sábado, 26 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 16


26/09/15

Nica, Querida,
Estou em um vilarejozinho chamado Atapuerca. Hoje caminhei apenas 18,8 kms. Graças a Deus consegui lugar num albergue simples, mas bem organizado e com um extensor jardim (Albergue El Peregrino). Saí de Montes de Oca com um certo receio, porque alguns peregrinos tentaram fazer reserva nessa cidade onde estou e numa anterior e não conseguiram. Disseram a eles que estava tudo cheio. Por isso, eles tomaram um ônibus direto para Burgos. Eu não quero e não devo pular nenhuma etapa, portanto, entreguei nas Mãos de Deus e pus o pé na estrada. O nó é que se não desse certo, a próxima cidade fica a quase 7 quilômetros. Mas deu certo e eu estou muito contente com meu albergue.
Mais um belo dia de sol se anunciava quando saí de Montes de Oca. A primeira parte da caminhada foi dura, porque foi só subida, até o alto desses Montes. Em compensação, caminhei em meio a um lindo bosque, repleto de samambaias que já estão adquirindo as tonalidades do outono. E quando cheguei na parte mais alta do Monte, pude apreciar uma lindíssima vista do vale e de uma cadeia de montanhas ao longe. Mais um pouco adiante, há um monumento em homenagem a vítimas da ditadura de Franco.
O Caminho continuou o tempo todo ladeado por árvores e samambaias. Em alguns trechos, a estrada se largou e a terra adquiriu uma cor avermelhada. No meio da estrada alguém desenhou com pedras um desejo de “Buen Camino” e um grande coração. E mais adiante um pouco, após um belo bosque de pinheiros, fui surpreendida com uma espécie de área de repouso amorosamente criada por algum artista. Vários troncos de árvores estavam esculpidos em forma de totens, e pintados também. Alguns troncos estavam cortados e dispostos como bancos e mesas onde os peregrinos podiam descansar e comer. Havia placas e troncos de madeira pintados com frases positivas: Somos luz; Hapiness is only true when shared; Pueblos de um lugar llamado mundo (com bandeiras de vários países pintadas num tronco). Achei muito lindo que alguém tenha se dado ao trabalho de criar um ambiente tão convidativo e acolhedor no meio desse longo trecho (12,6 kms) entre Montes de Oca e San Juan de Ortega.
Após mais alguns quilômetros de bosques, finalmente cheguei ao alto de uma colina e avistei San Juan de Ortega embaixo, no vale. Esse lugarejo não tem quase nada além um Mosteiro com sua Igreja. Esse Santo viveu na região no século XI e foi uma espécie de pupilo de Santo Domingo de La Calzada. Ambos trabalharam muito pelos peregrinos. A Igreja do Mosteiro, que leva o nome de San Juan, tem sua tumba e um mausoléu em sua homenagem. Curiosamente, não há um altar principal. Quer dizer, lá no fundo, após o mausoléu, a gente pode vislumbrar um Crucifixo, mas o mausoléu ocupa todo o centro da Igreja, que não é muito grande. A construção é românica (séc. XII). E os retábulos laterais não são especialmente belos. Um deles, que está acima da tumba do Santo é curioso, contudo. Várias das cenas representadas mostram almas pedindo misericórdia, e lá em cima, um Cristo de braços abertos (quero crer eu que em sinal de acolhimento de todas elas). Acho que o que eu mais gostei na Igreja de San Juan foi a torre de uma parede só, com seus velhos sinos destacados diretamente contra o céu azul.
Almocei no bar do arruado (acho que não dá nem pra chamar de vilarejo), um simples omelete com salada. Quando estava entrando no bar encontrei uma italiana e um italiano daquele grupo animado do albergue de Cirueña. Ella (é o nome da moça) se ofereceu para me esperar, pra que eu não seguisse caminhando sozinha. Tão gentil da parte deles, não?! Terminei de comer pouco depois que Ella e Hugo terminaram de visitar a Igreja. Retomamos, então, o Caminho. Só que logo adiante tinha uma bifurcação que mostrava “Camino alternativo” e caminho principal. Pelo mapa e pelos nomes das cidades que constavam na placa, dava a impressão de que a estradinha que seguia pelo meio do bosque não era a que eu precisava pegar, porque tinha mandado minha mochila para Atapuerca. Me despedi dos meus novos companheiros. Eles seguiram pelo bosque e eu segui pela estrada que a placa parecia indicar. No entanto, após um quilômetro e meio, como não havia nenhuma flechinha amarela, resolvi voltar ao bar e me informar direitinho. E lá vou caminhando pra trás, como se não me bastassem os quilômetros que tenho de andar pra frente... No bar, o rapaz me disse que eu não fizesse caso da placa e seguisse pelo bosque, acompanhado as setinhas amarelas. Paciência! Ainda bem que eu resolvi voltar logo para me informar!
Bom, segui pela estradinha em meio às árvores, agradecendo pelas sombras, pois a essa altura o sol estava a pino. Passei por umas vaquinhas pastando soltas, com seus bezerrinhos fofíssimos. Logo acabou-se o bosque e a paisagem voltou a assumir as feições ocres que já te descrevi ontem. Campos pelados, prontos para a semeadura. Na descida de uma colina, vislumbrei a cidadezinha de Agés, com sua torre de Igreja destacando-se entre as casas. Bem na entrada da cidade, encontrei Ella e Hugo sentados numa mureta. Hugo chorava. Me aproximei, Ella se levantou e me chamou para tomarmos algo num café charmosíssimo que fica bem na esquina da rua principal de Agés, enquanto Hugo se recuperava de alguma emoção forte causada pelo Caminho. O café charmoso se chama El Alquimista. Trata-se de uma casa linda, com quatrocentos anos de existência, que foi toda reformada, e é café, bar e mercadinho. Uma jóia. A pia do banheiro é em forma de coração. Mas juro que não é cafona. Pelo contrário, tudo é de muito bom gosto em El Alquimista. E a dona, Amapola, é uma verdadeira figura!!! Morri de rir com ela.
Eu não tomei café, mas comi uma fatia de melão docinho. Nisso, chegou Hugo, que queria ir ao banheiro. Ella pediu a chave e Amapola deu a chave do banheiro de mulheres. Hugo entrou no banheiro. Quando Amapola percebeu que a chave era para um homem (tem um banheiro masculino), ela quase teve um treco. Começou a falar que homem só sabe fazer sujeira em banheiro, que sai salpicando tudo, até o teto. Enquanto falava, ela fazia toda a interpretação. Enquanto eu morria de rir, Ella procurava tranquilizar Amapola, dizendo que Hugo era um homem limpíssimo. Agora, nessa conversa toda, Amapola falava em espanhol, e Ella em italiano. Por um momento eu achei que Amapola fosse arrastar Hugo do banheiro pra fora. Mas ela se acalmou e quando Hugo saiu, os três começaram uma conversa animadíssima. Amapola falando pelos cotovelos, em espanhol, e Hugo e Ella, respondendo em italiano. Um barato! Pra você ver que quando as pessoas querem se comunicar, a língua não é um empecilho. Me diverti demais com a cena. E quando resolvemos tirar uma foto, e Amapola disse que uns italianos tinham ensinado ela a dizer clitóris, na hora do “X”. Hugo observou que essa não era uma palavra apropriada e perguntou a Amapola se ela sabia o que significava. Resposta dela: E eu não vou saber o que eu tenho e que me dá mais prazer? Ri demais.
Antes de deixarmos a pequena e charmosa Agés, eu, Ella e Hugo fomos dar uma espiada na Igrejinha local. Uma gracinha de construção românica, pequena, com teto baixo, e dois pequenos altares barrocos, mas simples. Na fachada da Igreja, a mesma torre de sinos, de uma única parede, que tanto me encantou em San Juan, e no seu topo, um enorme ninho de cegonha.
A caminhada de Agés a Atapuerca foi rápida e agradável. Fui conversando com Ella, arranhando meu italiano, enquanto cruzávamos belos campos de girassóis. Quase na entrada de Atapuerca, rezamos um mistério juntos. Atapuerca é um vilarejo. Acho que a rua principal não tem nem um quilômetro. Me dirigi ao albergue para onde havia despachado minha mochila e me despedi dos meus adoráveis amigos italianos. Nem acreditei quando a moça do albergue me disse que tinha lugar! Fiquei tão feliz e agradecida. Deixei minhas coisas no quarto, tomei banho e fui dar uma espiada na Igreja local, que estava fechada. Porém, como a Igreja fica num alto, pude apreciar uma bela vista das redondezas. Voltei ao albergue, comi umas coisinhas que comprei em El Alquimista e estou aqui na minha cama, escrevendo para você, e ao mesmo tempo já pronta para me estirar na cama e dormir.
Amanhã caminharei 21 kms até Burgos. Pretendo ficar um dia a mais, para visitar a cidade. Infelizmente não conseguirei alcançar Norma e Tom. Temos nos falado sempre por email. Eles estão em Burgos hoje e partem amanhã pela manhã. Eu lamento, porém, ao mesmo tempo, sei que não consigo manter o ritmo deles. Na realidade, toda vez em que eu penso em acelerar meu passo, me aparece uma novidade. Hoje mesmo comecei a sentir um pouquinho meus quadris e já dei uma segurada no ritmo.
Engraçado que hoje eu estava caminhando entre as árvores, sozinha, pensando nos peregrinos que pegaram o ônibus, e dizia pra mim mesma, com toda convicção: Eu vou caminhar tudo, até Santiago! Nesse exato momento, dei uma topada danada, e quase me estabaco no chão. Na hora captei a mensagem. Algum anjinho me avisava: Mais humildade! Pra chegar até o fim dessa jornada, careço da Graça. Se Deus quiser, chegarei ao fim. Nunca devo esquecer de como as convicções sobre o futuro são ilusórias.
É isso, Niquinha. Agora vou me preparar para dormir. Preciso descansar o corpo, pra longa jornada de amahã.
Espero que esteja tudo bem por aí. Saudade muita!
Beijos no seu coração,

Léia

Obs: Saí para pegar o sinal da internet e tem uma lua incrível no céu!

Nenhum comentário:

Postar um comentário