sábado, 12 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 4


12/09/2015

Boa Noite, Niquinha!

Mais uma jornada cumprida, Graças a Deus. Quase dezesseis quilômetros de caminhada hoje.
Acordei feliz da vida, porque pela primeira vez em vários dias consegui dormir confortavelmente, por oito horas seguidas. Gostei muito dessa La Posada Nueva, em Bizkarreta. A dona, Cristina, é muito simpática. Me convidou para voltar e ficar com ela alguns dias, sem pagar, em troca de eu ensinar inglês. É tão interessante como as pessoas de Interior, acho que em qualquer lugar do mundo, são mais abertas, mais desarmadas. É tão fácil estabelecer conexões! 
Katherine partiu cedinho. Eu acordei umas oito e tomei café, na pousada, com um casal de americanos muito gente boa. Na realidade, Norma é filipina, naturalizada americana, e Tom é americano da gema, médico aposentado. Após alguns minutos de conversa, ficou combinado de caminharmos juntos no dia de hoje. E para minha suprema felicidade, eles estão pagando um serviço que leva a bagagem da pessoa de uma cidade a outra. Custa sete euros. Eles me ofereceram pra mandar meu saco de dormir junto com a bagagem deles. Topei na hora, claro. E, realmente, ao longo do dia pude constatar que esses três quilos fizeram enorme diferença. Caminhei bem mais leve, logo, a coluna reclamou menos.
Estou me alongando todas as manhãs, antes de sair, e acho que também tem me ajudado bastante. Com relação aos pés, estou colocando um creme francês, próprio para desportistas, que a moça de uma loja de equipamentos de montanha, em Paris, me indicou. Até agora tudo tranquilo com meus pés. Deus permita que continue assim.
Bom, o dia, na verdade, começou com uma notícia tristíssima. Uma jovem peregrina americana, que estava desaparecida desde abril, foi encontrada ontem. Acharam seu corpo perto de León. Um suspeito fora preso na quinta, acho, e acabou confessando tudo. É o assunto do momento. Em todo canto só se fala nisso. Acho que a notícia vai acabar chegando aí no Brasil. Por favor, tranquilize mamãe. Diga a ela que, primeiramente, esse foi um fato excepcionalíssimo. Depois, de todo modo, estou tomando todo cuidado. Sempre procuro andar com pessoas por perto. E acho que hoje encontrei meus parceiros de Caminho, Norma e Tom. Temos um ritmo parecido, temos a mesma previsão de chegada a Santiago, portanto, farei o possível para seguir caminhando com eles.
Saímos de Bizkarreta umas nove e meia da manhã. O céu estava nublado, com toda cara de que ia chover. Começamos a caminhada com uma boa subida, e entramos em um bosque muito simpático. O forte perfume dos pinheiros rescendia no ar. Com poucos metros, conheci um senhor português, Inácio, que vive na França há muitos anos. Começamos a conversar e logo percebi que ele estava ansioso por companhia. Estava impressionadíssimo com a história da moça, e me disse algumas vezes, ao longo do dia, que é uma pessoa muito sensível. Inácio perdeu o avô de uma maneira trágica, quando era criança, e ainda por cima, testemunhou tudo. Além disso, ele lutou na guerra de Angola -- que foi bastante cruel, segundo eu sei. Quando nos encontramos, ele estava se sentindo bem angustiado. Apresentei-o à Norma e Tom, e acabou que caminhamos o dia todo juntos, nós quatro. Ao final do dia, Inácio era outra pessoa. Um sorriso de felicidade não deixava seu rosto.
A cada novo dia, me convenço mais de que conhecer pessoas é a experiência mais rica e mais forte do Caminho. São tantas histórias...  Tom se curou de um câncer dificílimo, e Norma estava quase perdendo a visão. Estão fazendo o Caminho em Ação de Graças. Eles estão casados há 37 anos, e têm seis filhos homens! Passam parte do ano nos Estados Unidos, e parte nas Filipinas. Aliás, estou convidadíssima a ir passar uns dias com eles, quando eu estiver pela Nova Zelândia. Eles caminham rezando o terço juntos. Tão bonitinho! Inácio ficou impressionado. Ele, que está fazendo o Caminho pela terceira vez, disse que é a primeira vez que ele vê gente rezando o terço em voz alta. A conversa entre a gente é uma graça. Inácio se sente mais confortável falando francês, e eu fiquei de tradutora entre os três. Mas tem horas em que eu acabo misturando as bolas e falo em inglês com Inácio e, em francês com o casal.
Ainda estávamos caminhando pelo bosque, cerca de uma hora após deixarmos nossa pousada, quando começou a chover forte. Eu já aprendi que aos primeiros pinguinhos de chuva é melhor colocar logo a capa, porque quando a chuva começa mesmo, vem com tudo. Por sorte, como estávamos caminhando entre árvores, mesmo sendo intensa, a chuva não nos molhou tanto como no primeiro dia. Consegui permanecer com os pés secos! O lado ruim é que pegamos muita descida, e com a chuva o chão ficou bem escorregadio. O caminho pelo meio do bosque é feito de terra e pedras. Tivemos que reduzir bem a marcha e andar com muuuito cuidado. Nos momentos mais fortes da chuva, a estradinha se transformou num pequeno riacho de lama. Mais uma vez agradeci muito aos Céus por ter comprado meus bastõezinhos de caminhada. Acho que ninguém devia fazer o Caminho de Santiago sem esse apoio! Ajuda tanto nas subidas como nas descidas.
Após umas três horas de caminhada, nessas condições, chegamos a Zubiri, um simpático vilarejo, com uma ponte medieval, a que se atribuem poderes mágicos, de cura de alguma enfermidade que eu não entendi qual é. A essa altura, estávamos famintos. Nos dirigimos ao único bar local, creio eu, nos sentamos a umas mesinhas do lado de fora, pois a chuva já havia parado. Cada um pôs o que tinha em cima da mesa, compramos mais pão e alguma fruta e fizemos uma deliciosa refeição compartilhada. Três australianas se aproximaram e ficamos conversando e comendo juntos. Uma delas, a mais jovem, tinha estado no Brasil para a Copa do Mundo.
Alimentados, retomamos a caminhada. A saída de Zubiri é meio feia, porque o Caminho segue por trás de uma enorme fábrica de Magnesita. Montanhas de pó preto e cinza circundam a enorme planta, com suas chaminés altas e seu maquinário pesado. Realmente, um cenário pouco agradável. Ainda bem que a visão não dura muito, e logo voltamos a caminhar em meio a pastos e bosques. Felizmente, não choveu mais, e o sol até ensaiou dar o ar da sua graça. Só que partes da estrada continuavam molhadas e mantivemos o cuidado, para não cairmos e não nos machucarmos. 
Num determinado ponto da estrada, há uma fonte antiga, em pedra, com água natural. Paramos um pouquinho para descansar e beber da água fresquinha. Ali conhecemos dois israelenses, pai e filho, que estão fazendo uma semana de Caminho, apenas para despenderem algum tempo juntos, fazendo algo diferente.
Sempre que eu posso, pergunto às pessoas o que as levou a fazer o Caminho. E acho que já comentei que tenho encontrado várias pessoas que estão fazendo o Caminho mais pela caminhada em si (seja pela novidade, seja pelo desejo de testar os próprios limites...) do que por razões de ordem espiritual. Muita gente fazendo só um pedaço do Caminho também. Inácio se queixou muito do que ele entende ser uma falta de espiritualidade nos peregrinos de Santiago. Ele caminha todos os anos para Fátima, e me disse que é um ambiente muito distinto, mais compenetrado. Pode até ser. Só fico pensando que os mistérios de Deus são muitos, e surpreendentes. As pessoas podem começar a caminhar com um propósito na mente, mas quem sabe como elas chegarão ao fim?
Mais alguns quilômetros e chegamos a Larrasoaña, de onde estou te escrevendo. Trata-se de um povoado minúsculo. Há basicamente a rua da Igreja e uma rua por detrás, onde fica o charmoso albergue em que me encontro hospedada. Embora eu não vá ter o luxo de um quarto para apenas duas pessoas, como ontem, estou muito feliz com esse Albergue de San Nicolás. Tudo novinho, banho gostoso, com água efetivamente quente, beliches confortáveis, donos simpáticos, bom sinal de wi-fi. Mais um luxo, diante dos albergues das duas primeiras noites. Ou seja, preciso aproveitar para dormir bem. A gente nunca sabe o que vai encontrar pela frente.
Após tomarmos banho, eu, Norma, Tom e Inácio saímos para “tomar uma cerveja”. Eu bebi suco, mas adorei o bate-papo de fim de tarde, no quintal do supermercado local. Deveras pitoresco. E o dono ainda fechou o supermercado e nos deixou à vontade, contanto que tivéssemos o cuidado de fechar o portão, quando fôssemos embora. O cara é uma figura. Abre todo dia às 11 da manhã e fecha às sete da noite. E não sei nem se ele não fecha pra sesta. Uma grande bandeira do Brasil , que ele ganhou de uns amigos, enfeita esse quintal que funciona como bar.  
Depois do happy hour, eu dei uma caminhada até a Igrejinha de São Nicolau. Cheguei quando a missa estava terminando. Uma pena, gostaria de ter assistido à missa! Pelo menos consegui espiar a velha igrejinha medieval por dentro. Um altar barroco, esculpido em madeira, causa bastante impressão, porque contrasta vivamente com as sóbrias paredes de pedra da construção. O amontoado de imagens incomoda um pouco, num primeiro momento. No nicho central está sentado São Nicolau. As peças têm aparência de serem seculares, e toda a pequena Igreja parece carecer de uma boa restauração. Pouco mais de uma dezena de pessoas assistiam à missa, quase todos acima dos cinquenta... ou sessenta. Quase em frente à Igreja, uma taverna parecia bem animada. Era hora do jantar, há que se dizer.
Voltei para o nosso albergue e me sentei com os demais peregrinos, à mesa do jantar. Estavam lá as australianas do almoço, além de um coreano e um espanhol de Barcelona, ambos na faixa dos quarenta. Em outra mesa estavam os israelenses e mais algumas pessoas com quem não tive a oportunidade de conversar. O jantar foi bem animado, e regado a vinho, que está incluso no menu de dez euros. Após a comida, todos foram se deitar. Só eu estou aqui embaixo, escrevendo, no mais absoluto silêncio. Vou me recolher agora, muito satisfeita com esses primeiros dias vencidos. Curiosamente, sinto-me bem menos cansada do que nos dois primeiros dias. Meus pés estão reclamando bem menos, e minha coluna também. Acho que o corpo começa a se acostumar ao rojão, Graças a Deus. 
Amanhã, será um dia puxado. A proposta é caminharmos 24 kms até Pamplona. Estou louca para chegar a Pamplona. Para minha alegria, Norma e Tom planejam dormir duas noites por lá, para visitarem a cidade na segunda. Era justamente o que eu pretendia fazer! Logo, não perderei meus simpáticos companheiros de viagem. Deus é mesmo perfeito! A gente só preciso acreditar nisso de verdade, com todas as forças da alma. E se entregar.
Te amo, Minha Irmã! Se cuida!
Beijo enorme,

Léia

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