sábado, 26 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 15


25/09/15

Boa noite, Nica,
Me dou conta de que bagunço a cronologia dos fatos. Espero que isso não cause confusão. Já tendo feito o relato do dia de hoje, agora pela tarde. Passo a te contar sobre o dia de ontem. Tomei um gostoso café da manhã no albergue de Dona Amparo. Pão fresquinho, geleias caseiras, suco de laranja. Dona Amparo não economiza. Coloca a comida na mesa e a pessoa se serve à vontade. Bem se vê que ela tem prazer em alimentar as pessoas. Tinha sido assim no jantar da noite anterior. Esqueci de te dizer que comi um peito de frango com molho de pimentões vermelhos absolutamente divino. Foi Dona Amparo que me explicou que eles assam os pimentões na lenha, e depois despelam e põem no azeite. Afe! Uma coisa de gostoso.
Após meu lauto café da manhã, tomei meu rumo. Pra variar, fui a última a deixar o albergue. Porém, assim que deixei a pequena e feiosa Cirueña pra trás e entrei pela estradinha de terra, encontrei o grupo de italianos que jantara no albergue na noite anterior. Cristina, a única do grupo que falava bem inglês, se aproximou e começamos a conversar. Ela está fazendo o Caminho em busca de paz interior. Queria sair da rotina acelerada e estressante e se reencontrar consigo mesma e com Deus. Cristina mora na Suíça por conta do trabalho e tive a sensação de que é uma pessoa um pouco solitária. Batemos um bom papo enquanto descíamos e subíamos colinas desnudas, com os campos em processo de aragem, até chegarmos a Santo Domingo de la Calzada.
A entrada da cidade é cheia de galpões, portanto, meio feiosa. Já o centro histórico é uma graça. Tem uma Ermida bem bonitinha, de N. Sra. De la Plaza. O altar é simples e delicado, com pinturas que parecem ícones, e, no meio, uma imagem de Nossa Senhora sentadinha com o Menino Jesus no colo. Do lado direito, uma bela torre de sinos, com um carrilhão, que deve ser do século XVIII, tal como a torre da Catedral, ambas com um certo maneirismo na decoração. Mesmo com o cansaço permanente de pés e pernas, decidi galgar os muitos degraus dessa torre. E valeu demais, porque se tem uma bela vista do vale onde se situa a cidade, com montanhas ao fundo. Também foi de lá que vi os remanescentes da muralha que um dia cercou a cidade.
Visitei, ainda, a Catedral de Santo Domingo de la Calzada. Tem um milagre famoso atribuído a esse Santo, que nasceu e viveu nessa região. Conta-se que um casal de peregrinos seguia para Santiago com o filho. Ao pararem numa hospedaria, a filha do hospedeiro se engraçou com o rapaz, que não lhe deu bola. Com raiva, a moça colocou uma peça valiosa entre os pertences dele. Pela manhã, a moça o acusou de furto. O rapaz foi enforcado. Os pais, que assistiram ao enforcamento, se preparavam para partir, quando ouviram o filho dizendo que estava vivo. Correram, então, à casa do juiz, que estava comendo. Contaram-lhe a história, pedindo que lhe soltassem o rapaz, e o juiz disse que o rapaz estava tão vivo com o galo e a galinha que ele comia. Nesse instante, penas começaram a crescer e o galo e galinha saltaram das travessas e saíram cacarejando pela sala. O rapaz foi libertado e pôde seguir viagem com os pais. Teria sido Santo Domingo que salvou sua vida, sustentando-o pelos pés.
A Catedral, gótica, não é especialmente bonita, mas tem algumas particularidades, em função da forma arredondada de suas paredes. O altar fica num patamar no centro da nave principal e tem apenas um enorme crucifixo de madeira, sem imagem, pendendo do teto. No semi-círculo em volta do altar encontram-se os altares laterais, a maioria decorada com retábulos, um deles apenas com uma antiga Imagem de Nossa Senhora. No último altar à esquerda encontra-se o retábulo principal, que é interessante porque acompanha o arredondado da parede. É um retábulo barroco (sec. XVI), rebuscadíssimo, com várias cenas da vida de Jesus, do nascimento à morte, uma Imagem de Santiago e num dos nichos centrais, uma Imagem do Criador. É tanta informação que a pessoa fica meio atordoada.
Essa Catedral tem o túmulo com as relíquias de Santo Domingo de La Calzada, no subsolo. Acima dele, na nave da Igreja, está seu mausoléu (1954), esculpido em mármore, com detalhes em prata e uma grande Imagem do Santo. Em frente ao mausoléu, um galináceo, onde vivem um galo e uma galinha (belas aves, enormes e emplumadas), como referência ao milagre mais conhecido de Santo Domingo. O mais interessante da Catedral é o museu sacro que há ao lado, com belas peças de entre os séculos XII e XVIII, incluindo uns ex-votos em marfim, de clara inspiração oriental, que me pareceram curiosíssimos, além de verdadeiramente belos. Na coleção, há uma vitrine de pertences de trabalhadores dos retábulos, que foram encontradas em obras de restauração.
Acabei passando umas duas horas e meia visitando esses monumentos de Santo Domingo. E olhe que não caminhei até os restos da muralha porque já era meio-dia e eu ainda tinha dezessete quilômetros de caminhada pela frente. Na saída de Santo Domingo há uma Ermida e logo após, uma ponte. A gente segue caminhando por uma estradinha paralela a uma rodovia. Na realidade, durante boa parte dos dias de ontem e de hoje, caminhei paralela a essa rodovia, o que significa um ambiente mais barulhento. Às vezes o Caminho se afasta um pouco da rodovia, e a gente pode desfrutar melhor da paz dos campos e colinas do entorno. Em vários pontos o Caminho cruza a rodovia, que é muito movimentada, com muitos caminhões. É preciso atenção para atravessá-la.
A paisagem ao longo de todo o dia de ontem foi em grande parte como te descrevi: campos desnudos, alguns deles sendo arados por tratores. Vales e colinas se sucederam na monotonia do tom ocre, aqui e acolá pontuado pelo verde de alguma plantação de vegetais, ou pelo amarelo e marrom dos girassóis. No entanto, como fazia um céu azul luminoso, o contraste era bonito. Em alguns trechos, na linha do horizonte, se podia vislumbrar uma cadeia montanhosa. Várias subidas, o que tornou esse percurso de ontem mais cansativo. Tanto mais que pela tarde fez um calor danado. O sol estava tinindo.
Após Santo Domingo passei por Grañon, um pequeno povoado, onde há uma Igreja que acolhe peregrinos. Quando cheguei, o pároco estava sentado a uma mesa, nos fundos da Igreja, recebendo os peregrinos, com biscoitos, e explicando os procedimentos. Justo ao lado desse pequeno gramado, há uma espécie de pracinha, com bancos e uma fonte no meio. Sentei-me ali para comer um sanduíche (com pão fresquinho que comprei numa padaria local) e fiquei escutando o padre explicar que eles têm um jantar comunitário, em que todos ajudam a preparar, há uma missa antes do jantar, e depois cada um pega um colchonete e todos dormem na torre da Igreja. Achei super interessante. Na verdade, Cristina tinha mencionado algo a respeito e ela estava entre os que se registravam para passar a noite na Igreja. Fiquei com muita vontade de fazer uma experiência semelhante. Mas precisarei comprar um cobertor em Burgos, porque as noites estão cada vez mais frias e não creio que aguentaria o frio de uma torre de Igreja sem estar devidamente preparada. Cristina me disse que há outras Igrejas que acolhem peregrinos, ao longo do Caminho.
Grañon é um povoado bem simpático, casas bem conservadas, ruas limpas, um bonito mirante na saída da cidade, com vista para o vale abaixo e colinas ao fundo, e a Igreja de São Pedro, que é simples, sem excessos na decoração. Num retábulo secundário, há uma bela representação da Santíssima Trindade. Antes de deixar a cidade, tomei um chá e comi um bolo com laranjas assadas por cima, simplesmente divino!
Cinco quilômetros depois de Grañon está Redecilla del Camino, que tem de interessante uma Pia Batismal do século XII, com detalhes meio mouriscos. A Igrejinha de Nossa Senhora da Calçada é fofinha, pequena, com paredes brancas e muito simples. O altar barroco não é muito exagerado, e numa das paredes laterais há um belo crucifixo, com um Cristo de rosto sereno, que muito me agradou. A Imagem parece ser antiga, mas por alguma razão não tem os traços cadavéricos e sombrios das Imagens de Cristo crucificado que se costuma ver nessas Igrejas medievais.
Ainda cruzei Viloria de Rioja, um povoado com três ou cinco ruas, até chegar a Villamayor del Río. Nesse último trecho de caminhada, encontrei Paquita, uma catalã bem gordinha, que está fazendo o Caminho também em buscar de serenidade e de um encontro consigo mesma e com Deus. Fomos conversando até Villamayor, que não chegava nunca! Ontem foi um dia mais puxado. Caminhei quase 23 kms, e não sei se por isso, mas o fato é que esse último trecho me custou uma eternidade. Quando chegamos em Villamayor, as amigas de Paquita estavam sentadinhas nuns bancos à entrada do povoado, que tem apenas uma rua. Adorei escutá-las conversando em catalão. Parece tão diferente do espanhol! Não havia uma única palavra que me soasse familiar.
Villamayor del Río é quase um povoado abandonado. As casas estão bastante deterioradas e havia um cheiro desagradável no ar. Lembrei-me da queixa da senhorinha que encontrei no ponto de ônibus em San Millán de que a juventude está toda indo embora desses povoados. Os jovens vão-se embora atrás de oportunidades nas cidades maiores e os povoados estão basicamente habitados pelos idosos. E realmente, a gente vê sobretudo pessoas de mais idades nas ruas dessas vilazinhas. Mas Villamayor, assim como Cirueña, me deu uma triste impressão de abandono e decadência.
Meu albergue, na verdade, ficava fora do povoado, do outro lado da rodovia. Me despedi de Paquita e de suas amigas e me dirigi ao albergue. Como já te disse, é um lugar simples, sem internet, e a dona tem jeito de poucos amigos. Em todo caso, a cama parecia limpa e pude tomar um banho quentinho. Cheguei muito cansada. Fiz um lanche com comida que ainda tinha na mochila e me deitei cedo.
Um evento me deixou pensativa. Em Grañon, quando me sentei nos banquinhos para comer, havia vários peregrinos que estavam por ali, porque esperavam para se registrar, e eu fui incapaz de oferecer-lhes do pão e do queijo que tinha comigo. Eu tinha sobrando, só que pensei que seria meu jantar, e por isso não consegui ser generosa o suficiente para oferecer aos que estavam por ali. Fiquei chateada comigo mesma depois. Sempre há onde comprar comida ao longo do Caminho. Não faz nenhum sentido ter esse tipo de apego. Espero ter aprendido a lição. É preciso generosidade pra viver na abundância.
É isso, Niquinha. Amanhã (26/09) devo caminhar quase 19 kms. Meu plano é dormir em Atapuerca. Mando notícias de lá.
Fica com Deus!
Grande beijo,
Léia

Nenhum comentário:

Postar um comentário