terça-feira, 29 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 17


28/09/15

Minha Amada Nica,
Estou em Burgos! Essa cidade é preciosa! Bem mais encantadora que Pamplona!
Cheguei ontem, na verdade. Porém, estava muito cansada e sem muita estrutura para escrever, porque dormi no albergue municipal. Hoje mudei para um hotelzinho. Resolvi me dar uma boa noite de sono de presente. Preciso descansar de verdade, pois há quase uma semana que não venho dormindo direito. Sempre acordo no meio da noite umas três ou quatro vezes, e seis da matina começa o movimento dos peregrinos. Estava me sentindo muito cansada, então, achei que era sábio repousar de verdade por duas noites, para repor as energias. Ficarei mais um dia em Burgos, pois consegui um horário numa clínica dentária amanhã de manhã. Preciso ver meu dente que está sensível, antes que ele se transforme num grande problema. Confesso que adorei ter de ficar mais um dia em Burgos! Amanhã te escrevo contando tudo sobre essa charmosa cidade.
Deixe-me, agora, falar sobre o dia de ontem. Dormi num quarto bem pequeno, com mais 5 pessoas. Dentre elas, duas canadenses muito simpáticas. A mais jovem está com o pé todo estourado de bolhas. Fiquei morrendo de dó. E olhe que ela passou seis meses treinando com as botas, e ainda por cima carregando mochila e subindo montanha. Eu tenho que agradecer muito! Pra quem é sedentária feito eu, que não treinou nada, e ainda por cima está acima do peso, tenho de me dar por muito satisfeita com minha pequena inflamação no pé e nas costas. Deus me conserve livre de bolhas!
Seis e meia da manhã a galera acordou e começou a se movimentar, e eu com eles. Ainda estava completamente escuro e eu pude ver o céu estrelado quando fui logo pegar a roupa que eu tinha deixado secando no varal. Para minha tristeza, descobri que estavam mais molhadas do que quando eu terminei de lavá-las. Um orvalho brabo deixou tudo ensopado. Parecia até que tinha chovido. Isso é pra eu aprender a não deixar roupa de noite no varal. Após catar minha roupa, fui tomar meu café na cozinha, para evitar o congestionamento dos banheiros. Sempre que é possível, tento andar no contrafluxo do movimento dos albergues, para não ter de perder tempo em fila de banheiro, ou disputar espaço na cozinha coletiva.
Como sempre, fui das últimas pessoas a saírem do albergue. Creio que eram umas oito e meia. Com meia dúzia de passos, cheguei na altura de uma estátua de um homem primitivo (Atapuerca tem um importante sítio arqueológico) e dobrei à esquerda, seguindo o Caminho. Havia uma quantidade razoável de peregrinos caminhando, mas já era a galera que saiu da cidade anterior, bem cedinho. Começamos a subir uma encosta. A manhã estava gelada e eu até achei bom o esforço da subida, porque me ajudou a aquecer um pouco o corpo. Passamos por uma propriedade com centenas de ovelhas meio beges com cabeças e patas marrons, e mais ou menos nessa altura, me virei para trás e surpreendi um belíssimo nascer do sol, no meio de uma densa névoa. Fiquei emocionada. Por dois ou três quilômetros caminhamos assim, subindo um monte, em meio a uma névoa que foi ficando cada vez mais densa, e o sol subindo por trás de nós, porém, ofuscado pela névoa. Só se viam os vultos dos peregrinos e das árvores contra o véu branco da neblina. Lindo demais.
O terreno era meio pedregoso e a subida foi puxadinha, até que atingimos o cume da colina, onde há uma grande cruz. Pouco adiante, avistei uma enorme espiral desenhada no chão, com pedras. E junto à espiral, um grande coração, também feito de pedras. Imagino que seja a mesma pessoa que fez desenhos no chão que eu tinha visto na etapa anterior. E quem sabe se não é o mesmo que fez os totens de madeira... em todo caso, é sempre uma bela dádiva para os peregrinos. Ainda subimos um tiquinho, e, de repente, avistamos um extenso vale ao pé desse monte. A vista do vale é muito, muito bela. Vêem-se algumas vilas com suas torres de Igreja salientes, e, lá no fundo, em meio à névoa, me deu a impressão de ver os contornos de alguma grande cidade, que imaginei ser Burgos. No fundo de tudo, uma cadeia montanhosa com torres de energia eólica. Sabe que em inglês eles chamam essas torres de Wind mills? Pois a terra de Dom Quixote está literalmente cheia de moinhos de vento. A vida imitando a arte?!
A descida da encosta para chegar ao vale até que foi tranquila, mesmo com o terreno pedregoso. Em certo ponto, há uma bifurcação, com duas possibilidades para o Caminho. Uma segue junto a uma estrada mais movimentada, a outra entra pelo vale e passa por dois pequeninos vilarejos. Segui pela esquerda, para passar pelos vilarejos e apreciar uma paisagem que me pareceu mais bucólica. Caminhei por entre campos cobertos por tocos de alguma planta cor de palha. A essa altura o céu já estava limpíssimo e o céu era de um azul luminoso. O contraste entre o azul celeste intenso e o ocre os campos é sempre belo, e produz em mim uma sensação profunda de paz. De vez em quando, de uma curva da estrada, num ponto mais alto, se podia avistar as montanhas ao longe, ainda cobertas de névoa. Passei por uma localidade chamada Villaval, onde há uma Igrejinha em ruínas, e pouco depois cheguei a Cardeñuela Rio Pico, onde há um lugar bem estruturado para tomar café da manhã. Até pensei em parar pra tomar um leite quente, mas havia muitos peregrinos ali e uma fila considerável no balcão. Resolvi seguir adiante. Subi até a Igrejinha do local, que estava fechada. Talvez menos de um quilômetro depois, cheguei a Orbaneja Rio Pico, e num café desse vilarejo, encontrei os dois italianos com quem havia caminhado no dia anterior. Sentei-me com eles, tomei meu leite quente e comi uma tapa de polvo, que parecia deliciosa. Eu sei que polvo não tem nada a ver com leite, mas a tapa estava tão linda, que não resisti. O polvo estava macio e saboroso.
Caminhei o resto do dia com Ella, Cármine (que não se chama Hugo) e uma jovem alemã, Kathie, que encontramos na saída de Orbaneja. Foi um dia agradável de caminhada, na companhia dos três. Todos em busca de uma mudança interior que lhes permita mudar a própria vida e encontrar mais paz e felicidade. Pouco antes de chegar a Burgos, após cruzarmos uma ponte sobre ampla e movimentada rodovia, há uma nova bifurcação, com duas possibilidades de seguir o Caminho. Uma delas acompanha essa rodovia e, conforme os guias do pessoal (eu não tenho nenhum), atravessa uma zona industrial, na entrada de Burgos. A outra vai margeando um rio. Obviamente, tomamos o caminho da esquerda, que deveria nos levar até esse rio. Passamos por uma espécie de aeródromo e logo depois, cruzamos uma simpática pontezinha e começamos a caminhar no meio de um bosque, com o rio à nossa direita. Caminhamos quilômetros nesse bosque, que já começa a se vestir com o amarelo e o alaranjado do outono. Bancos e mesas de piquenique, churrasqueiras, ciclistas e pessoas passeando, caminhando ou correndo, deixaram evidente que estávamos em um parque urbano. Em certo trecho, o rio se alarga um pouco e assume ares de um simpático lago, com capim alto e patos nadando. À margem, puseram areia fina e branca, como se fosse uma pequena praia.
Ainda caminhamos muitíssimo nesse parque, passando por debaixo de pontes e seguindo por uma extensa alameda, com árvores de um lado e uma murada protegendo o rio, de outro. Eu já estava cansadíssima e não via a hora desse parque ter um fim. Ao mesmo tempo, estava feliz de termos escolhido esse caminho para entrar em Burgos, pois o parque é belo, agradável e nos propiciou uma sombra providencial no dia quente e ensolarado que fazia. Finalmente, dobramos numa ponte à nossa esquerda, para procurar o hotel para onde eu havia despachado minha bagagem e que ficava um pouco antes da entrada da cidade antiga. Chegamos a uma grande avenida, com prédios altos e modernos. Recolhemos minha mochila. Eu até havia pensado em ficar nesse hotel, mas meus companheiros queriam dar uma olhada no albergue municipal. Poucos metros à frente, nos deparamos com as primeiras construções históricas e avistamos um dos arcos que dá acesso ao centro histórico.
Após cruzarmos os arcos, começamos a andar por ruazinhas estreitas, com altos sobrados, coloridos e com enormes janelões de vidro, em estrutura de madeira, meio projetados para fora. Ainda não consegui verificar a informação, mas me deu a impressão de que são edifícios de princípios do século XX, estilo Belle Époque. Em todo caso, são simplesmente um charme! Fiquei apaixonada por Burgos logo à primeira vista. Fomos subindo as ruazinhas (Kathie tinha um providencial GPS no celular dela) até chegarmos ao albergue municipal, que fica num prédio histórico (creio que um antigo mosteiro), mas está todo renovado. Tudo novinho em folha e com um ar moderno e descolado. Ainda havia lugar disponível e custava apenas cinco euros. Nossos beliches eram no sexto andar.
Deixamos as mochilas e estávamos tão famintos (eram quase quatro da tarde), que saímos imediatamente para almoçar. Encontramos um restaurante bem simpático, com menu peregrino a dez euros. Eu comi, mais uma vez, peixe com um delicioso molho de tomate e pimentões. Após o almoço, eu e Cármine voltamos ao albergue para tomarmos banho e descansarmos um pouco antes de irmos à missa (era domingo). Ella e Kathie foram em busca de uma farmácia e um mercadinho.
Banho tomado, um pouco de repouso e eu e Cármine nos dirigimos à Catedral, para a missa das 19:30h. A Catedral está muito perto do albergue. Assim que subimos a ladeira, nos deparamos com a imensa construção no que eles chamam de gótico florido. Absolutamente linda! O céu ainda estava bem azul e o contraste com o branco das pedras produz um efeito magnífico. As torres altas, cheias de detalhes, se projetam para o infinito, imponentes. Mas amanhã te falo mais sobre a Catedral, que visitei com calma hoje. Ficamos tão abasbacados admirando a edificação e tirando fotos, que chegamos à missa com cinco minutos de atraso. A pequena capela destinada ao culto estava cheia. O interior não me agradou tanto, com sua decoração excessiva e muito colorida no teto e nas paredes, num estilo rococó, bem posterior à construção do edifício. Em contrapartida, adorei o forte cheiro de incenso no ar, que parece dar certa gravidade ao ambiente de culto.
O sermão do padre foi demasiado longo e pouco expressivo. E as leituras eram tão fortes. Tanto a Primeira Leitura como o Evangelho mostravam a reação enciumada dos discípulos e “escolhidos” quando outros pregavam e operavam milagres em nome de Deus. A reação de Moisés e de Jesus foi a mesma: quem prega o Amor e opera milagres sempre age inspirado por Deus. Fiquei pensando em como essas passagens relativizam o poder e a importância da Igreja, de qualquer Igreja. Não no sentido de que a Igreja seja desimportante, pois creio na relevância da vida em comunidade, mas no sentido da exclusividade. São muitos os Caminhos para Deus, e são muitos os Caminhos de Deus. É uma pena que os homens se esqueçam disso com tanta frequência.
Após a missa, o padre abençoou os peregrinos. Quando saímos da Catedral, a noite estava nascendo. Fazia um friozinho danado. Cármine estava muito emocionado e sentou-se nos bancos de pedra rente a uma murada da Catedral. Um casal de senhores italianos que o conhecia se aproximou. A senhora ficou conversando com ele, e eu fiquei conversando com o senhorzinho. Uma lindíssima lua, quase cheia, despontou no céu, por detrás da catedral. E foi com essa imagem, lindíssima, que me recolhi ao albergue. Kathie estava num bar em frente, tomando cerveja com outros peregrinos. E Ella lavava nossa roupa nas máquinas do albergue. Fiquei com ela, esperando a secadora terminar seu trabalho e finamente fui me deitar, exausta.
Só que não dormi bem. Na verdade, faz umas cinco noites que eu não durmo direito. Especialmente quando tenho de dormir no beliche superior, passo a noite meio inquieta. Por isso, resolvi mudar-me hoje para o hotelzinho de onde te escrevo. Também tomei uma outra resolução importante. Ao carregar minha mochila ontem, só pelas ruas de Burgos, voltei a sentir minha coluna. E me convenci de que é mais prudente ficar despachando a mochila até o final do Caminho. Se eu não fizer isso, corro o risco de não conseguir chegar ao final. Paciência. Cada um conforme a medida das suas forças. É tão interessante como o Caminho obriga você a viver no presente! Pelo menos comigo tem sido assim. Sinto que tenho de viver um dia de cada vez. Cada etapa vencida é uma conquista. E aí, quando você acorda, pede forças para chegar até o final daquele dia. E ponto. O resto, é entrega.
Boa noite, Minha Irmã! E beijos mil,

Léia 

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