que te
descrevi. Chama-se Espinal. Tanto em Burguete como em Espinal cheguei a pensar
em parar e me hospedar numa das pousadas familiares, para descansar melhor meu
corpo e dar a ele a chance de se acostumar com a nova atividade física, mas nos
dois casos, me sentia tão bem disposta que resolvi seguir adiante. Devo dizer que
ainda peguei pequenas subidas no trajeto de hoje, e algumas descidas também,
mas tudo razoável. Claro que respeitar o ritmo do meu organismo tem ajudado
muito. Quando estava cansada, parava, sentava numa pedra, ou sob uma árvore,
junto a um pasto, descansava, comia, bebia água. Enfim. Posso dizer, que curti
bastante a caminhada de hoje, que teve uma variação interessante de cenários.
Vários pequenos bosques, cada um com um jeitinho distinto do outro. Além disso,
fui rezando por todas as pessoas que são importantes na minha vida. Como o
tempo passa rápido quando a gente vai rezando! Ainda estava no meio da minha
lista e, quando menos esperava, cheguei a Bizkarreta (ou Viscarreta). Tomei informações
à entrada da cidade e descobri que a próxima cidade se situa a 12 kms. Como já
eram quase quatro da tarde, e já não havia muita gente caminhando, decidi
encontrar um lugar para passar a noite. Estava me dirigindo a uma pousada, quando
encontrei Katherine, que estava na mesma situação que eu. Fomos à pousada
juntas e havia justamente um quarto duplo disponível. Então, estamos aqui,
compartilhando o quarto. Mais uma vez, me sinto agradecida à Providência
Divina. Sozinha, eu teria que pagar o dobro pelo quarto. Esse quarto de pousada,
depois das duas noites de albergue, é um luxo. Finalmente pude tomar um gostoso
banho quente, num banheiro decente, e vou dormir numa cama de verdade. É uma
mudança salutar, creio.
Katherine tem cinco
filhos. Agora que os últimos entraram na faculdade, resolveu viver sua própria
vida. Um filme chamado The Way, despertou
nela a vontade de fazer o Caminho. Mesmo processo que levou uma outra americana
que conhecemos aqui em Bizkarreta a fazer o Caminho de Santiago. Acho que
preciso ver esse filme também. Ela não fará o Caminho todo, como, aliás, muitas
pessoas que eu tenho encontrado. E uma outra coisa que está me chamando a
atenção é que muita gente está fazendo o Caminho por uma questão de testar seus
limites. Achei isso muito curioso.
Após o banho, eu e Katherine
saímos para dar uma volta pela minúscula cidade de Bizkarreta. Compramos
comidinhas na única mercearia local, e tentamos visitar a Igreja do século
XIII, que parecia uma gracinha por fora. Nada feito: Igreja fechada. Numa casinha
próxima, havia uma senhora sentada à porta. Perguntei sobre a Igreja e ela
começou a se lamentar da ausência de padres, e do fato de que a Igreja agora só
abre em alguns domingos, ou quando há algum funeral. Doña Rosita teria
conversado o resto da tarde e a noite inteira, se eu não a tivesse cortado,
porque afinal, Katherine não estava entendendo nada (uma bênção a pessoa poder falar
vários idiomas!).
Enfim, tive um dia feliz.
Caminhei apenas 12 kms, mas sei que será muito bom para meu corpo repousar um
pouco depois da tirada de ontem. Vou dormir bem. Lavei minha roupa, que já está
seca, e tive conversas muito interessantes com algumas belas criaturas. O
melhor é que amanhã não preciso acordar muito cedo, pois quero pegar a onda da
galera que vem de Roncesvalle, e que só deve estar chegando por aqui lá pelas
onze da manhã.
Aprendizado do dia: Como é importante fazer as
coisas pelas razões certas! Encontrei uma canadense na estrada e perguntei a
ela porque está fazendo o Caminho. Ela estava visivelmente cansada. Sua
resposta foi: “Neste momento, eu não sei porque estou fazendo isso”.
Imediatamente pensei nas vezes, desde que comecei o Caminho, em que me senti super
cansada, com dores pelo corpo (nem te falei, mas ainda por cima, ontem era meu segundo dia
de menstruação...), com frio, fome. Mas em absolutamente todos os
momentos eu me senti feliz e agradecida pela oportunidade de estar realizando
essa jornada. Creio que quando a gente tem a motivação certa, e quando essa
motivação nasce no nosso coração (que nunca se engana), a gente encara as
dificuldades com muito mais garra e determinação.
Por hoje é isso, Minha
Irmã. Vou dormir ao som dos sinos da Igrejinha. Não sei como é isso, mas sei
que os sinos da Igreja fechada estão badalando. Fica com Deus!
Beijos e saudades,
Léia
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